22 X 22
Em música são ridículos, na poesia são malucos
e na pintura são borradores de telas.
Oscar Guanabarino
Este livro reúne as polêmicas divulgadas na imprensa no decorrer do
ano de 1922, quando um pequeno grupo de artistas e escritores, liderado por
Oswald de Andrade e Mário de Andrade, difamava as nossas glórias artísticas
ditas de "praça pública", em razão da imitação servil, ou, como
era alardeado, da “cópia sem coragem e sem talento”. Contra "esses falsos
mitos" e sobretudo na busca da emancipação cultural levantava‑se
o então chamado futurismo paulista, a quem a respeitabilidade de Graça Aranha
dera "a mão forte". Aos gritos de "Independência! Originalidade!
Personalidade!" começou‑se a mudar o panorama das nossas artes.
Através de propostas controvertidas, o "caloroso tumulto de idéias"
teve sua primeira face pública com a Semana de Arte Moderna, realizada de
13 a 18 de fevereiro de 1922. Esta barulhenta comemoração, na pior das hipóteses,
impulsionou o ressurgimento, naquele momento, em São Paulo, de uma "prodigiosa
vida intelectual", que mais tarde se espalharia pelo país.
A valorização desse minuto delirante de remodelação artística torna-se
muito artificial ao se colocar o evento como o fato mais importante do Modernismo.
Essa Semana tão comemorada não inaugurou o movimento, foi apenas a festa planejada
para anunciar o engatinhar de uma nova mentalidade, e os resultados precários
conseguidos, até então, pela mesma turma, que, em 1917, havia vibrado em silêncio
com as ousadias de "O homem amarelo" e de "A boba", de
Anita Malfatti, depois de um longo processo de aprendizagem sobre arte moderna
e de arregimentação de novos companheiros, como bem mostrou Mário da Silva
Brito, na sempre atual História do modernismo
brasileiro
[2]
. Na sua coluna do Jornal
do Commercio (1921), Oswald vislumbrava, em São Paulo, a formação de um
“núcleo da reação ao caruncho dos processos acadêmicos da literatura e arte”.
Artistas e escritores também encontraram na Semana uma maneira adequada de
comemorar os cem anos da Independência política do Brasil, conforme também
havia anunciado Oswald:
Um pugilo pequeno, mas
forte, prepara‑se para valer o nosso Centenário
[3]
Ainda hoje o alcance dessa rebelião estética é erroneamente confundido
com o barulho dos dias da festa, ficando desfocadas as iniciativas daquela
fase de preparação, onde se esboçou o traçado do ideário estético do Modernismo.
As conseqüências dessa festa para o desenvolvimento da cultura brasileira
são muito comentadas. Penso inclusive que é um assunto razoavelmente estudado.
[4]
Mas um filão ficou disperso nos arquivos: os textos de
divulgação, a recepção crítica e os debates entre os partidários e os opositores
da nova estética, produzidos no ano de 22. Propositadamente, esta antologia
é constituída apenas do material publicado naquele ano no Rio de Janeiro e
em São Paulo, nos principais jornais e revistas. Nos periódicos cariocas o
material encontrado é parco. A Ilustração
Brasileira publicou somente o artigo do paulista Plínio Salgado; a Para Todos limitou-se a uma pequena notícia da Semana, considerando-a
“bela idéia de Graça Aranha”; A Careta cedeu mais espaço (oito textos entre artigos e notas), para
ironizar a movimentação dos intelectuais e suas “vestimentas exageradamente
elegantes, posições estudadas, creme, pó de arroz e carmim no rosto”.
Agora, um público mais amplo poderá conhecer as opiniões apaixonadas
ou ressentidas, a reação da imprensa e o grau de maturidade intelectual daqueles
que escreviam contra ou a favor, no instante em que apenas começava a longa
caminhada de atualização da arte brasileira; e recuperar as manifestações
mais próximas ao evento, aquelas que não passaram pelo processo de censura
e de decantação proporcionado pelo distanciamento emocional, livres ainda
das distorções e fantasias que se observam nos costumeiros depoimentos colhidos
por ocasião dos seus sucessivos aniversários.
Portanto, esta seleção revela em parte a dimensão da tarefa dos primeiros
modernistas para modificar o padrão estético em vigor, se atualizarem e conseqüentemente
introduzirem seus trabalhos. Mostra o grau de preconceito, ingenuidade e provincianismo
que nortearam os debates de parte a parte, interessa como prova ou ilustração
de um processo longo e gradativo de convencimento empreendido por um grupo
pequeno de artistas, em prol da renovação da linguagem artística saturada
de parnasianismos de segunda mão, cometidos por poetas sem o talento de um
Bilac (morto em 1918), ou de Alberto de Oliveira, carinhosamente tratado por
Oswald como “Alberto, o grande”. Aliás, dois amigos antigos e admirados pelo
futuro antropófago.
