Marisa Rezende e Egberto Gismonti cultuam a tradição, mas não abrem mão do novo. Incursionam por áreas – da dança à literatura – nas quais a música, em movimentos imperceptíveis, compartilha o protagonismo. Amalgamam, em suas composições, lirismo e experimentalismo, rigor e ruptura.
Com atuações em campos diferentes no espectro da produção nacional, os dois compositores são os homenageados da quinta edição do Festival de Música Contemporânea Brasileira, a ser realizado em Campinas entre 20 e 24 de março (confira a programação). Ambos passarão pela Unicamp – Egberto no dia 22 e Marisa, 23. A Universidade, por meio da Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários (Preac) e Instituto de Artes (IA), está entre os organizadores do evento.
Marisa Rezende, cuja estreia como concertista deu-se em 1963, afirma ter recebido “com alegria” a homenagem, embora não tenha deixado de, entre risos, fazer menção aos “anos que vão se acumulando”, associando-os à condição de protagonista do evento. “Isto faz com que fiquemos um pouco mais na condição de possível homenageado”, brinca.
A compositora carioca [Rio, 1944] destaca o fato de o evento pavimentar pontes com o público em geral – inclusive o leigo e o externo – ao ter, na programação, concertos, um grande número de peças, mesas-redondas, comunicações orais, entre outras atividades, contemplando diferentes segmentos da produção musical.
“O festival faz, de fato, uma varredura expressiva”, afirma Marisa, referindo-se à execução de cerca de dez peças de sua autoria, o que possibilitará que o público tenha uma visão mais abrangente de sua trajetória. “Serão executadas, por exemplo, peças recentes e outras compostas há 30 anos. Há, portanto, um conjunto de vetores que pode ajudar a ter uma percepção mais clara de quem eu sou e qual é o meu trabalho.”
Já Egberto Gismonti especula sobre as razões da homenagem, recorrendo aos trabalhos que se sucederam em meio século na música. O “talvez” da frase revela uma ponta de modéstia. “Talvez seja pelo conjunto da minha obra – 70 discos, 35 balés, 35 filmes, 32 peças teatrais, etc –, ou pelos 70 anos que completei em dezembro passado”, contabiliza.
“Essa homenagem representa uma alegria para um brasileiro que gosta do Brasil e sabe que o país é muito pouco atento ao seu povo. Significa que nem tudo está perdido”, comemora, para depois recorrer de novo à modéstia. “Não estou falando da minha pessoa. Falo de um brasileiro que produz coisas brasileiras.”
O compositor fluminense [Carmo, 1947] admite que, para além do festival, está surpreso com a quantidade de manifestações de reconhecimento da sua música, sobretudo de um ano para cá. Músicos americanos, italianos, franceses e brasileiros, por exemplo, acabam de entrar em estúdio para gravar a sua obra completa. Egberto também recebeu o título de doutor honoris causa de universidades do Canadá, Brasil e Dinamarca. “Trata-se de uma coisa meio fora de padrão. Não é muito comum homenagem a músico vivo.”
Marisa concorda com o colega, mais especificamente quando se fala de Brasil e de música erudita, sua área de atuação. Em sua opinião, é dispendido muito esforço para programar obras de compositores vivos, mesmo que seja apenas uma peça ou um concerto, o que, segundo ela, já não é um fato rotineiro. “Quando se fala então em um conjunto maior de obras, fica ainda mais difícil, sobretudo quando há também o comentário e o depoimento do autor. Trata-se, neste caso, de mais um elemento que demanda espaço e energia para acontecer”.
Para a compositora, as pessoas no Brasil não estão habituadas a ouvir o lado de quem cria. “O país carece muito desse tipo de iniciativa. Seria muito bom se houvesse, de alguma forma, uma mudança nesse estado de coisas”, afirma, lembrando como tem sido difícil manter a Bienal de Música Brasileira Contemporânea, o mais tradicional evento do gênero no país.
Segundo ela, a realização da última edição, em 2017, no Rio de Janeiro, foi um “ato de resistência”. “Não havia verba. E a Bienal é nossa maior vitrine, a mais antiga que se tem no país. Com todas as dificuldades, ela ainda congrega um número grande compositores novos ao lado de compositores mais antigos”.
