Projeto de extensão da FEF reúne bailarinos com e sem deficiência
Há duas semanas, mais ou menos, o Facebook ofereceu aos usuários uma opção de vídeo sobre o sentido de viver em comunidade. Sem pretensão aqui de analisar a rede, especialmente na página da bailarina Keyla Ferrari, aluna de doutorado da Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp, ela acerta em mostrar na primeira foto bailarinos da Cia. de Dança Humaniza, parceira da Universidade no projeto de extensão Inclusão pela Dança. Já conhecido pela participação em eventos de dança, matérias jornalísticas e premiação, há 15 anos a companhia atua com aproximadamente 30 bailarinos em cadeira de rodas e síndrome de Down em sua maioria. As experiências acumuladas ao longo do tempo foram inseridas na Unicamp em 2009, quando Keyla ingressou no mestrado em educação física, com orientação do professor Paulo Ferreira de Araújo.
Keyla prometeu duas coisas à mãe, vítima de câncer de mama: ser professora de surdos e dançar na televisão. Hoje, a bailarina está entre os alunos que trazem a extensão na bagagem para enriquecer a pesquisa e devolver respostas mais ricas e eficazes à sociedade. Especializou-se em educação especial, é professora universitária e professora de Libras, mas desde 2003, decidiu incluir pela dança, já que é formada em balé.
Com a professora desde o início, sua primeira aluna, Maria Aparecida Correa (Tenca), viu crescer a roda da inclusão em diferentes espaços pelos quais Keyla passou com a escola de dança, superando as dificuldades, principalmente de ordem financeira, comuns a projetos desta natureza. Hoje, o CIS Guanabara, órgão da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (Proec), é mais que o ambiente onde Tenca realiza o sonho de dançar; é o espaço onde, a cada semana, recebe novos amigos. “A maneira como o grupo se formou foi interessante. Veio o primeiro aluno em cadeira de rodas, depois outro, as crianças com síndrome de Down, hoje adolescentes e jovens”, lembra Keyla. Sem contar as mães e alunos vítimas de acidente vascular.
Mas o segredo da receita não está somente na possibilidade de dançar, e sim na importância de promover o desenvolvimento de todos os envolvidos a partir do contato. Sem tirar o mérito e com a devida valorização a iniciativas voltadas para o brilho da ribalta, Keyla acredita na afetividade e na melhoria da qualidade das relações por meio da arte. Às vésperas da defesa, o doutorado é dedicado às relações entre mães e filhos com deficiência. Um olhar aguçado pela inclusão da família, principalmente mães, nas coreografias. Cláudia De Luca e Aryane Masson, primeiras bailarinas com deficiência certificadas pela Unesco em 2015, interagem com a família no palco. Regina De Luca e Cristina Masson, as mães, compõem coreografias como “Ensaboa”, música conhecida na voz de Marisa Monte. A coreografia representa justamente um trabalho comunitário entre as lavadeiras em cena, a partir de gestos delicados, detalhe que chama atenção no discurso gestual de Keyla.
Rosemary Longo, bailarina também certificada pela Unesco, encontrou na dança uma importante aliada das sessões de fisioterapia e terapia ocupacional, mas com um tempero a mais: a possibilidade de interagir com novos amigos e, por que não, com o público. “Além de nos encontrarmos uma vez por semana, sempre têm apresentações em escolas, às vezes numa praça, no Sesc, no Teleton, então tudo isso são pequenos desafios que acabam acrescentando. E mais: as amizades, a paciência da Keyla, essa amorosidade que ela tem. Aqui, eu cresço também por conviver com pessoas com deficiências diferentes da minha. A Keyla traz muito porque ela valoriza o que cada pessoa naquilo pode fazer. Não há cobrança. As coreografias são muito bonitas.”
Aquele papo de que somente a mãe corre não vale no projeto. Apesar da timidez para encarar o palco, é comum a Estação da Mogiana (hoje CIS) ser preenchida por mães, pais, avós, amigos. Enquanto aguardam o fim das aulas, as famílias se integram, combinam encontros e sempre acontece uma roda de conversa com profissionais de diferentes áreas, como psicologia, ou autores de livros.
