Especialistas mapeiam riscos e oportunidades gerados por mudanças tecnológicas potencialmente disruptivas
Economistas da Unicamp e da Universidades Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) estão produzindo um diagnóstico para a Confederação Nacional da Indústria (CNI) com o objetivo de avaliar os impactos de um conjunto de tecnologias emergentes e com alto potencial transformador sobre a competitividade industrial no horizonte de até 10 anos, além de fornecer subsídios para o planejamento de empresas e a formulação de políticas. Batizado de Indústria 2027, o projeto será concluído em abril, mas seus primeiros resultados revelam um panorama preocupante e desafiador. Preocupante porque a posição do país está longe de ser confortável nessa corrida tecnológica: em uma amostra representativa de 759 grandes e médias empresas consultadas em uma pesquisa de campo, apenas 1,6% opera no que se considera ser a fronteira tecnológica, a chamada manufatura avançada ou Indústria 4.0, com processos fabris integrados, conectados e inteligentes (ver quadro). E o panorama é desafiador porque 21,8% das mesmas empresas afirmam querer chegar a esse patamar até 2027, o que exigirá financiamento a pesquisa e desenvolvimento (P&D), mudanças organizacionais e apoio de políticas públicas.
Quarenta pesquisadores de diferentes áreas estão contribuindo para o projeto e esmiuçaram de que forma e com que intensidade as mudanças tecnológicas vão determinar a competitividade industrial. Uma das constatações é que nenhum dos 10 sistemas produtivos analisados, como agroindústria, petróleo e gás e automotivo, estará imune nos próximos 10 anos a transformações provocadas por um conjunto de oito grupos de tecnologias relevantes: IoT (internet das coisas), redes de comunicação; computação em nuvem, Big data e inteligência artificial; produção conectada e inteligente; bioprocessos e biotecnologia; materiais avançados; nanotecnologia; e armazenamento de energia.
A análise dos especialistas mostra, contudo, que ainda há tempo para se preparar para a transição. A influência dessas tecnologias é considerada disruptiva no curtíssimo prazo em poucos segmentos industriais – caso, por exemplo, do impacto de materiais avançados no setor aeronáutico ou da inteligência artificial na indústria de bens de capital. Na maioria deles, a transformação será gradual. “Boa parte do impacto ainda está por vir. Esse resultado tem um lado positivo para quem planeja, pois mostra que há tempo para criar e afinar estratégias”, afirma David Kupfer, professor do Instituto de Economia da UFRJ e um dos coordenadores do Indústria 2027. Ele observa que tecnologias relacionadas à inteligência artificial e à produção de materiais nanoestruturados exigem atenção imediata, mas na maioria dos segmentos o avanço nos próximos 10 anos será incremental. “No início da pesquisa, nos preocupávamos muito, por exemplo, com os gargalos para fornecimento de eletricidade e nos custos elevados de armazenamento de energia, mas a análise dos especialistas mostrou que a evolução vai ocorrer ao longo dos próximos 10 anos e não há um risco de curto prazo.” Mesmo no campo da biotecnologia, que é fundamental para a manutenção da competitividade da agroindústria brasileira, não há previsão de mudanças abruptas nos próximos anos.
De acordo com João Carlos Ferraz, também professor do Instituto de Economia da UFRJ, um dos objetivos do projeto é promover uma ampla discussão sobre o futuro da indústria brasileira. “O Brasil tem uma indústria diversa e heterogênea e em geral só se fala da ponta mais avançada. Estamos preocupados com as implicações para o planejamento das empresas em diferentes estágios tecnológicos e em recomendar políticas públicas adequadas”, afirma.