Com esta antologia fica evidente a repercussão da Semana restrita quase
que à cidade de São Paulo, tendo imediatamente por parte dos seus idealizadores
uma explicação convincente para "o lugar escoteiro de sua cidade":
As
artes florescem sempre nas terras que apresentam um apogeu de progresso e
de civilização. As terras inertes e decadentes não podem apresentar tais paroxismos.
São Paulo toma pois também nas artes a dianteira arrogante que lhe cabe. A
hegemonia artística da corte não existe mais no comércio como no futebol,
na riqueza como nas artes São Paulo caminha na frente.
A cobertura jornalística das atividades promovidas durante a Semana
pautou-se, em São Paulo, de um lado, pelo entusiasmo dos seus idealizadores
- "os semideuses bárbaros e modernos" - que sonhavam com a "iminente
renascença paulista". Do outro, pela condenação absoluta daquele "delírio
coletivo a acometer um grupo de intelectuais, empolgados por um capricho passageiro",
em artigos assinados às vezes com pseudônimos difíceis de identificar, outras
vezes anônimos como aconteceu com a série de textos demolidores publicados
na Folha da Noite, quase sempre
na primeira página. Apelou-se também para a indiferença total. Revistas do
porte da Revista do Brasil (de São
Paulo), do alcance das cariocas Fon‑Fon, O Malho,
e Para Todos simplesmente ignoraram
a promoção artística em questão. A Revista
do Brasil abriria suas páginas aos modernistas somente a partir de 1924,
quando o movimento havia tornado-se “nacional" e "triunfante".
A resenha dA paulicéia desvairada, nas suas páginas no ano de 22, foi arrasadora
e ao meu ver em alguns aspectos pertinente, apontando inclusive os conhecidos
defeitos do livro. O tradicional Estadão
não se envolveu. Publicou secamente as notícias de abertura da Semana, divulgou
a programação e um artigo de autoria de Ronald de Carvalho sobre Villa Lobos.
Perdidos na sua diagramação cansativa e pesada de outrora algumas piadas ingênuas
e deboches gerais contra os modernistas:
Precisa‑se de um moço honesto que saiba fazer
versos futuristas. Exige‑se um atestado de ignorância.
Curiosamente os periódicos das
colônias italianas, francesas e alemãs - Il
Piccolo, Fanfulla, Revista Coloniale, Lumiére, Messager de São Paulo,
Deutsche Zeitung – deram boa acolhida,
em textos realizados por jornalistas estrangeiros, agora reunidos e traduzidos.
Os artigos favoráveis à Semana, na sua maioria, foram assinados pelos
dois Andrades ‑ Oswald e Mário -, por Menotti del Picchia, Sérgio Milliet
(escritos para jornais franceses) e por uma meia-dúzia que preferiu o anonimato.
Dentre os ferrenhos adversários, os mais conhecidos foram Mário Pinto Serva,
responsável pelos ataques ferinos aos modernistas; os jornalistas Galvão Muniz,
Oscar Guanabarino e o futuro líder integralista, o romancista Plínio Salgado.
A então chamada futurópolis atuou como palco de uma discussão acalorada
entre intelectuais, acirrada pelo esforço incansável dos novos para impor
suas opiniões. Este grupo, ou melhor "os mocinhos cinturinhas" enfrentaram
obstáculos e preconceitos que certamente atrasaram e sobretudo determinaram
o curso da atualização de nossa literatura. O prestígio dos "ásperos
e intolerantes" parnasianos e o conservadorismo do meio cultural paulistano
dificultaram a consolidação das novas idéias; as comemorações do centenário
da Independência também ajudaram a desviar o olhar da imprensa para o despertar
do sentimento cívico da intelectualidade oficial. Apesar do trabalho de doutrinação
dos principais líderes do Modernismo (inicialmente feito por Oswald de Andrade,
Menotti del Picchia e posteriormente por Mário de Andrade), através das suas
colunas fixas em jornais importantes como
Correio Paulistano, Jornal do Commercio e A Gazeta, desde 1920, o parnasianismo imperava soberano. A popularidade
da sua estética era avassaladora a ponto de esmaecer o brilho das manifestações
simbolistas ensaiadas em solo brasileiro. Talvez este fenômeno explique dois
aspectos da história do movimento: 1. as marcas nítidas de certo modernismo
datado e desatual que, entre nós, caiu no gosto do público; 2. a penetração
desastrosa no meio literário de um futurismo obcecado pela modernidade aparente,
no âmbito da linguagem e de tiradas bombásticas, praticando, em outro registro,
o mesmo artifício lingüistico que os novos almejavam derrubar.
