Confira os três textos inaugurais da seção Fotografia no Jornal da Unicamp, cuja curadoria é do professor Fernando de Tacca
Margaret Mead, em um texto pioneiro, Visual Anthropology in a disciplina de words [1], anunciava a importância da criação de bancos de imagem para a memória de povos em extinção. Mead situava a antropologia como negligente até então por não se apropriar da feitura imagética e afirmava a importância da questão do registro de comportamentos culturais que estão em extinção para poderem ser formas de regaste para gerações futuras e permitir nossa compreensão sobre a história da humanidade e potencialidades humanas. E ao final do texto, profeticamente, virtude de poucos, alerta para a globalização e para a implantação de um sistema de comunicações planetário que irá introduzir um novo repertório para todos os membros de todas as sociedades. Ao mesmo tempo, ela alertava para a presença das emergentes tecnologias da imagem e não estando longe o dia em que o último vale isolado no mundo estaria recebendo imagens por satélite; estávamos um pouco antes da globalização da Internet.
Mead termina seu texto manifesto dizendo que muitas situações filmadas ou registradas visualmente não poderão ser repetidas em laboratórios, mas dados visuais e sonoros coletados, anotados e preservados adequadamente poderão ser reproduzidos muitas vezes, quando necessário, e poderão ser esmeradamente analisados. Ela dizia que excelentes instrumentos óticos nos têm ensinado mais sobre o cosmo, então registros com qualidade desses preciosos materiais culturais podem iluminar nosso conhecimento crescente e nossa avaliação da humanidade, como o ressurgimento, acrescento.
Entretanto, ela não poderia prever que a imagem, para além da questão memorialista, documental e de sua existência em arquivo, a ser acessado futuramente por pesquisadores ou então descendentes à procura de identidade, poderia ser portadora em si mesma de afirmação étnica e identitária por um processo de existência por similaridade: eu não sou mais o que querem que eu seja; eu posso ser você, meu vizinho índio; eu fui você, ontem; eu posso ser você hoje; eu posso ser coletivo.
A constante perda dos valores culturais forjada no contato e no aculturamento de povos indígenas, que buscava antes de mais nada somente uma forma de dominação e subordinação desses povos, era de tal forma autoritária e destrutiva que não permitia deixar rastros étnicos, como a língua, costumes e rituais. A falta de lugar social para esses povos marginalizados pelo Estado e ideologicamente alimentados pela religião dominante cristã, levou essas populações para um deslocamento do lugar original para outro que seus dominadores queriam perpetuar. As imagens das danças do chão batido são evocadas pela poeira mágica levantadas pelo arrastar de centenas de pés de seu entorno, como nuvens identitárias únicas, construídas e recompostas de fragmentos da memória estilhaçada pelo tempo. Essas nuvens de poeira carregam a imaterialidade da identidade em construção, em novo lugar, lugar nunca antes previsto, e somente nos alertado visualmente pela produção imagética de Siloé Soares de Amorim [2].
Estar aberto para compreender, ou perceber nas imagens, que o ressurgimento somente pode ocorrer em festa e em cerimônia ritualística, assim como na alteridade e na existência de vizinhos certificadores, ultrapassa qualquer burocracia ou institucionalidade operacional dos instrumentos da política fundiária e indígena. As imagens também ultrapassam nossa visão construída historicamente de sertão e de sertanejo para localizar novas fronteiras visuais de existência. As imagens nos colocam e nos aproximam desse novo lugar nunca imaginado, e, agora plenamente vivido.
Imagens que não emocionam e não remetam para deslocamentos de nossa compreensão e estado de consciência parecem não ter lugar na nova ordem da visualidade. A profusão de fotografias em oceanos midiáticos as colocam como parte de galáxias distantes, desconectadas e sem interação, mudas e anuladas. Essa hiperfotografia social funciona nos dias atuais como bengala, biombo e vitral frente a um evento social, como a maioria das pessoas o faz, mergulhando na imagem programática. As imagens de Siloé, ao contrário, são a constatação da potência e do poder que ainda a imagem pode ter como lugar de evocação do ser, e no caso, do ser social. As imagens de Siloé incomodam porque raramente vemos essa condensação social, da experiência de um estado social gasoso para um estado líquido que flui nas inter-relações culturais.
As novas fronteiras da antropologia visual são alargadas pela relação com a arte e suas subjetividades, e para além de materialidades visuais, abre-se para a magia de um novo mundo possível e sonhado. A existência por similaridade é somente um primeiro lugar da existência, e as imagens já não diferenciam um espelhamento, e no ressurgimento são todos um só e um concreto ser social. A imersão de Siloé em anos e anos de pesquisa permitiram-lhe ver o invisível, e nos mostrar o impossível, ou o imprevisível. O que vemos, ou que as imagens querem que vejamos, é o encontro social em processo de fricção na qual elas transbordam de significados: uma nova existência, como um rito de passagem. Um novo nascer no qual a imagem como documento, como testemunha, nos emociona ainda nos tempos de perda de sua aura de realidade. Coloca-se em ação, em cena, não o evento orquestrado, mas uma concreta realização elevada de sentimentos de novos seres, uma verdadeira ficção social. A imagética desses processos interculturais efetuada pelo olhar de Siloé é pactual e dialógica; é próxima o bastante para transformar olho e alma. Nos transformamos ao ver o pó que se eleva em devoção transpassado pelos raios de luz que assenta novamente nas peles curtidas pelo sol e também sobre a sofrida mãe terra. São elos imateriais da mesma magia do ressurgimento: imagem, alma e pó.
Fernando de Tacca, curador da seção Fotografia, é professor livre-docente no Instituto de Artes (IA) da Unicamp e editor da revista Studium (www.studium.iar.unicamp.br).
[1] Publicado pela primeira vez no livro Principles of Visual Anthropology (Org. Paul Hockings, The Hague/Mouton: Chicago, pp.3-12, 1975.
[2] Sobre o livro: Amorim, Siloé Soares de. Resistência e ressurgência indígena no Alto Sertão alagoano (Maceió: Iphan-AL, 2017).
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