Reprodução

Os Direitos Humanos e o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial

Edição de imagem


Foto: PerriMário Augusto Medeiros da Silva é professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Campinas. Recebeu o Prêmio para Jovens Cientistas Sociais de Língua Portuguesa, do Centro de Estudos Sociais, da Universidade Coimbra, em 2013. Autor de A Descoberta do Insólito: literatura negra e literatura periférica no Brasil (1960-2000), Rio de Janeiro: Aeroplano, 2013.


 

Artigo II: "Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição "

(Declaração Universal dos Direitos Humanos)


É desafiador escrever um texto sobre o tema dos Direitos Humanos aliado ao Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, instituído pela Organização das Nações Unidas, que unifica debates e vontades no dia 21 de Março.

De partida, por ser o 21 de março de 1960 que inaugura este dia marcado como data trágica pelo ocorrido na África do Sul conhecido como Massacre de Sharperville [1] , repressão violenta e mortal que o regime do apartheid submeteu a um protesto pacífico, realizado naquele bairro de Johanesburgo, de negros sul-africanos, contra a “Lei do Passe”, que limitava seus direitos de ir e vir por meio de documento. Protesto contido à bala de metralhadoras, disparadas pela polícia do regime, com centenas de feridos e mortos. A partir de 1969 aquele 21 de Março passou a figurar para a ONU como um dia de combate e luta contra a discriminação. A África do Sul e o apartheid, daquela década até a libertação de um dos maiores símbolos internacionais da luta antirracista, Nelson Mandela, em 1990, foram alvos de campanhas em diferentes partes do mundo, acionando movimentos pelos direitos civis, por exemplo, nos EUA, na Europa e em nosso país.

Reprodução
O caixão com o corpo da vereadora Marielle Franco deixa Câmara do Rio sob aplausos e pedidos por justiça | Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

É possível sustentar que, no ocidente, a ideia de direitos dos cidadãos nasce com a revolução que impõe o fim do direito de um Homem submeter outro Homem por aquele, supostamente, ter o desígnio divino para tal e mesmo diferenças corpóreas que o autorizassem a tanto. É da Revolução Francesa de 1789 de que se trata aqui e é muito importante lembrar ao menos três coisas sobre ela: 1) a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 desde a sua redação esteve em disputa, sofrendo modificações quase imediatas – quem seriam esses homens e cidadãos? E as mulheres? E os operários? 2) o papel da ciência e do conhecimento nesta revolução é fundamental, desde o ângulo jurídico ao conhecimento do corpo, colocando em xeque justificativas de diferenças biológicas entre os sujeitos, que justificassem a submissão por tais fatores [2]; 3)Este último ponto leva a outro pouco debatido: a primeira inspiração da Revolução Francesa aconteceu fora da Europa na Ilha de São Domingos. A Revolta do Haiti contra a escravidão negra, comandada pelo negro Touissant L’Overture e apoiada por escravos negros e mestiços livres, reclamou igualdade, liberdade e fraternidade de maneira radical em 1791. Os ecos da revolução circularam pela ilha do Caribe, sendo levados a sério em seu mote sobre igualdade, liberdade e fraternidade. Cyril L. R. James, historiador caribenho e autor do clássico livro Os jacobinos negros mostrou, com fontes sobre a revolução haitiana de 1791, como os negros revoltosos do Haiti incorporaram e radicalizaram aqueles princípios, até a conquista da independência do país em 1804 [3].

Isto nos importa muito, enquanto brasileiros, pois somos contemporâneos a este debate. A Revolução Francesa e seus princípios de direitos iguais aos cidadãos se impuseram aos debates realizados entre os membros de nossas elites políticas e econômicas. Também inaugurou, ainda no século XVIII, um jogo de aparências que se estende aos dias correntes. Se por um lado as ideias novas da Revolução Francesa podem ter sido inspiradoras para a nossa República no século XIX, o medo do chamado haitianismo entre os escravizados nacionais se fez de acompanhamento. Isso é muito bem explicado num importante, Onda negra, medo branco [4], da historiadora da Unicamp Célia Marinho de Azevedo. Tem-se assim um par de opostos sociologicamente relevante e permanente em nossa vida cidadã: ideias de futuro e modernidade política para os estratos sociais mais altos, medo da revolta política dos que estão embaixo e sua manutenção em condições arcaicas. Cada uma das posições com suas devidas cores de pele, classificadas e hierarquizadas. A luta contra a discriminação racial e as consequências do racismo, e doravante da efetivação e ampliação de direitos civis, atravessa nossa experiência republicana desde o início.