A presença de Graça Aranha na conferência inaugural do evento, outro
aspecto polêmico da Semana, é esclarecida. A fim de granjear adeptos e simpatizantes
de forma mais rápida, Monteiro Lobato foi convocado insistentemente por Oswald,
para "continuar a sua atitude inicial", que, segundo ainda Oswald,
fôra "um estouro nos arraiais báculos da estética paulista". Com
a recusa do criador do Jeca Tatu,
Graça Aranha tornou-se o padrinho de um empreendimento que estava fadado a
ser adiado por falta de patrocínio. E emprestou às festividades o prestígio
da sua personalidade de diplomata e escritor consagrado. O grupo paulista
agiu premeditamente ao convidá-lo: sua presença trouxe, inicialmente, a adesão
de figuras importantes, a simpatia de literatos conhecidos e fundamentalmente
colocou a capital da República, que também era o centro cultural do país,
no circuito da reforma da nossa arte. Do Rio, foram anunciadas as presenças
de Ronald de Carvalho (colaborador, em 1915, da revista modernista portuguesa Orpheu), dos poetas Manuel Bandeira e
Ribeiro Couto, do crítico Sérgio Buarque de Holanda, do jornalista Álvaro
Moreyra, e de muitos outros. O velho Graça, apaixonado por uma irmã de Paulo
Prado, freqüentava o palacete de Higienópolis, e levou o futuro autor do Retrato do Brasil para a "orgia futurista".
Atraiu uma comissão patrocinadora de peso, isto é, formada de "reputações
formidáveis", como fazia questão de ressaltar Oswald (composta por René
Thiolier, Alberto Penteado, Numa de Oliveira, Edgar Conceição, Alfredo Pujol,
Oscar Rodrigues Alves, Armando Penteado, Antônio Prado Júnior, José Carlos
Macedo Soares, Martinico Prado, além de Paulo Prado). O governador do Estado,
Washington Luís e o prefeito da Capital, Carlos de Campos, ambos também amigos
de Oswald de longa data, assistiram à cerimônia de inauguração. O fato é que
o Teatro Municipal lotou mesmo com ingressos pagos. Parte da imprensa fez
questão de manter distância do evento e estranhou o apoio oficial:
De
resto, que dirá disto o Sr. Presidente do Estado, que também, iludido, se
fez representar nesta pagodeira? Que
dirão os Secretários de Estado, que
lá estiveram em pessoa ou por seus oficiais de gabinete? E o Sr. Paulo Prado,
que, com a sua reputação e o seu prestígio, tão bem soube apelidar fiéis ao
templo?
Digam
o que quiserem! Mas salve-se a boa imprensa, por um gesto superior e definitivo,
da passividade em que os sandeus a querem mergulhar.
O jornal não é bacia de barbeiro.
A constituição aristocrática daquela comissão, formada por muitos nomes
distantes da vida artística, chama atenção, se não se conhecem as razões do
generoso suporte. Os empresários paulistas, esperançosos de resolver um antigo
acordo de café com a Alemanha, precisavam agradar o influente Graça Aranha
que, em troca, poderia orientá-los a respeito dessa controvertida questão
financeira.
[5]
Na realidade, tanto os desconhecidos
Andrades, como o experiente diplomata tiraram proveito daquele convite. Este
percebeu logo a possibilidade de revitalização dos seus projetos e anteviu
sucesso na movimentação dos jovens escritores, a exemplo de outras iniciativas
do gênero que presenciara na França. A participação do autor de Canaã (1902) servia, no mínimo, para impor
respeito a um grupo cuja bandeira consistia em derrubar os grandes mitos artísticos
do momento. Justificavam os modernistas que Graça Aranha tinha vindo "acoroçoar,
trazendo com a sua prestigiosa presença e a evangélica Estética da vida, a certeza de que os novos
não erram nas suas apaixonadas afirmações". Naquele momento não se cogitava
em discordâncias estéticas e os paulistas transformaram-no em líder. Para
o oportunista Oswald, "Graça Aranha encontrou a reação estética brasileira
e pondo-se à frente dela mostrou ser o indiscutível chefe de seu tempo e o
glorioso condutor do espírito de seu povo". A empatia foi mútua, o velho
Graça em novembro de 1921, declarava: “Se ao volver a nossa imprevista e maravilhosa
terra, alguma coisa me surpreendeu foi certamente a ascensão espiritual da
jovem inteligência brasileira”. No entanto, uma parte dos seus leitores não
viu com bons olhos essa participação e o protesto logo surgiu:
O que me admira
é Graça Aranha, um mestre que nós admirávamos, emprestar o seu nome a esta
bambochata!