Marisa vê como “preocupantes e sérios” os sucessivos contingenciamentos e a falta de investimento nas áreas da educação e da cultura. “Não entendo, de fato, que tipo de viés é esse. Como um país vai se por de pé sem que a gente tenha mudanças importantes nessas duas áreas?”, indaga. “Lamento que seja assim. Só vamos crescer como país e como nação no dia em que mudarmos esse estado de coisas.”
O cravo e as andorinhas
Marisa e Egberto têm ligações com a Unicamp e, consequentemente, com Campinas. A compositora chegou a morar um breve período na cidade, no início da década de 1970. Fala de uma passagem em especial. Nos primórdios da Unicamp, os físicos Rogério Cezar de Cerqueira Leite e Marcello Damy decidiram criar um laboratório acústico no Instituto de Física (IFGW) da universidade, e o luthier japonês Hidetoshi Arakawa foi recrutado para confeccionar instrumentos. A convite de Cerqueira Leite, Marisa Rezende participou, em 1971, ao lado de músicos, entre os quais Natan Schwartzman, da inauguração de um cravo feito por Arakawa. “ Foi um recital de música de câmara”, lembra.
As conexões de Gismonti com Campinas e a Unicamp foram mais longevas e intensas. Duas das pontas dessa relação são caras ao compositor. Uma foi o maestro Benito Juarez, um dos fundadores do Departamento de Música do Instituto de Artes (IA) da Unicamp e regente da Orquestra Sinfônica de Campinas. “Passei muitas vezes por Campinas e pela Unicamp, nos anos 70 e 80, não apenas para tocar, mas também para fazer gravações para cinema e balé, sempre com o apoio de Benito e dos músicos. Fizemos muitos projetos juntos.”
A outra foi a escultora japonesa Akiko Fujita, de quem o compositor é amigo. Em meados da década de 1980, Egberto musicou a obra Casa das Andorinhas, escultura feita na Unicamp por Akiko, com barro, argila e a ajuda de alunos, numa referência ao epíteto de Campinas de “Cidade das Andorinhas” e ao entra e sai de estudantes na Universidade, movimento semelhante ao da algaravia das aves quando fazem seus ninhos. “Faço essas referências para dizer que sempre tive muitas experiências em Campinas, todas elas muito boas.”
Embora venham de longa data as ligações de Egberto com o mundo acadêmico, ele não deixa de observar novas nuances nessa relação. Uma delas é o fato de passar a ser estudado em diferentes recortes – para usar um termo recorrente nas universidades –, surpresa para um compositor cuja característica é justamente a pesquisa – dos estudos iniciais em Paris a reboque da dodecafonia de Jean Barraqué à temporada no Alto Xingu, passando ao longo de todo o seu percurso por uma busca incessante por novas sonoridades, da valsa de retreta ao frevo e maracatu, entre outros ritmos brasileiros.
Egberto sabe exatamente o número de pesquisas acerca da sua obra. São 29 (quatro na Unicamp), entre teses e dissertações, feitas no Brasil, na França e na Alemanha, numa tendência que, segundo ele, intensificou-se na última década. Para além da satisfação em ter o seu trabalho esquadrinhado, o compositor festeja o componente multifacetado dos estudos, até por identificar-se com a diversidade. “Isto é muito bacana, porque é assim que eu procuro pensar a música”. Gismonti diz em seguida, como que se desculpando por passar a impressão de ter se excedido num arroubo ou em algo que soe como vaticínio, que “não é poesia, mas a realidade”.
Mas, afinal, como ele pensa a música? “Da mesma forma como costumo pensar a vida”. O compositor diz que há muito se sente à vontade em ser contraditório, de trocar de ponto de vista de acordo com o que a vida lhe apresenta. “Troquei o verbo experimentar por achar. Quero dizer, com isso, que estou procurando sempre achar soluções para problemas que eu ainda considero insolúveis”.
Nessa busca, na qual sobram exemplos de experimentalismo nos palcos e na discografia, ele não deixa de prestar tributo a Carmo, cidade natal, e à família, em especial aos pais, Ruth, de descendência italiana, e Camilo, um libanês que chegou ao Brasil aos 6 anos de idade, mesma idade com que Gismonti começou a tocar piano, um dos instrumentos que domina. “Meu mundo começa em Carmo”, costuma dizer, enfileirando nomes de parentes, entre os quais Edgar, tio do lado materno e regente da banda da cidade. “Devo tudo a eles”.
