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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 09 de novembro de 2015 a 15 de novembro de 2015 – ANO 2015 – Nº 643Dissertação rende a mais consistente casuística sobre ambiguidade genital
Estudo feito por médica abrange todos os casos atendidos ao longo de 23 anos no Hospital de Clínicas da UnicampA mais consistente casuística sobre ambiguidade genital em nível internacional, avaliando a frequência dos diagnósticos, a idade e a definição do sexo de pacientes com o denominado distúrbio da diferenciação do sexo (DDS) é o resultado da dissertação de mestrado da endocrinologista pediátrica Georgette Beatriz de Paula, orientada pelo professor Gil Guerra Júnior e apresentada na Faculdade de Ciências Médicas (FCM). Foram incluídos todos os casos atendidos entre janeiro de 1989 e dezembro de 2011no Hospital de Clínicas da Unicamp, seguindo o critério de definição de ambiguidade genital proposto pelo Consenso de Chicago de 2006.
“Um estudo com esta casuística é pioneiro no mundo: são 408 casos estudados no período de 23 anos, em um único serviço, com a mesma conduta e os mesmos exames”, afirma o orientador Gil Guerra Júnior, que coordena o Grupo Interdisciplinar de Estudos da Determinação e Diferenciação do Sexo (Giedds) da FCM. “O principal trabalho existente, publicado no ano passado, envolve 600 casos, mas relacionados a todos os países europeus e a serviços completamente diversos. Esta casuística no Giedds–HC é muito mais homogênea e muito mais importante para analisar resultados no longo prazo.”
Georgette de Paula informa que os casos são de pacientes vindos de várias partes do Brasil, principalmente de famílias angustiadas com o fato de o médico, ao nascimento, não conseguir dizer qual é o sexo da criança. “Aqui, através de uma equipe multiprofissional realizamos uma investigação para chegar a um diagnóstico. É importante que os pacientes sejam acompanhados não apenas por um médico, mas por especialistas (em endocrinologia pediátrica, genética, cirurgia pediátrica), psicólogos e assistentes sociais. Temos tudo isso para assessorar a família.”
Normalmente, segundo Gil Guerra Júnior, o diagnóstico do sexo de um recém-nascido é feito visualmente observando a genitália, mas em alguns casos isso não é possível. “Recebemos dois grupos de crianças: aquelas com evidente alteração genital e que o pediatra não teve condições de saber se era menino ou menina, encaminhando-as ao nosso serviço; e aquela em que a alteração é tão sutil que nem família nem pediatra percebem, nos procurando tardiamente, por vezes até na puberdade. São situações complexas, que causam dois problemas: além da angústia da família, a possibilidade de haver uma doença causando a ambiguidade.”
O docente da FCM explica didaticamente que, em uma genitália aparentemente masculina, há três características mais importantes de anormalidade: o pênis pequeno; a hipospádia (abertura do canal da urina não na ponta do pênis, mas geralmente mais abaixo, em direção à região escrotal); e os testículos não palpáveis. E, quando a genitália é aparentemente feminina: clitóris aumentado; os grandes lábios fechados, como se formasse uma bolsa escrotal; e massa na região inguinal, que pode indicar um testículo quando palpada.
MENINOS PREDOMINAM
Em seu levantamento, Georgette de Paula avaliou a idade das crianças na chegada ao serviço do Giedds–HC, os cariótipos (união de cromossomos), se já tinham registro civil ou não, mudanças de registro, permanência no mesmo sexo e os diagnósticos. “Dentre os 408 casos de ambiguidade genital, mais da metade dos diagnósticos foi de pacientes de cariótipo 46,XY, com 250 casos (61,3%); 124 pacientes eram 46,XX (30,4%); e 34 com aberração de cromossomos sexuais (8,3%)”, informa a autora da dissertação.
Os pesquisadores explicam esta codificação relembrando que o indivíduo, quando é formado, recebe 44 autossomos (22 cromossomos do pai e 22 da mãe), mais dois cromossomos sexuais: um X da mãe (que é XX) e X ou Y do pai (que é XY, ou seja, o homem determina o sexo). A junção dos cromossomos resulta em cariótipo 46,XX ou 46,XY – e um erro nesta passagem dos cromossomos do pai e da mãe implica linhagens diferentes e anomalias. De forma mais rara, 10% ou 15% dos casos são de aberrações cromossômicas, com crianças que possuem as linhagens masculina e feminina associadas.
Gil Guerra Júnior conta que já se esperava encontrar mais pacientes com ambiguidade genital de cariótipo 46,XY e do sexo masculino. “Isso porque a formação da genitália masculina, interna e externamente, é muito mais complexa tanto do ponto de vista genético como hormonal: qualquer erro na produção, na época de produção ou na quantidade de hormônios vai resultar em alguma alteração. A formação da genitália feminina, por outro lado, é mais simples, pois decorre da ausência dos hormônios masculinos.”