Os elogios recíprocos garantiram apenas os confetes até a abertura
da Semana, uma vez que, antes do final do ano, precisamente por ocasião do
último número da revista Klaxon,
em que fora o homenageado, Graça Aranha perdia a liderança do movimento e
se afastava dos Andrades. A sua palestra inaugural desagradou a modernistas
e passadistas que estranharam a "nebulosidade
metafísica", montada em conceitos velhos de empoada filosofia. Dois anos
depois, por ocasião da famosa conferência na Academia, Graça Aranha atacou
a linguagem pau-brasil, e recebeu uma resposta dura através da crônica “Modernismo
atrasado”:
Graça
Aranha é dos mais perigosos fenômenos de cultura que uma nação analfabeta
pode desejar [...] O seu temperamento agitado levou-o aos graciosos excessos
da Semana de Arte Moderna. Hoje, quando da revolução encanecida, brotam os
caminhos claros de cada povo, ei-lo, importando para a Academia uma série
de abstrações inúteis e querendo impor, como modernistas, alguns dos espíritos
mais tardos do país.
[6]
Os apelos de modernização do pequeno grupo, a princípio, soaram como
imposição e arrogância. O incendiário artigo de Oswald de Andrade, na véspera
da inauguração da Semana, provocou a debandada de muita gente que havia aderido
à festa inclusive de alguns simpatizantes do novo código artístico. Reclamava
um crítico impaciente: "um dos gênios, o Andrade das adiposidades, agrediu
feroz e irreverentemente vultos consagrados como Carlos Gomes, Chopin, Victor
Hugo e outros!" A queixa foi geral: "desagradável situação moral
revoltadora de todos os sentimentos de independência humana". Essa estratégia
inicial, de ataque à tradição, harmonicamente defendida pelos modernistas,
acirrou os ânimos e se tornou o mote de toda a crítica contrária. Há ainda
um outro ponto que pode explicar a animosidade recíproca. Alguns escritores
de projeção sentiam‑se controlados, não podiam conceber que dois ou
três novos - "pastores de um rebanho de lobos" - pudessem chefiar
um movimento de “homens livres”. Plínio Salgado, por exemplo, apesar de aplaudir
a idéia da Semana, preferiu não se comprometer, mandou um recado público:
“E,
agradecendo à plêiade brilhante a solicitação do meu concurso, peço‑lhe
licença para pensar sozinho.”
As atitudes agressivas eram julgadas pelos seus praticantes apenas
como uma tática guerreira momentânea. E refletiam sobre o procedimento irreverente:
“[...] forcemos o andar lerdo dos
intelectuais brasileiros, não podemos ainda refletir atitudes de serenidade.”
Mário, às vésperas da festa, comungava
as mesmas idéias: “Há exageros em nossa arte? É natural. Não se constrói um
arranha-céu sobre um castelo moçarabe.” Nessa época, particularmente Oswald
já sonhava com uma futura etapa de calmaria, durante a qual se esboçariam
as bases de um projeto de construção concretamente surgido apenas em 1924
com o Manifesto Pau Brasil e Memórias
Sentimentais, mas anunciado desde 1922, quando se manifestava por uma
"aspiração de classicismo construtor".
Cândido, pseudônimo do jornalista Galeão Coutinho, redator‑chefe
de A Gazeta, tornou‑se um dos críticos
mais constantes do festival modernista. Jornalista e escritor, relativamente
bem informado, mantinha uma coluna sobre arte e literatura, onde destrinchava,
quase sempre em tom de desaprovação, as diretrizes e a produção da vanguarda
italiana. Procurou ser imparcial ao reconhecer originalidade e extravagância
no futurismo, mas não deixou de revelar as suas fragilidades e impertinências.
Características essas que ampliava para as nossas manifestações contemporâneas:
Em geral sente‑se nas obras da escola futurista desse período a
falta de um conteúdo sério... a verbosidade exterior mal dissimula a pobreza
de inspiração artística.
Galeão Coutinho, ou Cândido, debochou da Semana e dos seus responsáveis.