Para o compositor, a melhor definição sobre a sua produção e o seu jeito de ver o mundo, é do poeta Ferreira Gullar, um dos muitos amigos que fez na literatura – além de trechos da obra do maranhense e de ter em Mário de Andrade sua maior referência, Egberto musicou trabalhos de Manoel de Barros, João Cabral de Melo Neto, Jorge Amado e Geraldo Carneiro, entre outros. Gismonti conta que, numa roda informal de amigos, na qual cada um expunha uma ideia sobre a criatividade ou contradições do outro, Gullar disparou: “O Egberto tem mais formigas na cadeira do que os outros”.
A exemplo do colega, Marisa musicou obras literárias, entre as quais o poema “Árvore”, do moçambicano Mia Couto; “Trama”, obra para violoncelo e orquestra de câmara, inspirada no poema “As três palavras mais estranhas”, da polonesa Wislawa Szymborska; e tem várias canções sobre poetas diversos – Vinícius de Moraes, Fernando Pessoa, Mário de Andrade, Orides Fontela, Décio Pignatari, Rilke –, entre as quais quatro poemas do poeta paulistano Haroldo de Campos, pai do concretismo. Em um dos poemas, do qual Marisa declamou trecho na entrevista [“libélulas eletrizam o ar citrino”], ela chegou a colocar apetrechos sobre as cordas para que o som do piano ficasse um pouco “rachado”, distorcido.
Neste último caso, a despeito de considerar “instigante” a inspiração em obra de um dos cânones da poesia de vanguarda no país, Marisa Rezende não titubeia em dizer que sua linguagem não é desvinculada da tradição. “Eu continuo com valores muito fortes da parte tradicional da música. Mas isso é uma questão de temperamento, de história de vida”, afirma.
Indagada sobre a inserção de elementos novos, que passam ao largo do convencional em sua obra, a compositora reconhece que eles existem, mas reafirma que não tem nenhuma vontade de negar e/ou contestar a sua bagagem e a forma de encarar as coisas. “Vou dizer de uma maneira muito simplista – há muito de verdade nas coisas simples. O fato de eu valorizar, como pessoa, uma porção de coisas da tradição, do passado – como a família, porque tenho um apego grande aos elos que ela traz – não impede que eu viva o meu tempo agora e que eu seja uma pessoa fora do meu tempo. Acho que a mesma coisa acontece com o discurso musical. Ele não deixa de ser uma forma de eu me expressar”.
Marisa concilia o seu trabalho de compositora com a carreira acadêmica. Assinou dezenas de artigos, fez mestrado e doutorado nos EUA, pós-doutorado na Inglaterra, foi docente na Universidade Federal de Pernambuco e professora titular de composição da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde criou o Grupo Música Nova. A despeito disso, Marisa relativiza o papel da pesquisa em sua obra. “Nunca li ou ouvi alguma coisa em trabalho que me tenha feito repensar a produção. Até pode acontecer, mas não foi o caso ainda”, afirma. “Sobretudo no início da carreira, fiz artigos, me apliquei num exercício reflexivo, o que é sempre difícil. Na condição de criadores, precisamos sempre de certo distanciamento cronológico daquilo que fazemos, até pelo envolvimento que se tem na hora de compor. Embora difícil essa relação, o exercício é válido e importante”.
Em outra esfera, na qual a compositora – uma das fundadoras da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – passa a ser pesquisada, as coisas, segundo ela, podem mudar de figura.
Em sua opinião, o intérprete, ao se dedicar a um estudo mais aprofundado e ao escrever uma tese ou dissertação sobre um aspecto qualquer que exista na sua obra, tem mais uma possibilidade de leitura, seja de um ponto mais genérico ou de outro mais detalhado, como, por exemplo, um estudo de autor. “A pesquisa tem um fluxo mais contínuo, são muito alunos de pós-graduação se dedicando a isso. Trata-se de um nicho importante porque, em seus trabalhos, os alunos ajudam não somente a pensar a obra, mas também a divulgam”.