OUTRAS MORBIDADES
Georgette de Paula aponta outro dado relevante de sua pesquisa e ainda não descrito devidamente na literatura, que é o fato de mais de 20 crianças apresentarem outras morbidades além da alteração genital, como malformações do coração, da coluna vertebral, dos rins e vias urinárias ou outros dimorfismos. “Por isso temos aqui uma equipe multiprofissional, incluindo especialistas muito bem qualificados em genética que têm outro olhar sobre esses pacientes.”
A autora da dissertação observou ainda que, apesar da maioria de pacientes com cariótipo 46,XY, aqueles que chegaram mais precocemente ao serviço do Giedds–HC foram 46,XX, o que ela atribui ao diagnóstico de hiperplasia adrenal congênita (HAC) – doença genética que na sua forma mais grave, chamada perdedora de sal, traz risco de morte; e que no sexo feminino causa uma masculinização da genitália externa e aumento do clitóris. A importância deste diagnóstico levou o Ministério da Saúde a implantar recentemente o exame na triagem neonatal em todo o país, incluído no “teste do pezinho”.
De acordo com Georgette, o peso de nascimento abaixo de 2.500g foi registrado em 42 casos de DDS 46,XY testicular, em consonância com a literatura, que indica que o crescimento das células é importante não só para o corpo como um todo, mas também para os órgãos genitais. “Como a diferenciação masculina é mais complexa, algumas explicações estariam em fatores que levam a alteração placentária durante a gravidez, com restrição de crescimento intrauterino, predispondo a maior alteração genital.”
PROCEDIMENTOS
A investigação diagnóstica, conforme Gil Guerra Júnior, começa com o exame clínico e os exames hormonais e citogenético (cariótipo), que geralmente são suficientes para a definição do sexo. “Se necessário, realizamos cirurgias diagnósticas para observar a genitália internamente: se há útero, ovário, um duto diferente, testículos, etc.; mais raramente, recorremos a biópsias para análise histológica. Com esses exames chegamos a um diagnóstico preciso em mais de 90% dos casos e, por vezes, confirmamos esse diagnóstico com outros exames mais sofisticados, como os moleculares.”
O docente da FCM acrescenta que os procedimentos cirúrgicos são complexos para ambos os sexos, porém maior para os meninos. “A dificuldade está em refazer o canal da urina para levar a abertura até a posição correta, o que pode exigir duas ou mais cirurgias; sem isso, o menino não conseguirá urinar em pé, sendo obrigado a adotar a posição feminina, sentado – e mais tarde virá a questão da condução do esperma na relação sexual. Quando o pênis é pequeno, realizamos um tratamento com reposição hormonal na infância para que alcance o tamanho normal na puberdade. Para a menina, a complexidade está em ampliar a vagina para assegurar uma relação sexual adequada no futuro; por vezes, é necessária nova abordagem na puberdade.”
REGISTRO CIVIL
Georgette de Paula constatou que dos 408 casos de ambiguidade genital assistidos na Unicamp, 238 tiveram o sexo de criação final masculino e 170, feminino. Um aspecto agravante nestes casos é que entre 50% e 60% das crianças chegam já registradas (com idade acima de seis meses). “A recomendação ao pediatra é que, na dúvida quanto ao sexo, não deixe os pais registrarem esse bebê antes de encaminhá-lo a um serviço de referência para o diagnóstico correto. Quem não tem conhecimento confunde alteração genital com o que antigamente era visto como hermafroditismo, quando existem muitos diagnósticos para esta situação.”
Gil Guerra Júnior pondera que a criança já registrada com um sexo, e que se descobre tardiamente não ser o correto, representa um sério problema não apenas do ponto de vista médico, mas também psicossocial. “Com este atendimento especializado multidisciplinar é possível eliminar a dúvida de forma ágil, em duas ou três consultas, deixando a família segura quanto aos procedimentos que serão realizados. Definido o sexo, conversamos muito com a família sobre a necessidade ou não de modificar a genitália e definir o registro civil. Se a criança já está registrada, evitamos ao máximo a mudança de sexo, principalmente nas maiores, já criadas como menino ou menina.”
NEM TÃO RARA
Embora não exista uma incidência de alteração genital definida no mundo, o coordenador do Giedds menciona trabalhos recentes registrando uma proporção de 1 para 2.500 a 4.000 nascidos vivos. “Consideramos ainda como uma doença rara, mas que está no limite de frequência em que os médicos devem conhecê-la. Um aspecto importante deste trabalho é de mostrar ao pediatra, primeiro médico da criança, que a ambiguidade genital não é tão rara, bem como suas implicações. Trata-se de uma casuística grande sobre os diagnósticos corretos e a melhor evolução para cada um deles. O pediatra deve tranquilizar a família, assegurando que aquela criança tem um sexo, sim – e nunca dizer que ela não tem sexo ou que tem dois sexos. E que assim como para os problemas do coração, por exemplo, para a ambiguidade genital também existem exames e tratamento.”
Publicação
Dissertação: “Diagnóstico de 408 casos de ambiguidade genital acompanhados por uma única equipe interdisciplinar durante 23 anos”
Autora: Georgette Beatriz de Paula
Orientador: Gil Guerra Júnior
Unidade: Faculdade de Ciências Médicas (FCM)