Prognóstico é de produção toda concentrada no Mercosul, quando o padrão de alimentação no mundo está em transformação
“Projetar o consumo da demanda de commodities agrícolas pari passu com o crescimento da população me parece um erro”, alerta José Graziano da Silva, professor da Unicamp e reeleito diretor-geral da FAO até julho de 2019. Ele, que compareceu de surpresa ao 56º Congresso da Sober (Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural), sediado pela Unicamp, argumenta que está em curso no mundo uma transformação muito profunda no padrão de alimentação e nos sistemas agroalimentares, com a diferenciação de produtos, a criação de pequenos nichos de mercado e a opção por circuitos curtos de transporte, valorizando assim a capacidade de produção local.
Convidado a participar da mesa sobre “O papel dos setores público e privado no financiamento da agropecuária brasileira”, José Graziano desculpou-se por fugir do tema para ilustrar as transformações no padrão alimentar da população. “A agricultura representou uma etapa em que a humanidade pôde assegurar a alimentação sem depender do dia a dia do caçador que saía em busca do alimento. A agricultura teve papel fundamental para diminuir o esforço pela sobrevivência.”
O diretor da FAO – a Organização da ONU para a Alimentação e a Agricultura – observa que hoje em dia, no entanto, pode-se afirmar que a agricultura contribui cada vez menos para a alimentação do ser humano. “Falo da agricultura stricto sensu, de cultivos. Temos outros setores de produção de alimentos, como a pesca, que têm crescido substancialmente. Isso produz uma grande diferença quando se pensa no que acontecerá no futuro: a imagem de que o objetivo é a alimentação e não propriamente a agricultura; não é o modo de produção, é o alimento em si.”
Ainda para justificar sua crítica à estratégia de commodities, Graziano dá o exemplo do suco de laranja, produto sobre o qual o Brasil mantinha liderança absoluta no mercado externo. “De repente, em função do teor de açúcar e dos aditivos, o produto perdeu completamente o espaço para a laranja espremida, para o suco feito na hora. E é essa a tendência: de crescimento do consumo de laranja in natura e não mais de plantações para commodity.”
O dirigente da FAO informa que a organização da ONU acabou de divulgar um prognóstico para os próximos 10 anos, com a conclusão pessimista de que, nesse futuro próximo, o crescimento da demanda por alimentos vai acompanhar o crescimento populacional. “O grande impacto do crescimento da renda sobre o consumo médio já passou, inclusive na China. Isso significa que a transição para a dieta mais proteica já ocorreu em grande parte, e que agora voltamos ao ritmo de crescimento que depende do volume do estômago.”
É neste ponto, segundo o docente da Unicamp, que a humanidade enfrenta uma epidemia mais grave que a da fome, com impacto no mundo todo, seja em países desenvolvidos ou em desenvolvimento: a obesidade. “O problema da fome está equacionado, pois sabemos onde está e sabemos por quê: atinge basicamente as regiões de conflito e de seca, sendo a sobreposição desses dois aspectos explosiva, como no caso dos países do Oriente Médio. Já a obesidade vai afetar o futuro da alimentação de uma maneira que ainda não conseguimos equacionar e resolver.”
Outro ponto destacado por José Graziano é a concentração da produção de commodities, que também consta no relatório da FAO. “O mapa do mundo hoje mostra que a produção está concentrada quase que totalmente no Mercosul, é onde está crescendo, enquanto em outras regiões cresce menos ou até diminui. O Mercosul tem retomado a liderança das commodities em todos os setores, de grãos a carnes. Soube que aqui [no Congresso da Sober] serão discutidos os dados do Censo Agropecuário sobre a expansão da produção de grãos e de outras culturas no Brasil aproveitando a área da pecuária.”
Os três países do Mercosul que possuem potencial de expansão da produção de commodities, acrescenta o diretor da FAO, são Brasil, Paraguai e Argentina. “A expansão na Argentina depende do impacto das mudanças climáticas na pampa úmida, que está se tornando uma região seca, fenômeno absolutamente desconhecido. E há uma incógnita quanto à Colômbia: depois da pacificação do país, empresas canadenses vêm se apoderando da região dos Llanos, que é plana, com muita água e emergente na produção.”
Um terceiro impacto que preocupa Graziano se refere ao desenvolvimento e introdução de novas tecnologias para aumentar a produção de commodities. “Eu olho sempre para o outro lado, para o impacto das novas tecnologias no campo social, e vejo basicamente uma concentração da produção. Se nos assustamos com a concentração de terras brasileira, a concentração do controle da tecnologia pode ser ainda mais assustadora.”
Sendo a tecnologia fortemente poupadora de mão de obra, o professor do IE teme o impacto não apenas sobre os trabalhadores rurais assalariados, mas também sobre os pequenos produtores. “Esses agricultores não terão chance de acompanhar as mudanças tecnológicas se não houver uma estrutura governamental nos moldes que tivemos antes, de assistência técnica, de extensão rural – questão que parece não preocupar nenhum governo, pelo menos na América Latina.”
Sem guerra
Um último ponto que, adverte o diretor da FAO, vai afetar bastante a questão das commodities, é um acordo que vem sendo gestado paralelamente à temerosa guerra comercial entre EUA e China. “É um acordo Estados Unidos-Canadá com a União Europeia, que progride muito bem e rapidamente, contra todas as expectativas, e deve redefinir um tema fundamental das exportações, que é a logística – transporte e armazenagem.”
José Graziano afirma que a produção, atualmente, é feita praticamente da mesma forma e com os mesmos custos. “A diferença dos custos está na logística de transporte e armazenamento. A tendência mundial é por circuitos curtos, que incorporam os produtos frescos (frutas, legumes, pescados e algumas carnes), por sua vez, fundamentais na dieta para prevenir a obesidade, que é o grande problema principalmente nos países desenvolvidos.”
Na Europa, reitera o professor da Unicamp, as pessoas já não comem para satisfazer as necessidades básicas, e sim por prazer. “A maior influência para o consumo de produtos agrícolas vem dos programas de gastronomia, o gourmet. A FAO fez o esforço de colocar a quinoa como um produto internacional e hoje ela é parte desse mercado gourmet: se no Peru o quilo é vendido a menos de um dólar, na Europa não se compra por menos de dez dólares.”
O dirigente lembra que as duas dietas recomendadas pela FAO como saudáveis para enfrentar o problema da obesidade são a japonesa e a mediterrânea. “A composição de produtos importados na dieta japonesa é mínima; o arroz é deles, assim como o óleo de oliva dos mediterrâneos. Há uma febre na Europa de produzir a próprio alimento, pelo menos os temperos: na Itália, não encontrei louro para comprar, pois todos têm um pé no apartamento. O modo de alimentação no mundo está mudando.”
Na visão de José Graziano, aspectos como a logística, a transformação da marca e o prazer em comer, colados à preocupação com a obesidade, podem transformar completamente a forma de produção de alimentos no futuro. “É este o alerta: embarcar na visão de commodities para o futuro – como fazem os países do Mercosul, entre eles, o Brasil – não é uma boa estratégia. Há uma tendência totalmente diferente que pode trazer uma reconfiguração produtiva de médio prazo na agricultura.”