A Unicamp trouxe convidados de outras instituições para contribuir com a discussão sobre a política de cotas étnico-raciais, como procedimento de ingresso nos cursos de graduação, a ser encaminhada para o Conselho Universitário (Consu). A segunda audiência pública nesse sentido, tendo como tema “Cotas e ações afirmativas: experiências nacionais e internacionais”, foi realizada na tarde de quinta-feira, sob a condução do reitor José Tadeu Jorge e novamente com o auditório da Faculdade de Ciências Médicas lotado. Serão ao todo três audiências – a primeira foi sobre “Cotas e ações afirmativas: perspectiva história e o papel da Universidade Pública no Brasil”.
O objetivo deste segundo evento foi apresentar um panorama das ações afirmativas nas universidades públicas brasileiras – e também instituições estrangeiras – apontando as diferentes formas com que estas ações se articulam, com condicionantes nacionais e regionais particulares. Após mais de dez anos, visou realizar um balanço da experiência de cotas nacional e apresentar o impacto desta política sobre o ensino superior brasileiro. A proposta era de debater as críticas levantadas antes da efetivação da experiência de cotas com os resultados observados, ressaltando os aspectos que subsidiam os posicionamentos favoráveis e contrários, comprovados pelas experiências de implantação.
O professor Jocélio Teles dos Santos, do Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), participou do processo de implantação da política de cotas naquela instituição, o que ocorreu há dez anos. “Falar sobre essa experiência é voltar no tempo, a 2004, quando a UFBA foi a quarta universidade federal a implantar as cotas, depois da UnB, UFPR e Unifesp. No conjunto dos nossos estudantes, havia 43% de pretos e pardos. Mas observamos que esse número diminuía drasticamente nos cursos de maior competitividade (medicina, arquitetura, engenharia) e crescia até próximo dos 40% nos de baixa competitividade. Mais: nos cursos de alta competividade, a presença maior não era só de estudantes autodeclarados brancos, mas de cujos pais e mães que tinha ensino superior e renda acima de sete salários mínimos.”
O mesmo quadro, segundo Jocélio Santos, era visto nas federais do Maranhão, Brasília, Paraná e Rio de Janeiro, sendo que em algumas se sobressaía a questão da renda. “As desigualdades começavam ali, o que levou ao modelo de cotas adotado pela UFBA em 2004: a meta é de 43% de alunos oriundos da rede pública de ensino para todos os cursos e, dentre esses 43%, 85% de pretos e pardos e 15% de não negros. Além disso, são reservadas duas vagas em cada curso para índios aldeados e duas para quilombolas. Desde lá, acompanhamos o impacto do sistema de cotas e hoje temos professores comentando que suas turmas não são mais as mesmas. A tradução é que até 2004 determinados colégios privados tendiam a colocar grupos de alunos nos cursos de prestígio.”
Dora Lucia de Lima Bertulio, com experiência na implementação do sistema de cotas como procuradora da Universidade Federal do Paraná (UFPR), afirmou que ao invés de apresentar dados sobre aquela experiência, propunha uma reflexão sobre a necessidade de se justificar, o tempo inteiro, por que os negros merecem um tratamento diferenciado para que possam competir com igualdade de condições e de oportunidades na sociedade. “É importante dizer que a população negra, desde que chegou ao Brasil, tem lutado contra todo um processo de escravidão, opressão, racismo e discriminação. É fundamental ter em mente que somos protagonistas de tudo o que temos conseguido.”
Em detrimento da história oficial, a procuradora federal procurou mostrar, principalmente, como as leis abolicionistas foram criando no inconsciente coletivo da sociedade brasileira uma hierarquização das pessoas a partir do seu pertencimento racial. “Um exemplo é a lei do fim do tráfico negreiro, que permitia a reexportação deste produto do tráfico para qualquer lugar da África, ou seja, sem considerar de onde as pessoas vieram, o que já seria uma depreciação da origem e de toda a dignidade dos negros. Já em 1831, o Brasil proibia a entrada de negros se não fosse para serem escravizados. Por isso, acho muito importante a leitura de toda a legislação do Império.”
Tatiane Consentino Rodrigues, professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), falou sobre os 10 anos de experiência da instituição em política de ação afirmativa. “Espero contribuir a partir da minha experiência como aluna que participou de processo semelhante ao de vocês, até a aprovação desta política, e agora como docente na mesma universidade, vivenciando cotidianamente os resultados e desafios do seu processo de implementação. Compartilho também os resultados de pesquisas que tenho coordenado e orientado sobre este tema, com foco na implementação desses programas nas instituições federais.”
Uma observação de Tatiane Rodrigues é que as federais têm adotado políticas de reestruturação curricular a partir das ações afirmativas, e que as políticas de acesso são acompanhadas por mudanças curriculares de pesquisa e de extensão. “O pressuposto é que as políticas de ação afirmativa não se limitem a questões relativas ao acesso de estudantes anteriormente excluídos ou com desiguais possibilidades de ingresso. A meta é que essas políticas passem a integrar e modificar a estrutura universitária, estando presentes em diferentes componentes do dia a dia da universidade, como indicam todos os documentos normativos da proposta para educação das relações étnico-raciais no ensino superior.”
A professora Rachel Meneguello, pró-reitora de Pós-Graduação da Unicamp e coordenadora do grupo de trabalho que vem organizando as audiências públicas sobre “Cotas e ações afirmativas”, disse que no início de 2017 será apresentado um relatório ao Conselho Universitário (Consu), que analisará o documento em reunião extraordinária, para posterior votação da proposta de adoção do sistema de cotas. Da mesa desta segunda audiência pública também participaram os professores Julio Cesar Hadler Neto, coordenador do Fórum Pensamento Estratégico (Penses), e Mário Medeiros, do Departamento de Sociologia, e Téofilo Reis, antropólogo e funcionário da Unicamp.