Em tempos de vestibular indígena, aldeia no litoral paulista recebe apoio didático bilingue
O caminho de Campinas à Aldeia Rio Silveira, em Bertioga, é feito com tranquilidade no início da manhã e, ao chegar, se nota a qualidade da biodiversidade da reserva ecológica em pleno litoral paulista. Ar puro, som de vento com cachoeira, cheiro de fogão a lenha, mas o trabalho chama e o propósito da visita é conhecer os benefícios do projeto de extensão Atlas Bilíngue Guarani-Português para a formação de crianças da Escola Estadual Indígena Txeru Ba ‘e’ Kua-I e da Escola Nhembo `E´ Á Porã, localizadas na aldeia.
Em um ano, o projeto coordenado pelo professor do Instituto de Geociências Vicente Alves deu origem a dois livros de apoio didático já utilizados em sala de aula e, mais importante, com aprovação de líderes e professores indígenas. O pedido do professor e pedagogo formado pela USP Antônio Macena comprova: “Se você puder trazer mais exemplares, agradeço”, diz para Alves.
Alves relata que ao chegar com uma equipe formada por ele e alunos de diversas áreas da Unicamp à aldeia, encontrou somente material de apoio em português, por isso propuseram o atlas’. “A ideia era oferecer um material para aprendizado da língua indígena, elaborado com elementos do cotidiano da aldeia, porém, Antônio e Sérgio Macena, líder espiritual, ressaltaram que antes do atlas, necessitavam de material de apoio didático para alfabetização em guarani”, relata Alves.
Assim nasceu o livro Mbyá Ayvu: a língua Guarani-Mbyá, que acentua a questão de verbos em guarani, segundo Alves. “A ideia era não só produzir para eles, mas também permitir que os alunos da Unicamp pudessem ter o aprendizado da realidade, do contexto em que vivem, permitindo a troca de conhecimentos para a pesquisa. A extensão tem de ser uma via de mão dupla, uma troca.”
A segunda obra, KaÁguy Regua Kuaxia (Terra Indígena Guarani Tekoá Moroti), reúne textos, elementos de representação cartográfica, e imagens – fotos e desenhos. O segundo livro inclui plantas e animais, por demanda da comunidade, pela preocupação com a perda de interesse pelo conhecimento tradicional guarani, de acordo com o professor. Diante disso, uma das tarefas dos alunos da Unicamp foi levantar, em caminhadas ao lado do líder espiritual Sérgio, a funcionalidade das plantas para a saúde.
O conteúdo traduz o material de plantas e animais mais representativos da aldeia, segundo Alves. “O texto está em português, mas a ideia é fazer em guarani e português para conhecimento guarani e juruá – em português. Juntar dois conhecimentos para resgatar conhecimento tradicional e do não indígena para a inclusão na universidade. Eles precisam também de conhecimento científico para auxiliar no processo de aprendizagem para ingressar na universidade.”
Na escola, alunos e professores falam as duas línguas, mas na primeira infância, tentam priorizar o guarani. Ao nascer, recebem um apelido em português, mas o nome – indígena – é atribuído pelo Pajé, ao completar 1 ano de idade.
Na casa de Reza
A Casa de Reza logo se transforma em sala de entrevista, e é ali, sobre chão batido, que o líder espiritual Sérgio Macena registra a importância da contribuição do trabalho de alunos e professores da Unicamp para a educação e inserção cultural de crianças e jovens indígenas na sociedade. “Fico muito grato pelo fato de a Unicamp fazer um trabalho direcionado e trazer conhecimento dos dois lados para que nosso jovem possa sair daqui e competir igual não indígena lá fora. É o nosso objetivo, mas não é hoje, não é pra amanhã. Mas que possa trazer uma melhoria grande no futuro.”
Aluno da Educação de Jovens e Adultos (EJA) e presidente de uma associação indígena, Sérgio Macena ressalta a importância do conteúdo, inspirado no ambiente e no cotidiano das crianças indígenas, para evitar a confusão entre as gírias e as palavras originais do vocabulário guarani. “Nós falamos muitas gírias na língua guarani. Não usamos mais esta língua verdadeira. Vemos o material didático em outras aldeias e algumas palavras não tinham direção, mas se você faz um livro na língua materna, tem de fazer o certo, o correto pra não ter problema lá na frente. Senão, as crianças aprendem uma coisa e, na fala verdadeira, é outra.”
A preocupação do líder também está na sobrevivência de jovens universitários da aldeia em outros ambientes sociais, principalmente em momento em que vestibulares indígenas são aprovados em algumas instituições de ensino superior. “Hoje, temos jovens capacitados para poder enfrentar essa batalha lá fora. Tem capacidade muito grande. É importante que possa competir em igualdade com jovens não indígenas e mostrar nosso objetivo, que é o bem pra nós.”
Porém, o desejo de Sérgio é que os jovens se lembrem de voltar para a aldeia. “Eles saem orientados daqui para que possam ter o pensamento de voltar. Pra isso que temos uma língua. Sem nossa cultua, nossa reza, se não tiver a língua materna não significa ser indígena.”
Ainda na Casa de Reza, Miratupã – Leonardo Macena –, filho de Sérgio, promete, em entrevista, seguir o exemplo do tio, Antônio Macena, e voltar para a aldeia tão logo conclua a graduação. Professor de história na escola, ele presta vestibular este ano numa instituição particular em outra cidade. Leonardo estudou na aldeia desde o pré primário. A ele compete não somente a historiografia, mas transmitir aos pequenos a filosofia da comunidade onde nasceram. “A importância da escola dentro de uma aldeia indígena é para formar os alunos e entrar para competir de igual para igual nos vestibulares ou trazer uma educação diferenciada das escolas regulares. As escolas indígenas têm um foco importante na área de humanas. Por isso ainda tem poucos índios nas faculdades, pois ela tem uma formação para o cotidiano. A atuação dentro de uma escola é convencer alunos a conviver com a comunidade, poder dialogar, não ter diferença, respeitar um ao outo de igual para igual.”
