Edição nº 639
Unicamp
Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 28 de setembro de 2015 a 04 de outubro de 2015 – ANO 2015 – Nº 639Livro de Renato Ortiz faz apanhado crítico das dimensões da diversidade
Para professor do IFCH, debates acerca do comum e do diverso alimentam tensão vista por ele como mal-estar contemporâneo“Universalismo e Diversidade”, mais recente livro do pesquisador e docente Renato Ortiz, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, propõe uma discussão crítica da emergência da diversidade como novo valor universal. “Transformar a diversidade num valor universal é um oximoro. Mas isso é interessante, revela uma tensão que caracteriza o mundo em que vivemos”, disse Ortiz.
O pesquisador lembra que a crítica do velho universalismo dos iluministas, e do mal realizado em seu nome — do imperialismo, do colonialismo, do racismo — já foi feita, mas que a diversidade ainda não foi pensada de forma crítica. “Ninguém diria: ‘Sou contra a diversidade’”, exemplificou. “Veja, não estou defendendo o ponto de vista contrário a ela. A questão é: se você não pode sequer formular a pergunta, é porque o termo já se encontra positivado, a ponto de não se perceber mais as coisas de outra maneira”.
“É importante entender que não é mais possível falar do mundo através de uma perspectiva eurocêntrica”, ressalta. “Mas, dando um passo à frente, não podemos reduzi-lo às identidades específicas. É preciso falar das duas coisas: o comum e o diverso. Surge assim uma tensão, o que denominei de mal-estar contemporâneo”.
Para Ortiz, isso significa que o tema da diversidade não está vinculado às diferenças culturais propriamente ditas. “Porque o passado era muito mais rico em diferenças culturais do que hoje”, lembra. “Significa que foi no contexto atual que tais diferenças adquiriram outro sentido”.
A ideia do livro, explica ele, é apresentar e problematizar os diferentes níveis em que o tema da diversidade aparece. “No mercado, nas ciências sociais, na questão política, na questão dos direitos, na questão do relativismo. Tratam-se, portanto, de dimensões diferentes trabalhadas dentro de uma mesma sintonia, a problemática do universalismo e da diversidade”.
O pesquisador também comentou o acirramento da intolerância política no Brasil, exemplificada, recentemente, na pichação da frase “morte aos comunistas da Unicamp” numa das paredes externas do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, acirramento que se dá neste mesmo momento de crescente valorização da diversidade (leia carta de Ortiz sobre o episódio na página 5). “Creio que no caso brasileiro, no momento atual, o tema da intolerância vincula-se diretamente à polarização política”, disse. “O discurso agressivo, naturalizado pela linguagem partidária, passa a ser válido em nossas relações pessoais”. Ele vê na pichação “o embrião de uma cultura autoritária, na qual a intolerância torna-se natureza, código de comportamento a ser exaltado pelo desprezo e destruição do outro”.
Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista de Renato Ortiz ao Jornal da Unicamp.
Jornal da Unicamp - Como a diversidade emerge como valor?
Renato Ortiz - A diversidade é um tema do mundo global. Sem ele não haveria sua valorização. Essa é a ideia central. Quando o mundo era composto apenas de nações ricas e pobres, ou civilizações “superiores” e “inferiores”, a questão não se colocava. Ninguém diria na década de 1950, quando os Estados Unidos invadem a Coreia, que deveríamos preservar a diversidade. Tratava-se simplesmente de uma operação imperialista, de um sistema de dominação que se impunha, como antes, o colonialismo britânico ou francês.
A questão da diversidade surge quando percebemos que vivemos num mesmo lugar, o planeta Terra. Um mundo moderno e tecnológico. Mas nele existem diferenciações. Como estabelecer agora as identidades? Regionais, nacionais, culturais? O processo de globalização evidencia uma realidade comum, mercado e tecnologias globais. Entretanto, as diferenças manifestam-se no âmbito da esfera cultural. Por isso a discussão sobre a diversidade situa-se, sobretudo, neste nível.
É preciso entender que a noção de diversidade, tal como a compreendemos, é recente. Ela não existia desta forma no passado. A afirmação: “a diversidade da sociedade helênica na Antiguidade” faz pouco sentido. Nesta época existiam os gregos e os bárbaros, ou seja, os não gregos. O tema tampouco era importante no contexto da Idade Média ou do Iluminismo.
JU - Mas o capitalismo é realmente o mesmo em todo o mundo? Ou há “capitalismos”?
Renato Ortiz - Se a resposta fosse “sim”, as coisas seriam difíceis para os economistas, cada mercado funcionaria de maneira regional, com lógicas independentes. Não faria sentido falarmos de uma lógica capitalista, ela seria negada pela “diversidade” dos mercados. Isso não ocorre, porém, com a esfera da cultura. Nela se inserem as tensões identitárias, ou seja, a valorização das diferenças.