Inevitavelmente, por causa da proximidade da data e também pelo seu espírito
informal, associou-se o evento aos festejos do Carnaval. Os realizadores do
evento foram ironicamente tratados como impagáveis clowns e também como "os doze apóstolos", responsáveis pela
pregação do "Grande Verbo, revelador da Suprema Verdade". Possivelmente
os textos publicados na Folha da Noite
foram escritos por Mário Pinto Serva, um dos seus jornalistas mais atuantes
e crítico feroz da Semana. Outros também atacaram indiscriminadamente os participantes.
Anita novamente foi a mais visada:
A senhorita Malfatti desconhece por completo harmonia,
cor e perspectiva, conseqüências lógicas do desenho, cujos enigmas só agora
está tentando decifrar.
Desprezou-se a produção de Di Cavalcanti: "É um menino vicioso,
que faz coisas feias pelos cantos da arte, de onde será enxotado a correiadas".
Villa Lobos também não agradou: "procura esconder nessa ausência de bom
senso das suas partituras, o que lhe falta em estudos de harmonia o que lhe
falece em inspiração". Mas nem todos foram vítimas das batatas, dos tomates,
dos assobios e das vaias. O hoje desconhecido Agenor Barbosa foi ouvido em
silêncio e os críticos encontraram logo uma explicação: "É que ele não
é futurista e os seus versos eram poesia". Palmas incontestáveis, palmas
de todos, sem distinção, recebeu a "sacerdotisa da arte verdadeira",
Guiomar Novais.
A rebelião paulista foi confundida pela imprensa exclusivamente, num
primeiro momento, com o eco do movimento futurista italiano, na ocasião em
franca decadência na Europa. Para Annateresa Fabris, autora de uma interessante
análise comparativa dos dois movimentos, a semelhança entre eles é maior do
que se admite
[7]
. Acredito, todavia, que os textos aqui coletados também
apontam para muitos outros parentescos. De um modo geral, as vanguardas européias
ainda eram desconhecidas do grande público e se fazia muita confusão em relação
ao assunto. Oswald e Menotti del Picchia, os mais atuantes e razoavelmente
informados a propósito dessas vanguardas, trabalharam sistematicamente no
sentido de divulgar os diferentes movimentos estrangeiros de renovação artística
e seus principais autores (Mário de Andrade, apresentado como poeta e também
como adepto do ideário modernista por Oswald, no Jornal do Commercio com a série "Mestres do Passado", abrilhantaria
mais tarde a avalanche reformadora e defenderia a Semana no duelo verbal com
Cândido, nA Gazeta). De qualquer
modo a vanguarda italiana chegava ao Brasil vinculada ao conceito de moderno,
de atual, portanto nada mais natural do que usar suas bandeiras para, no início,
desarmar os espíritos locais resistentes às novidades. Da parte dos conservadores,
identificava-se o futurismo com qualquer manifestação de arte nova, encarada
como um fenômeno de patologia mental, oriunda de um verdadeiro "estado
mórbido de certos espíritos". Mesmo assim, em alguns pontos, muitas das
críticas eram procedentes apesar de generalizadas:
A pressa de
aparecer, o prurido de destaque a todo transe, o desejo incontido de chamar
a atenção, sem estudo, sem trabalho paciente, desde logo, de afogadilho, a
ingenuidade de certos espíritos desprovidos de qualquer preparo, o desequilíbrio
de alguns cérebros, o ardor da mocidade, tais são, entre outros, os principais
móveis que determinaram o futurismo e caracterizaram os adeptos dessa escola.
[...] Em regra todo o futurista é ignorante, ambicionando galgar a glória
imediata, de um salto, sem trabalho nem estudo nenhum,
trabalho e estudo são coisas estafantes, desagradáveis e o que há a
aprender em ciência e arte é ilimitado.
É evidente que os primeiros modernistas estavam atentos à problemática
cultural brasileira marcada pela necessidade de forçosamente combinar os impulsos
de modernização fornecidos pela Europa com o anseio de autenticidade. E por
isso alertavam enfaticamente:
Futurismo nacional, filho legítimo de São Paulo.[...] Desejamos ser
atuais. Atuais de França e Itália como da América do Norte e de São Paulo.
Antes mesmo de 22, este já era um terreno demarcado, basta rever as
crônicas de Menotti no Correio Paulistano,
de Oswald no Jornal do Commercio
e de Sérgio Buarque de Holanda na revista Fon
Fon:
[...]
Não se prendem aos de Marinetti, antes têm mais pontos de contato com os moderníssimos
da França desde os passadistas Romain Rolland, Barbusse e Marcel Proust até
os esquisitos Jacob, Apollinaire, Stietz, Salmon, Picabia e Tzara.
