Autonomia e independência. Palavras simples, mas com significados tão profundos quando se trata da liberdade de ir e vir. Numa sociedade onde a exclusão social das pessoas com deficiência é predominante, o carro adaptado revela-se como um símbolo importante de empoderamento no que diz respeito à mobilidade. Tese defendida em 2018 no Instituto de Geociências (IG) da Unicamp aborda o assunto a partir do processo de habilitação para pessoas com deficiência e do processo de isenção de impostos para a compra e adaptação do automóvel.
Adriana Silva Barbosa defendeu a tese “Tecnologia assistiva e seus usuários: automóveis adaptados no Brasil”, sob orientação da docente Léa Maria Leme Strini Velho. O doutorado foi desenvolvido entre 2014 e 2018, no Departamento de Política Científica e Tecnológica do IG. O trabalho trata de pontos importantes da perspectiva econômico-social, como o conceito de deficiência para usuários de tecnologia assistiva, a convivência com os preconceitos, a aquisição de automóveis por pessoas com deficiência (PcD), modificações técnicas nos veículos para atender às necessidades de PcD, as dificuldades no processo de habilitação, as lacunas da legislação brasileira, além do mercado dos carros adaptados.
Quando Adriana entrou no doutorado do IG, seu objetivo era trabalhar com produção científica e ética, mas sua orientadora a convidou para desenvolver sua tese na área de Estudos da Deficiência em interface com os Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia. “Adorei a ideia, pois eu tenho uma deficiência física. Já tinha estudado esse tema sob outras perspectivas e, na época, eu estava envidando esforços para aprender a dirigir um carro adaptado e tirar a CNH especial. Então, quis estudar sobre o que eu estava vivenciando”, conta Adriana. Léa Velho apoiou a escolha do tema de pesquisa. Nesse meio tempo, além de aprender a dirigir, Adriana encontrava tempo para cuidar do filho, que à época de sua aprovação tinha apenas cinco meses.
Adriana coletou e analisou postagens de blogs de pessoas com deficiência. Também entrevistou nove blogueiros. Leia abaixo a entrevista concedida ao Portal da Unicamp:
Quais foram os resultados obtidos em sua pesquisa?
Adriana: Minha tese se desenvolveu em três frentes de estudo. Na primeira, procurei entender o que é a deficiência na percepção das pessoas com deficiência física, assim como os significados da deficiência no contexto social. Na segunda frente de estudo, ocupei-me da relação da tecnologia assistiva com fatores técnico-científicos, políticos e econômicos. Na terceira frente, tratei da mútua reconfiguração usuário com deficiência x tecnologia assistiva, que trata da interrelação entre as necessidades dos usuários com deficiência e as tecnologias oferecidas pelos fabricantes de adaptações nos automóveis. É nesta terceira parte que abordo como os condutores com deficiência lidam com as adaptações automotivas para aprenderem a dirigir um automóvel adaptado.
Pessoas que dirigiam antes da deficiência, ao reconfigurarem seus corpos para dirigirem carros adaptados, utilizam suas configurações prévias como ponto de partida. Já os condutores que possuíam deficiência antes do processo de habilitação não têm uma configuração prévia e utilizam a tecnologia assistiva como ponto de partida, o que se constitui numa configuração às cegas. São múltiplas as possibilidades de reconfiguração para os condutores com deficiência; mas, para todos, dirigir seu próprio automóvel adaptado significa liberdade, autonomia e independência.
A que conclusão chegou?
Adriana: No que concerne à deficiência, cheguei à conclusão de que seu conceito deve permanecer em aberto, pois a deficiência é uma entidade complexa, multifacetada e dinâmica que se relaciona com uma infinidade de fatores. Isso significa que a deficiência não se restringe ao corpo, nem ao meio. Ela é em relação a algo ou a alguma coisa, não é estática e cada PcD possui seu próprio conceito, que está relacionado às suas características físicas, vivências, seu contexto socioeconômico e financeiro. Mas ainda temos que conviver com os preconceitos familiares e sociais e lutar contra eles. Isso significa que precisamos sempre provar que somos capazes de tomar as nossas próprias decisões e fazer o que queremos. Nesta conjuntura, o carro adaptado é um símbolo de empoderamento, pois ele não atesta apenas a nossa capacidade físico-cognitiva, mas significa autonomia, independência, o direito de ir e vir. Mas é claro que o carro adaptado sozinho não resolve nossos problemas de acessibilidade, seja pela ocupação indevida de vagas de estacionamento para pessoas com deficiência, seja porque a maioria dos ambientes não é acessível.
Na pesquisa, também ficou evidente que, embora esteja em permanente evolução, o processo de habilitação para pessoas com deficiência ainda é lento, laborioso, burocrático e permanece restrito, na maioria dos estados, às capitais. Para se ter uma ideia, só consegui tirar a CNH especial em 2014 em São Paulo porque na Bahia, meu estado de origem, o processo de habilitação para pessoas com deficiência ocorre apenas em Salvador ou em regime de mutirões. Não é possível passar pela banca examinadora especial do Detran e fazer a prova prática no mesmo mutirão, pois entre estas duas etapas há as aulas teóricas e práticas da autoescola, etc. Então, mesmo participando de mutirões, em pelo menos uma parte do processo é necessário se deslocar para Salvador.