A comunicação tem papel importante desde a origem da escola de dança. A família de Tenca descobriu a professora por meio de um jornal comunitário e Nanci Katao Mizumoto, mãe de Beatriz Mizumoto, em um programa de TV; até chegar a um ponto em que Keyla não se permite parar. Diante disso, a busca por mais parceiros e por bailarinos sem deficiência também é constante para que o projeto tenha continuidade. “Temos jovens voluntários, como a Jordana Devaston, estagiários, mas nosso grande desafio é aumentar a participação e a permanência de jovens sem deficiência. O projeto nasceu do desejo de interação entre pessoas com e sem deficiência. E o projeto é aberto: se chegar um aluno surdo, ele será atendido, se chegar aluno cego, será atendido”.
Atualmente, além de jovens monitores, voluntários e estagiários de vários cursos e universidades, o projeto conta com um professor de teatro, Silvio Leme, e um de dança, Vanderlei Falcão. Muitas pessoas já passaram pelo projeto, mas principalmente no caso dos jovens, precisam sair quando terminam os estágios. A esperança da bailarina é que estes jovens se inspirem em fazer o mesmo em suas atividades profissionais cotidianas onde quer que atuem.
De acordo com Araújo, a FEF tem uma experiência reconhecida em educação física adaptada e mesmo que o aluno não vá atuar com pessoas com deficiência, é importante frequentar as disciplinas da grade curricular. Para ele, ao levar a experiência de inclusão com pessoas com deficiência na dança para a academia, Keyla coloca a Faculdade de Educação Física num patamar internacional, já que, por meio de seu trabalho na escola de dança e do projeto de extensão, ela foi convidada para oferecer aulas em outros países e em 2015 foi convidada a presidir a sessão do Conselho Internacional de Dança (CID) da Unesco em Campinas. “Ela foi à Grécia, a convite do presidente do CID”, acrescenta Araújo.
O professor ressalta frutos do trabalho como o Congresso Internacional de Dança em Campinas, em 2015, publicação de artigos em periódicos da área de educação física e pedagogia, mestrado, doutorado e livros, como Encontros da Dança, de autoria dele, Keyla e Rosangela Barnabé. Araújo enfatiza também a importância de o projeto acontecer num espaço de uma pró-reitoria, especificamente no CIS Guanabara, na região central de Campinas.
Parceira de Keyla há 15 anos, a psicopedagoga Marcelina Duarte reforça a importância do fundamento teórico no trabalho de Keyla e pontua a capacidade da bailarina de valorizar o respeito ao potencial dos alunos, fazendo com que sejam vistos como artistas capazes de promover um espetáculo, e não como pessoas com deficiência em superação. “Quando recebi o convite, achei que como educadora, eu teria muito a oferecer, mas logo que cheguei, vi que eu aprendo muito com eles. Aprendi que temos nossas deficiências também.”
Keyla também insere a comunicação em Libras entre os pais, por meio da música. Para as famílias, o aprendizado vai além do projeto de extensão, mas qual é o papel da extensão senão o objetivo de refletir sobre a própria vida, a do outro e tentar melhorá-las no campo do conhecimento e da sabedoria. “Ela deixa o filho pequeno para cuidar de minha filha. Procuramos a Keyla porque a Beatriz era agitada aos 5 anos de idade. Faz 15 que estamos no projeto. Muitos veem a dança com glamour; vi que é muito mais que isso. Não sabia que era tão disciplinar. Não há uma apresentação em que ao vermos a Bia de coque, esperando a vez dela, não nos emocionamos”, revela Nanci.
Desta vez, o lado bom da rede social acertou no tema, ao despertar nas pessoas o desejo de viver em comunidade. Em 2017, Keyla encontrou na dança, especialmente nas aulas e eventos da Humaniza, a força para lutar contra um câncer de mama. Como forma de gratidão à Universidade, mesmo sob efeito do tratamento, se apresentou em dois dias do Outubro Rosa para a comunidade do Hospital da Mulher José Aristodemo Pinotti (Caism). Na trajetória de recuperação, não há um sábado ou um convite para um palco voluntário ao qual diga: “Não”. Diz sempre: “Sim, obrigada”.
Mais no vídeo:
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