Articulação
O estudo mostra que as oito tecnologias-chave devem multiplicar e fortalecer os resultados umas das outras. Algoritmos de inteligência artificial, por exemplo, podem dar lastro a soluções de ciber-segurança, combinando-se com tecnologias de redes de comunicação, ou ajudar a analisar dados genéticos, em articulação com a biotecnologia sintética. Inovações em inteligência artificial, IoT e produção conectada prometem causar impactos disruptivos até 2027 em nove dos 10 setores analisados. Máquinas dotadas de sensores conversarão com outras máquinas. “Elas vão gerar grandes volumes de dados sobre o seu desempenho e, com a ajuda da inteligência artificial, poderão aprender a tomar decisões”, diz Antônio Carlos Gravato Bordeaux, consultor responsável pela área de IoT no estudo, diretor da BXTEC, empresa que trata de inovações tecnológicas. Cadeias de produção poderão trabalhar conectadas, ligando empresas e seus fornecedores. “A Internet das Coisas promete melhorar a relação da empresa com seus trabalhadores, ao monitorar linhas fabris que impõem riscos à segurança e ajudar na prevenção de acidentes”, afirma Bordeaux, que foi diretor de gestão da inovação do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD), em Campinas, entre 2001 e 2013. O estudo estima que a IoT gere aumentos de produtividade de até 50%, a depender do segmento industrial.
As novas tecnologias convivem com uma acelerada redução de custos (ver gráfico). “Isso está ampliando a difusão das tecnologias”, pondera João Carlos Ferraz. Dados do site Business Insider mostram que o custo médio de sensores de IoT está na casa dos US$ 0,44 a unidade, ante US$ 1,30 em 2004. O barateamento promete impulsionar a chamada economia circular. “Depois de fabricar um produto, uma empresa poderá acompanhá-lo ao longo de sua vida útil até que possa ser reaproveitado como matéria-prima”, diz Bordeaux.
Capacidades cognitivas
O trabalho projeta cenários em que a mudança na indústria poderá acelerar-se, caso as máquinas ganhem capacidades cognitivas avançadas, mas também identifica entraves, como a dificuldade de adaptar todos os elos de uma cadeia produtiva a novas tecnologias. O acúmulo de inovações ao longo do tempo poderá gerar transformações radicais. São esperadas rupturas em modelos de negócio com a possibilidade de agregar serviços aos produtos. “A tendência é que a chamada servitização torne-se mais frequente”, diz Bordeaux. “Em vez de adquirir uma geladeira, o consumidor poderá comprar horas de utilização de um equipamento conectado, monitorado pela fabricante e substituído por uma geração mais recente quando isso for do interesse do cliente.”
Outra frente promissora é o chamado twin digital, que consiste na simulação computacional do funcionamento de uma linha de produção operando em paralelo com a fábrica de verdade, a fim de testar ações necessárias para melhorar a eficiência e a segurança. “Já são realidade, por exemplo, na indústria aeronáutica, que necessita de produtos de altíssima qualidade e em que o desgaste de peças precisa ser programado.” Segundo o consultor, a indústria vai precisar de investimentos para incorporar tecnologias e de mais cientistas de dados para trabalhar com inteligência artificial. Ele ressalta a importância de montar testbeds, plataformas sobre uso de IoT e de manufatura avançada capazes de mostrar às empresas as possibilidades de aplicação.
Circulação de informação
Se o caminho da IoT e da inteligência artificial na indústria é tangível, a percepção sobre um outro cluster tecnológico relacionado, o das redes de comunicação, ainda precisa se modificar, pois não se trata apenas de mais uma infraestrutura. Redes de comunicação são sistemas que reúnem computadores, canais de transmissão e recursos relacionados e interligados por meio do qual é possível trocar informações. “Elas servem para costurar outras tecnologias digitais, recebendo dados dos sensores de IoT, transportando informações a serem analisadas pelos sistemas de Data analytics e inteligência artificial e servindo como via de circulação de informação na produção inteligente”, explica o físico Claudio de Almeida Loural, que foi pesquisador de telecomunicações na Fundação CPqD e atuou como consultor do projeto para a área de tecnologias de redes.