JU - Falando sobre as tensões entre o universal e o diverso: há perspectivas que se propõem universais, como a dos direitos humanos.
Renato Ortiz - Sim. Há um fato curioso. Em 1947, a ONU pede a um grupo de antropólogos americanos um texto para ser anexado à Declaração dos Direitos Humanos. O resultado é decepcionante. Imbuídos do relativismo cultural da época, esses antropólogos chegam à conclusão de que seria impossível falar em direitos humanos. Isso seria contrário à “diversidade cultural” dos povos indígenas. Tal perspectiva seria hoje impensável. Todo antropólogo, sobretudo etnólogo, justifica a defesa dos povos indígenas invocando os direitos humanos. Este é o argumento que legitima a reivindicação dos direitos negados. Isso indica como a questão do universal e da diversidade transformou-se ao longo do século 20. Por isso, um dos capítulos do livro refere-se ao relativismo cultural. Este tipo de proposta teórica encerra, justamente, esta tensão entre o particular e o universal que procuro trabalhar nos ensaios.
JU - Não é estranho que a globalização traga uma valorização da diversidade, e não seu oposto, um acirramento dos conflitos? Um choque violento, digamos, entre civilização norte-americana e civilização chinesa?
Renato Ortiz - Não existe uma civilização chinesa, tampouco uma civilização norte-americana. O que se tem é a realização da modernidade na China e nos Estados Unidos. Postular a ideia de uma civilização autóctone é postular a existência de um mundo independente, como se cada unidade possuísse uma centralidade própria, independente das outras. Cada país tem uma história específica, isso marca a sua especificidade, mas a modernidade-mundo é algo que os atravessa a todos.
JU - Então a diversidade é apenas uma faceta da universalização do capitalismo?
Renato Ortiz - Não creio, a ideia de universalização também é polissêmica, e depende do que você quer dizer com universal (há no livro todo um capítulo sobre a polissemia das palavras). Para os filósofos iluministas, ele era sinônimo do ser humano, ou seja, todos os homens; para os sociólogos que estudaram as religiões, identificava-se apenas a algumas delas: cristianismo, islamismo, judaísmo, etc. Na situação de globalização a polissemia dos termos, universal e diversidade, evidencia que eles são redefinidos dentro de um outro contexto.
JU - A redefinição não é, então, instável?
Renato Ortiz - Isso não é instabilidade. São redefinições. Deveríamos nos perguntar: o que estamos dizendo com universalismo ou diversidade quando consideramos o mundo dentro desses parâmetros. A crítica ao eurocentrismo é uma forma de evitarmos considerar como “universal” uma narrativa que, na verdade, foi criada a partir de uma província do mundo, a Europa ocidental. Mas devemos também ser críticos, ou seja, reflexivos, em relação à nossa contemporaneidade, e distinguir diversidade de pluralismo ou de desigualdade.
JU - A promoção da diversidade, às vezes, é criticada como uma tentativa de transformar o mundo num “zoológico humano” para turistas europeus...
Renato Ortiz - Existe certamente uma “indústria da diversidade” explorada em escala global, muitas vezes ela recupera a velha ideia de exotismo do século 19. Mas esta é apenas uma das faces do problema. Pois existe também o lado dos direitos culturais, que trabalha a noção de diversidade dentro de outra perspectiva.
JU - E também há a ideia de que o discurso do valor da diversidade protege tiranos, que o reivindicam para oprimir seus próprios povos.
Renato Ortiz - Isso também é possível. Em alguns países asiáticos existe, inclusive, o argumento de que a democracia seria um conceito alheio à “diversidade cultural” autóctone. O exemplo confirma minhas suspeitas em relação à problemática. A polissemia do termo permite que ele seja utilizado em situações as mais diversas e contraditórias. Na verdade, o uso da ideia de diversidade encontra-se vinculado à valorização das identidades, particularmente a identidade nacional. Esta é a forma de se situar num mundo comum, partilhado por todos.
JU - A valorização da identidade é uma compensação para a perda do poder nacional, num mundo globalizado?
Renato Ortiz - Não creio. Veja o caso da construção da identidade nacional. Ela se fazia, sobretudo, dentro das fronteiras de uma determinada nação. Por exemplo, o Brasil. Havia diversas maneiras de defini-la: um país mestiço (Gilberto Freyre), um país triste (Paulo Prado), um país “alienado” (intelectuais do Instituto Superior de Estudos Brasileiros, o Iseb). Apesar dessas diferenças, elas partilhavam um terreno comum: postulava-se a existência de um único Brasil, de uma cultura específica, enfim, de um território no qual seria possível, no seu interior, e apenas no seu interior, definir o que seria “o” brasileiro. No mundo atual, isso torna-se inviável. O “território” nacional não pode mais ser pensado como uma unidade independente de sua posição no espaço da modernidade-mundo. A formulação da identidade nacional, para ser convincente, deve ser redefinida (o que significa, ela não desaparece) levando-se em consideração o novo contexto.