Em nível internacional, foram necessárias duas Guerras Mundiais, sendo a segunda o conflito com características racistas, de extermínio em massa usando a racionalização científica para fins genocidas, para finalmente agudizar a percepção, para algumas consciências, de que a primeira metade do século XX, havia alcançado um estágio de violência cultura da barbárie, insuportável. É neste contexto que se reorganiza a Organização das Nações Unidas, em 1945, e que se realiza a Declaração Universal dos Direitos Humanos, surgida em 1948 [5].

Trata-se de uma reafirmação, em 30 artigos, dos direitos civis, sociais e políticos da Revolução Francesa, influenciada pelos horrores da II Guerra Mundial. Mais ainda, uma defesa em prol dos mais fracos, que idealmente estende sua proteção aos vulneráveis do século XX: vítimas de deslocamentos forçados; apátridas; minorias étnicas, religiosas, sexuais perseguidas; colonizados; os submetidos a prisões por crimes políticos e os submetidos às condições iníquas de encarceramento entre outras. Defesa do direito à educação, ao trabalho decente, à segurança social, à livre associação, à reunião política e liberdade de expressão, ao julgamento justo e contra as torturas e tratamentos degradantes. Uma pauta internacional para movimentos sociais e em defesa dos Direitos Humanos.

Entre nós, o tema dos Direitos Humanos, atrelado ao debate Discriminação Racial, faz emergir questões irresolutas e tristemente atualizadas: da ausência de pessoas negras em espaços de poder e decisão em diferentes instâncias de nossa vida civil, passando pelo debate sempre acirrado acerca de políticas de ação afirmativa e cotas para negros e indígenas – ambas atualizam a reivindicação histórica pelo direito à educação - alcançando a realidade do genocídio da população negra, pauta dos movimentos sociais negros há décadas e que, infelizmente, se confirma como uma necessidade de combate pelo direito à vida nos dias correntes. De acordo com o Atlas da Violência, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em 2017 [6] com dados sobre violência entre 2005 e 2015, a cada 100 pessoas vítimas de homicídio no Brasil, 71 delas são negras. Os negros respondem por 78,9% dos indivíduos pertencentes ao grupo dos 10% com mais chances de serem vítimas fatais. Esses dados atualizam negativamente a pesquisa publicada em 2012 pela equipe do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos (Cebela), a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) e a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir), responsável pelo Mapa da Violência: a cor dos homicídios no Brasil [7]: ali, jovens negros entre 15 e 24 anos, numa etapa crucial de suas vidas escolares, do ensino médio à faculdade, correspondiam a 72% dos mortos violentamente em nosso país.

Neste março de 2018 brasileiro, quando se aniversariam 130 anos da Abolição, numa mesma semana repercutiu a comemoração de debutante no Pará, cujo tema era “Escravidão”, e que contou com pessoas negras “fantasiadas” de escravas e pessoas não-negras de senhores [8]. No decorrer dos dias, ocorreu ainda o assassinato da socióloga, vereadora negra, ativista lésbica e de movimentos sociais ligados às favelas, Marielle Franco, na cidade do Rio de Janeiro. Ela foi assassinada num dos países campeões do feminicídio, segundo os dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) [9]: o Brasil ocupa o quinto lugar num ranking de 83 países mapeados em dados sobre mortes violentas de mulheres: 4,8 a cada 100 mil mulheres brasileiras, sendo que entre os anos de 2003 a 2013, o assassinato de mulheres negras cresceu 54%, de acordo com a OMS. A pesquisa do IPEA atualiza este crescimento para 2015 para 65,3% de participação de mulheres negras entre as mulheres mortas vítimas de violência. Uma semana de triste atualização de horríveis fatos históricos do passado e do presente.

