Guerra e
modernização
são tema de
minicurso
no IEL

14/08/2015 - 09:50

Javier Uriarte é especialista em literatura latino-americana

O professor Javier Uriarte, do Departamento de Línguas e Literaturas Hispânicas, da Stony Brook University (SBU), de Nova York (EUA), vai oferecer um minicurso aos estudantes de graduação e pós-graduação do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). Especialista em cultura e literatura latino-americana, com ênfase no Brasil dos séculos 19 e 20, o professor vem à Unicamp como uma das etapas de um acordo de cooperação que vem sendo construído entre as duas instituições. Com o tema “Fazedores de desertos: guerra, espaço e linguagem na América Latina”, o curso será oferecido de 17 a 21 de agosto, das 17h30 às 19h30 no próprio IEL (Veja detalhes e como se inscrever). O evento é organizado pelo professor Marcos Aparecido Lopes, coordenador de Graduação do IEL. Uriarte destaca que vai abordar, no curso, o papel da guerra na construção dos aparatos burocráticos e militares do estado em diferentes países. “Numa palavra, estudaremos a relação entre guerra e modernização”, descreve. Os problemas de representação relacionados com a guerra também serão estudados por meio de ensaios, crônicas, diários de viagem e textos de ficção. O professor falou sobre o tema em entrevista ao Portal Unicamp.

Portal Unicamp - O senhor vai abordar no minicurso que será oferecido na Unicamp a relação entre guerras e modernização por meio da literatura? Por favor, explique o título “Fazedores de desertos: guerra, espaço e linguagem na América Latina”.
Javier: O minicurso diz respeito a minha pesquisa que se iniciou no meu doutorado, realizado na New York University, sob a orientação da docente Mary Louise Pratt. O meu livro está sendo avaliado para a publicação nos EUA e no Brasil. O título foi inspirado na obra homônima de Euclides da Cunha, o ensaio “Fazedores de desertos”, e o intuito foi mostrar como a ideia do “deserto” não se refere unicamente a uma realidade geográfica objetiva, mas que o deserto também é uma criação dos processos modernizadores na América Latina. Ou seja, em muitos países, os intelectuais e as elites governantes, durante o século XIX, falavam que existiam “desertos”, espaços desconhecidos, misteriosos, ameaçadores, onde o poder do Estado não conseguia se impor completamente, espaços que permaneciam além do controle e do olhar do Estado. No Brasil o sertão foi lido desse modo (também o foi a Amazônia, que é descrita como um “deserto” em muitos textos literários, o que poderia ser surpreendente). Mas, na verdade, os Estados utilizaram a guerra como forma de conquista e de apropriação desses espaços, e a guerra “contra os desertos” foi na verdade uma forma de criar novos desertos, de criar vazios novos, através do extermínio das populações indígenas, do genocídio paraguaio na Guerra do Paraguai (1864-1870), da desaparição do gaúcho na Argentina e no Uruguai, ou do massacre dos camponeses e sertanejos na Guerra de Canudos (1897), no Brasil. 

Portal Unicamp - É possível fazer essa relação entre guerra e desenvolvimento? Guerra não é atraso? Quais são alguns dos exemplos que o senhor irá utilizar?
Javier: Interessante que a associação mais frequente seja da guerra com o atraso e com a destruição. Mas o que eu sugiro é que a guerra foi um elemento chave nos processos modernizadores das últimas décadas do século XIX. As guerras, de certa forma, fundaram a América Latina moderna. A retórica da guerra sempre procurou – e ainda hoje isso é muito claro – se identificar com a paz, se esconder a si própria. A guerra existe (segundo os que a propõem) como um instrumento inevitável para alcançar a paz, essa foi sempre a sua fantasia. É interessante que o Brasil, especialmente, tenda a se construir como uma nação sem guerras na sua história. A Guerra do Paraguai (a maior guerra na história da América Latina, de consequências muito importantes não só para os paraguaios, mas também fundamental na queda do Império, por exemplo) seria suficiente para desfazer essa impressão, mas também alguns massacres, como a Guerra de Canudos, mostram essa presença teimosa da guerra.

Portal Unicamp - Quais são os textos selecionados? O que eles representam nas relações entre o estado e a guerra nesse recorte que o senhor faz?
Javier: Meu objetivo é o de comparar os processos políticos e culturais nos países latino-americanos durante o século XIX, considerando, claro, as diferenças e os elementos próprios de cada um dos nossos países (comparar não significa identificar, isso é importante). Escolhi alguns textos canônicos e outros textos menos conhecidos no Brasil, mas importantes na literatura do continente. Vamos começar discutindo a presença da guerra em um dos textos centrais da literatura latino-americana do século XIX, o "Facundo", de Domingo Faustino Sarmiento, aliás um livro muito importante na escrita de "Os sertões", por exemplo. Esse livro é importantíssimo para nós pensarmos as relações entre política e espaços, as articulações da imaginação espacial letrada no século XIX (e até o presente). Vamos ler depois um livro muito pouco conhecido, o diário de guerra de um soldado do exército uruguaio na Guerra do Paraguai, León de Palleja, e vamos ver como ele descreve os espaços na sua viagem para a frente de combate. Contra o que poderíamos esperar, ele é um soldado muito crítico com a lógica do Estado uruguaio, que envia ele e os seus companheiros à morte na guerra, sem proteção nem ajuda. Vamos ler depois outro texto canônico argentino, Uma excursão aos índios ranqueles (1870), de Lúcio V. Mansilla. Trata-se de um texto original, de uma crítica à lógica sarmientina que tentava diferenciar claramente a civilização do que era considerado “bárbaro” (os índios, por exemplo). Mansilla viajou até o pampa e entrevistou os indígenas. Ele é muito ambíguo nas suas descrições e chega até outorgar uma voz aos índios, os quais muitas vezes perguntam coisas para as quais ele confessa não ter uma resposta. As últimas duas reuniões vão se centrar na conversa sobre textos bastante conhecidos no Brasil: A retirada da Laguna, do Visconde de Taunay, e Os sertões, de Euclides da Cunha. O primeiro descreve um episódio da Guerra do Paraguai e o segundo narra a Guerra de Canudos. São dois textos nos quais a lógica da guerra é central e são também dois textos que dialogam muito com as culturas dos outros países latino-americanos. Aprofundar esse diálogo é um dos objetivos do curso.    