Minha pesquisa também mostrou que a configuração original (de fábrica) dos veículos interfere na escolha pelo condutor com deficiência na hora da compra do carro, que o design das adaptações interfere no conforto e na dirigibilidade dos condutores com deficiência. Daí, a importância de que tais adaptações atendam às necessidades dos usuários com deficiência.
A pesquisa me levou a várias outras conclusões importantes, mas uma das coisas mais relevantes que ela mostra é que, embora a relação que se estabelece entre o condutor com deficiência e seu carro seja diferente por envolver mais dois elementos (a deficiência e a tecnologia assistiva automotiva), esta não é menos eficiente do que a que se estabelece entre um condutor sem deficiência e seu carro. A relação condutor com deficiência x tecnologia assistiva x carro é mais complexa, mas tão eficiente quanto a relação condutor sem deficiência x carro.
Qual foi a metodologia utilizada?
Adriana: A metodologia de coleta de dados foi desenvolvida por mim, sob orientação da professora Léa Velho, e testada no artigo “Mobilidade Urbana para Pessoas com Deficiência no Brasil: Um Estudo em Blogs”. A análise dos dados foi realizada com base no referencial teórico que escrevi para a tese, na teoria da mútua reconfiguração usuário-tecnologia, que é uma das várias teorias de construção social da ciência e da tecnologia no campo dos Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia, e na Teoria Fundamentada nos Dados (GroundedTheory).
Houve alguma atividade de campo ou trabalho com pessoas que necessitam dessa tecnologia?
Adriana: Houve trabalho de campo tanto na coleta das postagens dos blogs, quanto nas entrevistas com os blogueiros com deficiência. As entrevistas foram, em sua maioria, realizadas pelo Skype, mas a interação com eles foi muito boa.
Como o assunto é abordado na legislação brasileira?
Adriana: Meu trabalho partiu do processo de habilitação para pessoas com deficiência e do processo que se segue a ele, que é o de isenção de impostos para a compra e adaptação do automóvel. Não há uma lei única que trate de cada um desses processos ou dos dois ao mesmo tempo. Tudo isso é tratado de forma esparsa na legislação, na maioria das vezes através de decretos ou resoluções e portarias do Contran ou do Denatran. Esses processos precisam ser desburocratizados e o processo de isenção de impostos (IOF/IPI, ICMS e IPVA) precisa ser unificado. Estes aspectos também foram abordados na tese.
Como você aborda a venda de carros adaptados para Pessoas com Deficiência (PcD)?
Adriana: Eu trato sobre isso quando falo dos processos de habilitação e isenção de impostos para a compra e adaptação de carro para pessoas com deficiência e quando abordo sobre o mercado de tecnologia assistiva no Brasil. Para se ter uma ideia, a venda de carros com isenção de impostos tem crescido mais do que a de carros convencionais. Apesar disso, o processo de habilitação para pessoas com deficiência permanece restrito às capitais na maioria dos estados. Se o processo de habilitação fosse mais disseminado e mais acessível às PcD, o crescimento seria ainda maior.
Infelizmente, o carro adaptado não é para todos. A maioria das PcD não tem condições de comprar um carro e adaptá-lo, inclusive porque há adaptações muito caras. Mas as pessoas com deficiência são um nicho de mercado promissor. Se nos forem oferecidas as condições necessárias de saúde, educação, acessibilidade, emprego e renda, podemos ser pessoas ativas como quaisquer outras. É claro que o carro adaptado não resolve todos os problemas de acessibilidade existentes no Brasil, mas, numa sociedade onde a exclusão social das pessoas com deficiência ainda predomina (como é o caso da brasileira), temos que atuar e lutar pelo direito de ir e vir e pela inclusão social em todas as frentes e o direito de dirigir um automóvel adaptado é uma delas.
Como a tese pode ajudar pessoas que necessitam de tecnologia assistiva?
Adriana: A tese pode ajudar as pessoas com deficiência quanto à escolha, à adaptação e ao uso da tecnologia assistiva, em especial a automotiva. Além disso, pode ajudar as pessoas com deficiência a compreenderem como funcionam os processos de habilitação e isenção de impostos para a compra e adaptação de automóveis, bem como contribuir para o desenvolvimento de novos dispositivos de tecnologia assistiva automotiva e inovações incrementais nos já existentes.
Há mais alguma informação que considere importante divulgar?
Adriana: Eu quero deixar uma mensagem para as pessoas com deficiência e também para as sem deficiência: nós, pessoas com deficiência, somos capazes de ter uma vida autônoma e independente. Precisar de ajuda não é defeito, pois todas as pessoas precisam de ajuda em pelo menos algum momento de suas vidas. Então, mesmo que você tenha algum nível de dependência, não deixe de lutar pelos seus sonhos, pois você pode realizá-los. Nós, pessoas com deficiência, podemos realizar nossos sonhos e ser felizes como somos.