Essa área apresenta tecnologias maduras, como as de fibras ópticas e as redes móveis de gerações mais antigas, mas outras ainda estão em fase de seleção. É o que acontece com a criação de padrões e protocolos para a comunicação entre as máquinas, que devem ser objeto de competição ao longo de seu amadurecimento. Loural menciona o exemplo da conectividade entre produtos. “O foco são as redes de baixo consumo de energia e longo alcance. Há vários padrões desenvolvidos ou em desenvolvimento e pode-se prever uma convivência de várias alternativas nos próximos anos.” É provável que a maioria das empresas industriais aja com cautela na hora de investir. “O investimento em redes é alto para que elas corram o risco de escolher um padrão que não vingue”, afirma. Ele enxerga uma vulnerabilidade entre as pequenas e médias empresas brasileiras. “A maior parte delas ainda não atingiu as precondições de conhecimento e infraestrutura em tecnologias de informação e comunicação para dar o salto necessário e se beneficiar das tecnologias de redes”, alerta Loural.
Baterias
A convivência de diferentes tecnologias não é um problema para o cluster de armazenamento de energia. “Não existe uma tecnologia hegemônica nem há como apontar que uma seja melhor do que a outra, porque isso depende do tipo de aplicação”, afirma Roberto Torresi, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), consultor do projeto sobre esse tema. Entre as tecnologias mais maduras que utilizam métodos eletroquímicos para armazenar energia, destacam-se as baterias de chumbo-ácido usadas em automóveis, as portáteis de íons de lítio utilizadas em equipamentos eletrônicos e carros elétricos, e as células a combustível, essas ainda em busca de viabilidade econômica. As de íons de lítio têm custos cada vez menores e são alvo de grandes investimentos no exterior (ver Pesquisa FAPESP nº 258). Isso porque são cruciais para a disseminação de carros elétricos e a instalação de sistemas de armazenagem capazes de amenizar as oscilações no fornecimento de energia a partir de fontes renováveis, por exemplo as eólicas, e de centrais elétricas mais tradicionais, como as hidrelétricas.
Esse cluster se distingue pela predominância de impactos moderados nos próximos 10 anos – ainda que na indústria automotiva o potencial já seja disruptivo. Mas novas tecnologias serão fundamentais para inovações de IoT, ao garantir a energia para o funcionamento de sensores e drones. Segundo Torresi, o Brasil está longe de ser um produtor de tecnologias nessa área, mas novas oportunidades poderão surgir se as companhias de distribuição de eletricidade brasileiras investirem em armazenamento.
Os próximos anos devem testemunhar a disseminação na indústria do uso de materiais de alto desempenho, como nanotubos de carbono, insumos para impressão em 3D e biopolímeros. Tais perspectivas são analisadas no projeto sob o prisma de dois clusters tecnológicos, o de nanotecnologia e o de materiais avançados. No caso da nanotecnologia, o diagnóstico é que há boa massa crítica acadêmica no país, mas o esforço feito está em um patamar inferior ao de competidores. “Fiquei surpreso ao constatar que a produção científica brasileira em nanotecnologia, de cerca de 2% da produção mundial, está aquém da média da participação do país em todas as áreas, que chega a 2,7%”, diz Osvaldo Novais, do Instituto de Física de São Carlos da USP, responsável pela análise da área de nanotecnologia. “Isso porque há uma comunidade de bom tamanho atuando nessa área e tivemos investimentos nos últimos 15 anos.” Segundo ele, o Brasil pouco participa do esforço mundial em utilizar a nanotecnologia para desenvolver novas terapias contra o câncer, componentes de microeletrônica e sensores. “Precisamos de iniciativas agressivas para não perder terreno, principalmente na área farmacêutica e da saúde, nas quais as perspectivas são muito boas.”