Portal Unicamp - Qual a relevância e a atualidade do tema para os estudos sobre a formação dos estados nacionais? Qual o papel do discurso literário na sondagem e interpretação da realidade social e histórica em nosso continente?
Javier: Acho que é importante nós considerarmos o diálogo íntimo que existe entre guerra e processos modernizadores em nossos países, já que o discurso do progresso descrevia as mudanças trazidas pela chegada do capitalismo como inevitáveis, como fatos aos quais não era possível resistir. A verdade foi que teve muita resistência, e que o progresso não conseguiu se impor de forma “natural” e quase imperceptível, mas drástica e violenta. É importante, por exemplo, revisar o lugar da guerra na história do Brasil, e também os diálogos importantes que o Brasil tem com os outros países da América Latina (o Brasil sempre tentou se diferenciar dos países da América Hispana, e olhou insistentemente para a Europa). O discurso literário no século XIX teve uma influência muito grande no pensamento político e social das elites latino-americanas. Julio Ramos, no seu belíssimo livro Desencontros da modernidade na América Latina (Editora UFMG), mostrou que a esfera da literatura e a esfera da política não são independentes até o final do século XIX, quando o escritor se torna um profissional. Por exemplo, Sarmiento foi escritor, mas também foi presidente da Argentina, e ele não é uma exceção. Ao mesmo tempo, Euclides da Cunha não só narrou uma guerra, mas fez uma descrição detalhada do sertão, do sertanejo e da relação desse espaço e dos habitantes com a nação brasileira que tentava se modernizar. Euclides é, portanto, um intérprete central do Brasil, e antecipa os importantes livros de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo, que continuaram tentando explicar o que é isso que chamamos o Brasil.

Portal Unicamp - Em relação à cooperação acadêmica entre a SBU e a Unicamp, como será o acordo? O que se pretende?
Javier: A Stony Brook University está muito interessada em estabelecer um verdadeiro intercâmbio intelectual e acadêmico com a Unicamp. O Departamento de Línguas e Literaturas hispânicas quer ter uma presença mais forte de colegas e estudantes pesquisando sobre o Brasil. Nesse momento, estamos por assinar um acordo muito geral que permitiria o intercâmbio de estudantes (de graduação e pós-graduação), professores e até funcionários. O objetivo posterior é a assinatura de um convênio de cotutela para que os estudantes da pós-graduação das duas instituições possam ser doutores pelas duas universidades. Já no ano passado tivemos o prazer de ter uma excelente estudante de graduação conosco durante um mês, e um dos nossos estudantes de doutorado ficou na Unicamp durante dois messes fazendo pesquisa. Esta minha visita tenta ser mais um passo na aproximação das duas instituições.

Portal Unicamp - Para a SBU qual a importância da aproximação com o IEL - Unicamp? Quais os focos de interesses comuns?
Javier: A Stony Brook University fica no Estado de Nova York, o que dá acesso aos pesquisadores brasileiros às bibliotecas da cidade (a biblioteca pública de NY é uma das maiores do mundo). Os pesquisadores da Unicamp contariam com uma infraestrutura indispensável para a pesquisa científica e humanística. Só para dar um exemplo, eles poderiam dispor de um escritório no campus e acessar a biblioteca da Stony Brook, onde é possível fazer, de graça, escaner de todo o material que precisarem. Também aos pesquisadores seria facultado o direito de retirada de livros da biblioteca (até 50, pudendo ficar com eles durante todo o período da visita), utilizar o Interlibrary Loan (o sistema de empréstimo Inter bibliotecário) gratuitamente, que dá acesso a artigos e capítulos de livros escaneados por email no prazo de dois dias ou receber qualquer livro, que estiver numa biblioteca universitária dos EUA, em uma semana. Além disso, o professor visitante poderia oferecer algumas palestras e minicursos para os alunos de graduação e pós. Acho que o intercâmbio pode ser uma oportunidade intelectual para os colegas e os estudantes da Unicamp. Para nós, a Unicamp representa a oportunidade de dialogar fortemente com uma instituição de grande prestígio no Brasil. Para os nossos estudante e colegas, é fundamental aprofundar o conhecimento da cultura e da literatura brasileiras, e também da língua portuguesa, que não ensinamos ainda de forma sistemática.