Outro exemplo, que seria o inverso de sua pergunta: o mercado. Para vender seus produtos em escala global, os administradores de empresas e os homens de marketing introduzem em suas práticas mercadológicas o tema da diversidade. O mercado é global, mas não é homogêneo; existem segmentos de mercado. Neste caso valoriza-se a diversidade para se “ganhar poder”, isto é, agregar aos produtos comercializados um valor simbólico que os diferencie uns dos outros.
JU - Se a diversidade é um valor, e assim os pontos de vista também se diversificam, de onde pode partir o olhar crítico?
Renato Ortiz - Eu diria que a primeira coisa a ser feita é livrar-nos do senso comum. Ou seja, as explicações apressadamente avançadas em nosso cotidiano. Este é, sobretudo, o caso do discurso veiculado na mídia nacional e internacional. Ele repete os argumentos e nos dá a impressão de se constituir numa verdade. E acrescento: hoje existe um senso comum planetário. Tem-se, às vezes, a impressão que o mundo vai explodir; haveria tantas diferenças que não poderíamos mais contê-las. Penso que o contrário é mais verdadeiro: porque o mundo está conectado, discute-se mais a diversidade. Sublinho: “discute-se mais” e não “existe mais”. Consideremos o exemplo dos idiomas. Há cinco mil anos, existiam muito mais línguas do que hoje. Muitas delas desapareceram (as razões são inúmeras). Do ponto de vista linguístico, o mundo contemporâneo é menos “diversificado” do que o foi no passado. Entretanto, com o surgimento de um idioma central, o inglês, redefine-se a hierarquia das línguas na situação de globalização. Neste caso, a questão da diversidade torna-se relevante.
Por outro lado, é um equívoco pensar que os problemas atuais decorrem da diversidade das culturas ou dos costumes. Isso é apenas uma maneira de ocultar a realidade dos conflitos: imigração, problemas ecológicos, guerras, desenvolvimento desigual, pobreza, fome, indústria bélica, etc. Veja, no passado, precisamente no século 19, dizia-se que os problemas do mundo é que falávamos muitas línguas. Um único idioma, “perfeito”, “universal”, resolveria os problemas dos homens. Por isso foram inventadas as línguas artificiais como o esperanto ou o volapuque. Pregava-se assim o fim dos idiomas, à medida em que eles desaparecessem, e falássemos uma única língua, não mais haveria discórdia entre nós, todos se entenderiam. Claro, este tipo de diagnóstico é uma ilusão, mas ela foi confortavelmente alimentada entre nós durante mais de um século. Pergunto: alguém hoje em sã consciência defenderia tal perspectiva?
JU - A diversidade traz, consigo, a questão da tolerância...
Renato Ortiz - A questão da tolerância recoloca-se, sobretudo, no contexto da globalização, no qual as diferenças entre os países, os costumes, as crenças religiosas, os modos de vida, são colocadas lado a lado. É como se a diversidade espacial manifestasse-se de maneira sincrônica. Os ideais de equidade são, desta forma, desafiados. Eles deixam de ser uma afirmação abstrata (o que é importante) para serem testados na prática. Um exemplo: a questão dos refugiados do Oriente Médio na Europa. Por um lado existe a afirmação da livre circulação dos indivíduos no interior da Comunidade Europeia; existe ainda toda uma tradição de asilo político aos refugiados. Entretanto, a outra face da moeda é mais sombria, a crise econômica que se arrasta desde 2008, o nacionalismo dos países do Leste Europeu, o ideário de direita que concebe o imigrante como um perigo para a “raça” branca.
A questão da “diversidade” torna-se assim um tema controverso. Ela significa simultaneamente, “pluralismo” e “ameaça”. Creio que este tipo de situação estará cada vez mais presente em nossas vidas, de uma certa forma ela decorre das contradições de nossa contemporaneidade. A resposta deve, portanto, ser encontrada no nível da política: como enfrentarmos os novos desafios sem cairmos na tentação do autoritarismo e da discriminação.
JU - Se o mundo globalizado, de certa forma, força a aceitação da diversidade, o que explica fenômenos de intolerância e polarização como os vistos na atual cena política brasileira, e que se manifestam, por exemplo, na recente pichação “morte aos comunistas da Unicamp” deixada na parede do Instituto?