Empresas inovadoras
O esforço em gerar P&D para responder aos desafios tecnológicos da indústria vai exigir uma articulação institucional mais complexa do que a que o país dispõe hoje, afirma David Kupfer, da UFRJ. “A manufatura avançada não depende de inovações radicais, mas de uma convergência de tecnologias. Exige integração com a internet, investimento em Big data, em análise de dados e em capacidade de tomar decisões”, explica. “Essa convergência tecnológica vai exigir convergência institucional. Estamos lidando com aplicações empresariais diversas e os nossos instrumentos de financiamento à inovação parecem envelhecidos para lidar com isso. Vamos precisar de um redesenho institucional que permita o desenvolvimento integrado dessas tecnologias.” Esse desafio, segundo avalia, é ainda mais complexo do que gerar tecnologias. “Países como a China e a Alemanha estão redefinindo até a configuração de seus ministérios para articular os desafios da indústria e da tecnologia. Aqui no Brasil o que se vê é uma fragmentação dessa governança.” A escassez de investimentos é um agravante. “Estamos partindo de um patamar baixo em termos de recursos e de articulação institucional.” A pesquisa de campo mostrou que as empresas estão atentas. “Elas já se preocupam em garantir a atualização tecnológica, mas não se observa ainda uma organização para que promovam o desenvolvimento de que necessitam”, afirma. “De todo modo, não depende só das empresas, mas de um movimento sistêmico, que vai exigir avanços regulatórios, oferta de serviços e soluções digitais e articulação com fornecedores.”
O pesquisador Antonio José Felix de Carvalho, da Escola de Engenharia de São Carlos da USP e responsável pelo capítulo sobre materiais avançados, sustenta que o principal desafio do país é ampliar o número de empresas inovadoras capazes de transformar esses materiais em produtos com valor agregado. “Somos competitivos em materiais básicos e de baixa tecnologia, mas praticamente não temos empresas desenvolvendo materiais que estão na base de outras indústrias tecnológicas. Veja o desafio de produzir veículos elétricos. São necessários aços especiais, baterias de grande desempenho, motores com magnetos de alta performance, polímeros leves para reduzir o peso da carroceria. Mas não temos empresas trabalhando com o desenvolvimento desses materiais”, afirma.
Segundo ele, o Brasil precisa selecionar setores em que pode ser competitivo, como os de petróleo, celulose e energias renováveis, e investir em sua capacidade industrial envolvendo novos materiais. Ele menciona o caso das biorrefinarias, capazes de gerar insumos avançados ligados à produção de bioenergia. Há o risco, segundo Carvalho, de que setores percam competitividade. “O perigo é repetir o que aconteceu com o setor têxtil, que acabou definhando enquanto competidores lançaram produtos baseados em novos materiais.”
Os avanços em biotecnologia e bioprocessos prometem impacto em segmentos como agroindústria, saúde e ambiente. “Isso deve modificar o jogo nesses setores, multiplicando as taxas de retorno das empresas que se atualizarem”, afirma o biólogo Carlos Alberto Moreira Filho, pesquisador da Faculdade de Medicina da USP e coordenador do capítulo sobre biotecnologia do projeto. “A possibilidade de edição do DNA promete gerar espécies agrícolas resistentes a pragas e ao estresse ambiental”, diz, referindo-se à técnica CRISPR/Cas9, que tem custos bem menores do que o desenvolvimento de espécies transgênicas. “Esse é um divisor de águas. Não depende só da biologia molecular, mas também de microquímica e Big data. O Brasil já tem vantagens comparativas, que se relacionam ao clima e à experiência de um país com mais de 40 milhões de hectares de plantas transgênicas.” No campo da saúde e da medicina, as perspectivas são transformadoras para a produção de vacinas, o conhecimento de mecanismos moleculares de doenças e a criação de terapias personalizadas, observa Moreira. “Temos boa produção científica nas universidades, mas dificuldade de tradução desse conhecimento para o mercado por falta de empresas nacionais de porte. No setor farmacêutico, seria necessário um processo de fusão ou consolidação de empresas.”
Paulo Mól, coordenador do projeto Indústria 2027 na CNI, afirma que a iniciativa tem o mérito de estimular o setor industrial a discutir o futuro. “Vivemos discutindo agendas do passado por conta de o Brasil não ter resolvido gargalos importantes como o déficit da Previdência Social, os problemas de infraestrutura e os entraves no ambiente de negócios. É hora de olhar para as tecnologias que serão dominantes nos próximos 10 anos”, diz.