Meses
mais tarde volta a insistir em outra revista:
[...] leram Apollinaire, Jacob, Salmon, Marinetti, Cendrars, Cocteau,
Papini, Soficci, Palazzeschi, Govoni, leram os imagistas ingleses e norte
americanos. Mas em lugar de os tomarem por mestres, desenvolveram na medida
do possível a própria personalidade, tomando-os apenas por modelos de rebeldia
literária.
[8]
A dinâmica e o poder de difusão do futurismo marinettiano atraíam pela
capacidade de sistematizar com clareza os postulados da renovação do código
literário e pela eficiência em difundir sua doutrina. Outras razões poderão
ser arroladas: O histórico artigo ‑ "Meu poeta futurista"
‑ de apresentação da poesia marioandradina feita por Oswald de Andrade
e o simples fato de que a Semana de 22, no começo, estava sendo preparada
e divulgada na imprensa com o título de Semana Futurista. (Seus idealizadores,
a princípio, pensaram num Salão nos moldes daqueles organizados por Félix
Pacheco, “Hora literária”, por Demétrio Seabra, “Sábado literário” e por Amadeu
Amaral, no Estadão). Um dia imediatamente após o término
do festival, Oswald voltou à cena para desfazer de uma vez por todas qualquer
compromisso com os italianos:
Futuristas de São Paulo, personalíssimos e independentes
não só dos dogmazinhos do marinetismo como mesmo de qualquer outro jogo mesquinho.
Futuristas, apenas porque tendíamos para um futuro construtor, em oposição
à decadência melodramática do passado que não queríamos depender.
As obras apresentadas durante a Semana apenas aparentemente defendiam
idéias esdrúxulas e extravagantes para o pacato contexto cultural brasileiro
da época e foram imediatamente tachadas pelos críticos de mimese do futurismo
que, a pretexto de revolucionar a literatura, lhe aplicava "uma camisa
de força". A generalização passou a ser norma. Toda inovação estapafúrdia
associava‑se ao futurismo. O "mal exótico" contaminava o discurso
de diversos políticos e de muitos colunistas. Um jornal flagrou o então candidato
à Presidência da República aderindo ao futurismo, quando adotava uma "retórica
pernosticamente chula" nos seus pronunciamentos (ver artigo “Ridendo”,
capítulo III, deste livro).
Os opositores não estabeleciam diferenças entre as diversas tendências
que impulsionaram os paulistas a proceder a “emancipação artística” e teimavam
em detectar em tudo apenas futurismo. Os modernistas, por sua vez, insistiam
na convivência enganadoramente cáotica de propostas diversas:
Os bravos
que acabam de escandalizar a Paulicéia...representam todas as modalidades
da nova estética. São futuristas, cubistas, dadaístas, bolchevistas. Cada
uma destas modalidades tem o seu traço diferencial, mas todas elas anseiam
por verter na obra de arte...o movimento,
o dinamismo, a convulsão tetânica da vida contemporânea.
Mesmo sem condições ainda de absorver o rol das teorias modernas tão
díspares, pelo menos os Andrades do Futurismo, estavam atualizados com as
novidades. É verdade que, até 22, pelas leituras e pelos poucos contatos com
algum artista estrangeiro. O pintor suíço John Graz foi um deles. Veio para
o Brasil em 1920, expôs nessa época em São Paulo e participou inclusive da
Semana. Artista multimídia, deve ter discutido com os colegas brasileiros
sobre os movimentos da vanguarda européia. O mesmo possivelmente ocorreu com
o escultor Wilhelm Haarberg, recém chegado da Alemanha. A prova dessa informação,
ainda superficial, sobre o panorama artístico estrangeiro, são os artigos
de Oswald e Menotti
[9]
, preocupados em trocar em miúdos as manifestações das diferentes
vanguardas européias. Um dos textos de Oswald no Jornal
do Commercio, na época, foi dedicado ao Cubismo. Além de explicar e justificar
essa “geometria pictórica revolucionária”, colocou em pauta idéias originais
e nivelou em importância esse movimento plástico com o Futurismo. Entendia
o Cubismo como reação construtiva de toda a pintura moderna e o Futurismo,
"não o marinetismo", aliás, fazia questão de frisar, como a reação
construtiva da literatura moderna. É interessante ressaltar que esse artigo
foi publicado durante os preparativos da Semana, antes, portanto, de Oswald
viajar para a Europa e de conhecer a pintora Tarsila do Amaral. E como Mário,
que na versão de 22 da Escrava que não
é Isaura, prega uma poesia selvagem, áspera, livre, ingênua, sincera,
não deixou de situar a lição de Rimbaud:
[...]
hoje se podem desenhar irmanadas na mesma delinqüescência o simbolismo e o
impressionismo, última parada sentimental do século de Mme. de Staël. Aquele
que deu Verlaine e Rimbaud, este deu Renoir e Cézanne iniciam pujantemente,
em meio da mascarada romântica, o século atual, construtor trágico e violento.