Renato Ortiz - Creio que no caso brasileiro (no momento atual) o tema da intolerância vincula-se diretamente à polarização política. Há uma disputa em termos político-partidária que se torna explícita na cena pública. É como se estivéssemos em estado eleitoral permanente. Dentro desta perspectiva, os excessos são, não apenas tolerados, mas incentivados. Trata-se de uma arma para enfraquecer e derrubar o adversário. O problema é que este “estado das coisas” não se restringe ao domínio da política, ele transborda suas fronteiras e começa a invadir nosso cotidiano (a grande mídia é em boa parte responsável disso). O discurso agressivo, naturalizado pela linguagem partidária, passa a ser válido em nossas relações pessoais. As acusações de ordem institucional (por exemplo: Lava-Jato) são transferidas para o plano social e cultural, legitimando uma série de atitudes violentas que não mais se envergonham de si mesmas.
A divergência em relação a uma determinada interpretação das coisas transforma-se em suspeita de um mal maior. Todorov [Tzvetan Todorov, filósofo e cientista social franco-búlgaro] utiliza um termo sugestivo para se referir às crenças totalitárias: “a tentação do bem”. Ao pensá-la de maneira absoluta, em oposição ao “mal”, ela pode se impor pela persuasão ou pela força. “Morte aos comunistas” significa isso. Trata-se do embrião de uma cultura autoritária na qual a intolerância torna-se natureza, código de comportamento a ser exaltado pelo desprezo e destruição do outro.
JU - Ressurge a necessidade de nos lembrarmos de nossa humanidade comum.
Renato Ortiz - Não creio que o tema da humanidade, enquanto conceito filosófico e abstrato, seja assim tão central. Não importa tanto o que se define como comum, como pensavam os iluministas. Ou seja, sem tal definição o destino dos homens estaria comprometido. A realidade é que já “vivemos juntos”, “estamos todos no mesmo barco”, o problema é que se trata de um barco conflitivo; é a maneira de “estarmos juntos” que importa, ou seja, a política que iremos traçar no momento de enfrentamento das crises, conflitos e divergências. Não é o conceito de humanidade que está em crise, mas o de política.
Carta aos Colegas do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp RENATO ORTIZ “Morte aos comunistas da Unicamp”. A frase estava escrita na parede de entrada do prédio da direção do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. O lugar escolhido era estratégico, ao subir as escadas a mensagem podia ser vista no seu brilho ofuscante. Minha reação foi de espanto, permaneci imóvel diante do texto, nunca havia visto algo assim em minha vida universitária. No dia seguinte, ao chegar no Instituto, os dizeres tinham sido apagados. “Morte aos comunistas”. A segunda parte da frase é genérica não tem intenção de ser precisa. Dificilmente, após o colapso da União Soviética, ela poderia dirigir-se àqueles que se consideram “comunistas”. Não, o termo possui uma conotação polissêmica: “esquerda”, “canalha”, “safado”, “petista”, “corrupto”. A denominação deve ser suficientemente ampla para dar a impressão que a pessoa que escreve situa-se na condição fictícia de que é possível falar “contra todos”. Ela estaria indefesa, ameaçada pelas forças estranhas que a rodeiam. A primeira parte da sentença é, no entanto, clara, límpida, lembra a palavra de ordem do fascismo: morte. Não há nenhuma dubiedade no que é dito: os adversários devem ser aniquilados. Creio que foi precipitado apagar o grafite. Ele deveria, temporariamente, permanecer no muro, vestígio e testemunho da estupidez que nos cerca. Temos a ilusão que a universidade, um lugar de liberdade e debate, estaria ao abrigo dessas coisas. Engano. As fissuras sociais nos atingem diretamente. Existe atualmente na sociedade brasileira um clima explícito de cretinice, ela não se envergonha de si mesmo, orgulhosa, torna-se pública, revelando sua face distorcida. Pior, não se contenta em circunscrever-se aos espaços dos partidos ou dos movimentos políticos, invade o cotidiano, as conversas, amizades, relações de trabalho. A intolerância sente-se confortável, à vontade para se apresentar como um código moral duvidoso. “Morte”, “Comunista”. As palavras não nos machucam diretamente mas contém uma potencialidade inquietante, a passagem da intenção ao ato, da agressão verbal à violência física. Resta-nos a indignação, dizer não a esta deriva autoritária, expor sua arrogância e falsidade. A indignação é um sentimento de repulsa, retira-nos da passividade, recorda-nos que o presente é frágil e as conquistas que conhecemos nada têm de perenes, permanentes. Renato Ortiz, 10 setembro de 2015 |
Serviço Título: Universalismo e Diversidade Autor: Renato Ortiz Editora: Boitempo Páginas: 176 Preço: R$ 39,00 |