No Brasil, as populações originárias chamadas de indígenas e os descendentes de africanos negros, junto a pobres, mulheres, deficientes e homossexuais compõem, grosso modo, um contingente de sujeitos históricos que pugila pela ampliação de seus direitos civis, sociais e políticos: vida, ir e vir, liberdade de expressão, moradia digna, trabalho decente, educação, saúde, seguridade, associação política, entre outros. A violação de direitos é flagrante em vários desses casos: o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) registrou, em 2016, 118 mortes violentas de indígenas [10], o que acompanhava os dados do Conselho de Direitos Humanos da ONU, sobre o assassinato de lideranças indígenas brasileiras entre 2007 e 2014: de 92 para 138 mortos. A ONG Grupo Gay da Bahia, apesar dos casos subnotificados, sustenta que uma pessoa do grupo LGBT é morta a cada 24 horas no Brasil [11]. Até setembro de 2017 teriam sido 277 homicídios. Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, com dados compilados pela Agência Pública de Jornalismo Investigativo, fazendeiros e empresários do agronegócio concentram 56,5% da lista dos empregadores autuados por trabalho escravo ou análogo à escravidão no Brasil, em 2017 [12].

Dados sobre acesso à educação, de 2016, segundo a ONG Todos pela Educação [13], evidenciam diferenças étnico-raciais e a dinâmica do racismo brasileiro. Brancos têm mais anos de escolaridade e também melhor remuneração salarial, ainda que os negros (pretos e pardos) sejam 52,9% da população brasileira: As estatísticas mostram que essa população, no entanto, ganha menos da média do país, que é R$ 1.012,25, segundo dados do IBGE de 2014. Entre os negros, a média de renda familiar per capita é de 753,69 entre os pretos e R$ 729,50, entre os pardos. Os brancos têm renda média de R$ 1.334,30. O desemprego é maior entre os pretos (7,5%) e pardos (6,8%) que entre os brancos (5,1%). O trabalho infantil, maior entre pardos (7,6%) e pretos (6,5%), do que entre brancos (5,4%).

As desigualdades sociais são reforçadas na educação, segundo a ONG. A taxa de analfabetismo é de 11,2% entre os pretos; 11,1% entre os pardos; e, 5% entre os brancos. Entre os brancos 70,7% dos adolescentes de 15 a 17 anos cursam o ensino médio, etapa adequada à idade; entre os pretos, esse índice cai para 55,5% e entre os pardos, 55,3%. Isso condiciona o acesso ao ensino superior.

Estas estatísticas trágicas da nossa sociedade nos informam como temos tratado os nossos mais vulneráveis historicamente. Uma condenação ao direito à vida que possui gênero, etnia, cor de pele, espaço geográfico, condição corpórea e classe bastante demarcados. Em suma, um cenário de retrocessos à pauta dos Direitos Humanos e do Combate à Discriminação Racial em nosso país.

 


 

[1] Cf. http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2010/03/100321_massacre_sharpeville_ir Acessado em 21/03/2018.

[2] Cf. HOBSBAWN, Eric. A era das revoluções- 1789-1848. São Paulo, Paz e Terra, 2012.

[3] JAMES, Cyril L. R. Os jacobinos negros: Toussaint L’Overture e a revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo, [1938]2000.

[4] AZEVEDO, Célia M. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites do século XIX. São Paulo: Paz e Terra, 1987.

[5] Tradução da Declaração dos Direitos Humanos: http://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf Acessado em 21/03/2018.

[6] Cf. http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=30253 e http://www.ipea.gov.br/portal/images/170602_atlas_da_violencia_2017.pdf Acessados em 21/03/2018.

[7] Cf.  https://www.mapadaviolencia.org.br/mapa2012_cor.php.Acessados em 21/03/2018.

[8]
https://g1.globo.com/pa/para/noticia/ensaio-fotografico-de-debutante-choca-internautas-com-negros-vestidos-de-escravos.ghtml

https://www.revistaforum.com.br/empresa-e-acusada-de-racismo-festa-tema-escravidao/
https://capricho.abril.com.br/famosos/ensaio-de-15-anos-com-tema-imperio-e-escravidao-causa-revolta/

[9] Cf. https://nacoesunidas.org/onu-feminicidio-brasil-quinto-maior-mundo-diretrizes-nacionais-buscam-solucao/

Artigos Relacionados


Direitos Humanos Unicamp

twitter_icofacebook_ico