No que diz respeito ainda às inter-relações com a Europa, merecem destaque,
nestes artigos de jornais, as epígrafes escolhidas por Mário para ilustrar
os seus textos: clássicos portugueses como Fr. Luís de Sousa (que também esteve
presente na Paulicéia desvairada),
Camões, D. Dinis e o tão achincalhado Rui Barbosa. Estas citações, a enfática
declaração de Oswald de Andrade sobre a sua dívida literária para com Eça
de Queirós e outros portugueses ilustres, a ligação de Antônio Ferro com os
nossos modernistas, bem como de Ronald de Carvalho com o grupo Orpheu levam-me
a propor uma reflexão diferente da habitual sobre o relacionamento da vanguarda
brasileira com a cultura e a arte portuguesas
[10]
. Trata-se de um aspecto do nosso modernismo a ser mais
explorado, apesar da bibliografia existente. Acredito que o projeto modernista,
relativizadas as questões de estreito nacionalismo, repudiava o mesmo ranço
bolorento e passadista que se podia registrar nas várias literaturas européias
e que precisou do radicalismo das vanguardas para atenuá-lo. Os brasileiros
estavam dispostos a não mais imitar uma certa literatura francesa, uma certa
literatura italiana e da mesma forma uma determinada literatura portuguesa.
Em resumo, havia um sentimento de cópia e inadequação causado no Brasil pela
manipulação da cultura ocidental, naquele momento estagnada sem traços de
novidade e invenção, distante do presente. O alvo, portanto, era o “anacronismo
das normas tradicionais da arte e não a própria substância do passado eternamente
moldável às feições novas da sensibilidade”, como bem diagnosticou Sérgio
Milliet
[11]
. É bom lembrar que os modernistas portugueses, conscientes
da situação peculiar do seu país em relação à Europa, viviam o mesmo dilema
dos seus colegas brasileiros. Pesquisavam uma saída criativa para a constituição
de um perfil cultural norteador da sua identidade e se debatiam com a renovação
dos processos técnicos literários, também de inspiração externa
[12]
. E por falar em passado, no âmbito da nossa tradição literária,
e da parte da liderança esclarecida do modernismo, é interessante lembrar
o reconhecimento da literatura inventiva de muitos dos nossos escritores,
hoje clássicos. Um deles foi Machado de Assis, preservado por Oswald, no calor
do embate de 22:
Nos
seus romances, que são, de resto, nossas melhores obras de ficção, não há
um desvio inútil de paisagem, nenhuma gafe lírica.
Pela leitura desses artigos percebe‑se que não houve discussões
aprofundadas sobre a arte moderna, com exceção de um ou outro texto. Talvez
devido ao veículo usado: basicamente o jornal. Nos debates, notava‑se
um tom ressentido em virtude do ataque a figuras tradicionais da pintura,
da música e da literatura. Carlos Gomes passou a ser de repente uma "besta",
Castro Alves um "batateiro". E por revide, do lado oposto, a insistência
em considerar tudo "pagodeira de moleque":
Este movimento,
pois, é uma manifestação da mais desabusada improbidade artística de que há
memória, um verdadeiro estelionato praticado por sujeitos que, simples aprendizes
desastrosos, reles imitadores, pretendem intrujar o público dizendo-se gênios
autênticos, originais, livres e pessoais.
Da parte dos modernistas, aproveitou‑se o clima de animosidade
e encarou‑se com humor a batalha verbal que acontecia na imprensa. Tendo
em vista a reação dos oponentes, os epígonos parnasianos, não restava outra
saída a não ser administrar a "consagração da vaia". O fato é que,
de ambos os lados, partiram provocações do tipo: "almofadinhas da estética",
"poetas de verso feito à régua" etc. A linguagem empolada e conservadora
de quase todos, o tom ingênuo e provinciano dos debates provocam no leitor
boas risadas. Muitos esqueceram que estavam discutindo sobre arte moderna,
mesmo alguns modernistas inimigos declarados do palavreado pomposo e oco,
como Mário. Um dos exemplos desta postura é o seu debate (“Pró e Contra”)
com Cândido onde adota em muitas passagens o linguajar dos conservadores.