Nesse sentido, o material apresentado por Vicente e seus alunos tem contribuição importante para a comunidade, em sua opinião. “Sinceramente, o melhor trabalho que vi até hoje como material didático. E é de extrema importância porque dá muito valor a coisas que lá fora não são vistas como importante. As escolas indígenas buscam formar as pessoas mais humanas possíveis e eu achei bacana porque ele trata da natureza como uma coisa extremamente importante e eu acho que é realmente este o caminho de poder transformar as pessoas. Seria bom que não somente os indígenas, mas as escolas regulares lá fora dessem mais importância e este tipo de formação.”
Para Leonardo, frequentar um curso superior é extremamente importante para tentar reduzir dificuldades políticas em muitas áreas. “Creio que é extremamente importante porque, de certa forma, faz com que o indígena seja visto, ouvido porque hoje em dia a maioria das lideranças, pessoas que fazem movimento indígena têm certa dificuldade por causa de falta de formação mesmo. É interessante as faculdades abrirem portas para que possamos possam ingressar e entrar neste mundo político tão complicado que é desfavorável ao indígena. Faz tempo que quero ingressar para poder defender nossos direitos, lutar por educação e saúde melhores. A Constituição faz 30 anos e infelizmente é desrespeitada.”
Uma das rezas, com cântico entre Sérgio e mulheres da aldeia, marca a despedida da Casa de Reza. A próxima parada é a casa de Antônio Macena.
Vestibular é resultado de luta histórica
No reencontro com a equipe do Extensão 48, no fim da tarde, em sua casa, o tio de Leonardo, Antônio, reforça o fato de o conteúdo ter sido construído dentro da própria comunidade. “O que a gente viu é uma coisa boa, com base na realidade. Maravilhoso quando tem resultado. É muito legal ter sempre esse apoio do pessoal da Unicamp. Material rico, sendo feito dentro das ideias colhidas dentro da própria comunidade. Mais rico em termos de trabalho em sala de aula.”
O direito à escola indígena consta da Constituição de 1988, mas a formação superior, possível justamente a partir dessa luta, deve ser revertida em melhorias para a comunidade, também na opinião de Antônio. Ele não abre mão disso e orienta jovens como Leonardo a fazerem o mesmo que outros fizeram, inclusive ele, depois de conquistar o diploma de pedagogo pela USP. “Caminho deve ser seguido pelos jovens. A própria comunidade escolheu, aprovou, e a gente assumiu esse compromisso que voltaria e trabalharia com as crianças da aldeia. Essa nova formação que está sendo feita pelos jovens é gratificante. Foi importante para nós abrimos caminho para eles. É uma conquista muito grande para guarani e as outras cinco etnias do Estado de São Paulo. Todas têm representantes na primeira formação.”
O vestibular indígena, em sua opinião, é o futuro de um passado de luta, debaixo de chuva, sol, sem recursos para dormir, comer, sob aprovações e reprovações de vários segmentos da sociedade. Uma marcha iniciada em 1963 para a construção de escolas em aldeias, com educação diferenciada, mas que foi publicada somente em 1997 e iniciada, na prática, no início da década de 2000. Mostra de que a luta vale a pena. “Vestibular vem completamente ao encontro do que planejamos para o futuro. E este futuro está na mão dos jovens. Essa meta era o vestibular indígena.”
Para a estudante de graduação em linguística Mariana Gonzaga Marques de Freitas, levar a língua para dentro da sala de aula é uma forma de reforçar sua importância porque hoje a escola é um espaço privilegiado dentro da aldeia. Ela acentua fato de um dos livros ser escrito completamente em guarani. A aluna intensifica a importância de respeito ao calendário escolar, de acordo com a dinâmica cultural, diferente de dinâmica de feriados de outras escolas. “Eles acentuam muito isso porque têm outras festividades que precisam ser respeitadas.” Estas questões, segundo a estudante, estão presentes em material em elaboração pelo grupo de extensão.
Para o estudante do IG Lincoln John Leite Medeiros, além de fortalecer a cultura indígena entre crianças da própria comunidade, o trabalho da extensão possibilita um diálogo que permita ao jovem acessar espaços externos à aldeia. “Por enquanto, a universidade tem este papel, de ser uma ponte, para que eles começassem a ocupar espaços e deixar mais democráticos, fortalecer a gente e levar de volta esta linguagem que precisam para demarcação de território, questões culturais, políticas públicas de fortalecer a cultura, ter material didático que reconheça a cultura deles.”
Desde que começou a acompanhar as “expedições”, Lincoln atentou para a questão da sensibilidade. “A gente está acostumado a lidar com o conhecimento de forma muito sistemática. A gente vai pela razão e valida como sendo o certo e quando vai à aldeia e conversa e entende como eles compreendem o mundo, a gente vê que existem outras formas de explicar a natureza. Não tem certo ou errado, são formas diferentes. Isso desperta a sensibilidade para lidarmos não somente com problemas pessoais, mas levar em conta o que o outro sabe. Isso ensina a gente não somente a trabalhar uma cultura indígena, mas reconhecer que quaisquer diferenças são tão válidas quanto aquilo que a gente sabe. O conhecimento dos outros também são válidos.”
Na hora de desfazer a bagagem, depois de visitar uma aldeia, nota-se o volume de material a se preservar, porque a mala de conhecimento precisa virar vídeo, virar textos e inspirar outros juruás.
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