Para exemplificar, Marisa Rezende conta a história de uma brasileira que fazia doutorado em Londres e encontrou a sua obra para piano na dissertação de um pesquisador do Rio Grande do Sul. “A partir daí, ela começou a se interessar e trabalhar nas minhas peças.”
Festival contribui para a formação de alunos do IA, afirma HashimotoO pró-reitor Fernando Hashimoto: “São visíveis os reflexos no progresso dos estudantes”Para o pró-reitor de Extensão e Assuntos Comunitários, professor Fernando Hashimoto, o Festival de Música Contemporânea Brasileira já se tornou um dos principais eventos de música nova no Brasil. Hashimoto destaca especialmente as contribuições que a presença de compositores renomados têm dado para a formação de alunos do Instituto de Artes (IA) da Unicamp, uma das sedes e organizador do evento desde a primeira edição. “São visíveis os reflexos no progresso dos estudantes do curso de música, que têm acesso franqueado, assim como a comunidade externa, a uma série de atividades, entre as quais cursos, palestras, concertos e mesas redondas”. Para o titular da Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários (Preac), que é músico de formação e docente do IA, a vinda de Egberto Gismonti e Marisa Rezende, nesta quinta edição, é mais uma oportunidade para alunos e a comunidade terem contato com dois dos maiores compositores brasileiros contemporâneos. "Trata-se de uma agenda cultural de altíssimo nível”, finaliza. Além do Instituto de Artes, atividades – todas gratuitas – ocorrerão também no Centro Infantil Boldrini, na CPFL e no Teatro Municipal Castro Mendes.
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PLAYLIST DO EDITOR
MARISA REZENDE
Marisa Rezende – Trama
https://www.youtube.com/watch?v=qpWY98V2g-o
Marisa Rezende – Ânima
https://www.youtube.com/watch?v=2w6PnASrW4s
Vórtice (Mariza Rezende) – Quarteto Coralina
https://www.youtube.com/watch?v=WSyJdsLHFsA
Marisa Rezende - Trio para Oboé, Trompa e Piano
https://www.youtube.com/watch?v=h4FQK_5kFbw
Marisa Rezende - Quatro Poemas
EGBERTO GISMONTI
Egberto Gismonti – Sonho 70
https://www.youtube.com/watch?v=xXmSc6ikfyA
Egberto Gismonti – Palhaço
https://www.youtube.com/watch?v=6rm518K6cWM
Egberto Gismonti, Jan Garbarek, Charlie Haden – Palhaço
https://www.youtube.com/watch?v=kJd0vbG7w30
Egberto Gismonti - Jan Garbarek - Charlie Haden – Mágico
https://www.youtube.com/watch?v=OtqPoCo2cxQ
Egberto Gismonti e Naná Vasconcelos – Dança das Cabeças
https://www.youtube.com/watch?v=K1EwZPvdmvw
Egberto Gismonti e Hermeto Pascoal (Berliner Jazztage 1975)
https://www.youtube.com/watch?v=cGjUxfoDuUQ
Egberto Gismonti e John McLaughlin
https://www.youtube.com/watch?v=e-zUM2jPy2Y
Egberto Gismonti Trio - 7 Aneis/Infância/Forró
https://www.youtube.com/watch?v=n8B3-ZCsqcE
Teses e dissertações sobre os compositores defendidas na Unicamp
EGBERTO GISMONTI
Autora: Maria Beatriz Cyrino Moreira
Orientador: Antonio Rafael Carvalho dos Santos
Ano:2016
Dissertação: A dança das oito cordas nas cabeças de Egberto Gismonti
Autor: Mario Admir Patreze Junior
Orientador: Paulo José de Siqueira Tiné
Ano: 2017
Dissertação: Alma: o estilo pianístico de Egberto Gismonti
Autor: Vinícius Bastos Gomes
Orientador: Paulo José de Siqueira Tiné
Ano: 2015
Dissertação: Corporalidade musical : as marcas do corpo na música, no músico e no instrumento
Autor: Mario Admir Patreze Junior
Orientador: Márcia Maria Strazzacappa Hernandes
Ano: 2006
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MARISA REZENDEDissertação: Cinco mulheres compositoras na música erudita brasileira contemporânea
Autora: Tania Mello Neiva
Orientador: Lenita Waldige Mendes Nogueira
Ano: 2006