Para organizar os artigos optei por agrupá-los em ordem cronológica
em duas partes - “Bárbaros e futuristas”
e “A consagração da vaia” - considerando a posição crítica adotada em relação
à Semana. Na tentativa de reconstituir o clima de época, muitas das pilhérias
em torno do evento foram reproduzidas no apêndice: “A semana na boca do povo”.
Mesmo correndo o risco de uma eventual repetição, achei conveniente transcrever
parte do noticiário - A semana em notícia - , a fim de que se possa avaliar
o tipo e a extensão da divulgação. Dessa forma, o leitor terá uma idéia de
grande parte do material jornalístico contemporâneo à Semana de Arte Moderna.
No que tange às ilustrações, escolhi algumas ainda não reproduzidas
em livro. Selecionei as charges de Belmonte da revista A Garoa e as tarjas, imitando fotogramas confeccionadas por Voltolino,
que enfeitavam a primeira página do influente jornal A Gazeta, dispostas logo abaixo do cabeçalho
e como os textos, aqui recolhidos, todas pertinentes ao assunto e publicadas
em 22.
Maria
Eugenia Boaventura
NOTA DA EDIÇÃO
A ortografia foi atualizada,
a pontuação corrigida, nos casos de evidente gralha. Todas as epígrafes foram
localizadas e transcritas de acordo com a versão original, no caso de ter
havido equívocos, durante a impressão; também foram revistas, dentro desse
mesmo critério, as citações no corpo dos textos.
* Título inspirado em uma das notícias da
Semana publicada em A Careta,
R.J. 04 maio 1922. Esta pequisa foi realizada na Biblioteca Municipal Mário
de Andrade, no arquivo Público do Estado (São Paulo), e na Biblioteca Nacional
(Rio de Janeiro). Uma versão primeira foi apresentada, em conferência, por
ocasião das comemorações dos 70 anos da Semana de 22, no Instituto de Estudos
da Linguagem, UNICAMP, em 1992.
[2]
Mário da Silva Brito. História do modernismo brasileiro. S.P.
Saraiva, 1958.
[3]
“Arte do centenário”. Jornal do Commercio. S.P. 16 maio 1920.
[4]
Além de Mário da
Silva Brito, Aracy Amaral em Artes
plásticas na semana de 22 (S.P. Perspectiva, 1979) pioneiramente apontaram
a riqueza histórico-documental dos textos agora apresentados ao leitor.
Recentemente surgiram alguns livros dedicados à Semana:
Francisco Igreja. A semana regionalista de 22. S.P. Edicon,
1989. 116p.
Eliana Bastos. Entre o escândalo e o sucesso. Campinas, Editora da UNICAMP, 1991.
198p.
Francisco Alembert. A semana de 22. S.P. Scipione, 1992. 104p.
Jácomo Mandatto (org.). A “semana” revolucionária. Campinas, Pontes,
1992. 98p.
Franklin de Oliveira. A semana de arte moderna na contramão da história.
R..J. Topbooks, 1993. 157p. (Este livro apesar do título não trata diretamente
da Semana)
[5]
Cf. Abguar Bastos. O café, pai
do movimento modernista de 1922. Diretrizes.
R.J. 24 jun. 1943.
[6]
Jornal do Commercio. S.P. 1924.
[7]
Annateresa Fabris. O futurismo paulista. S.P. Pespectiva/EDUSP,
1994. 296 p.
[8]
O Mundo Literário. R.J. 05 jun. 1922. As crônicas
deste autor foram reunidas por Antônio Arnoni Prado em O espírito e a letra. S.P. Companhia das
Letras, 1996.
[9]
A propósito dos artigos deste
escritor na imprensa paulista conferir: Yoshie Barreirinhas. Menotti del Picchia, gedeão do modernismo –
1920-1922. R.J. Civ. Brasileira, 1983. Nesta antologia optamos por incluir
apenas os textos do escritor que não foram transcritos naquele livro.
[10]
É interessante lembrar as epígrafes
do Serafim Ponte Grande, extraídas
da Arte de furtar (atribuída ao
Pe. Vieira).
[11]
Diário crítico.
S.P. Martins, vol. II.
[12]
Um
interessante artigo de Ellen W. Sapega esclarece um pouco esta questão:
“Futurismo e identidade nacional nas obras de Almada Negreiros e Mário de
Andrade”. Colóquio. Letras. Lisboa,
149/150, jul. dez. 1998. p. 241-251.
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Telefone: (11) 3091-4008