Hoje é o dia Internacional de Mulheres e Meninas na Ciência, iniciado em 2016 pela Unesco para mobilizar o debate, análises e ações que valorizem e aumentem a presença feminina na ciência e tecnologia e em todos os níveis da carreira. A atenção está nas ciências exatas e engenharias, onde a participação feminina é menor, mas incentiva a reflexão em todas as áreas. De acordo com a Unesco, as mulheres representam 28% dos pesquisadores em todo o mundo, enquanto no Brasil os dados são mais promissores, há quase paridade com os colegas (49%). Os avanços conquistados, no entanto, não diminuem a urgência de ações que acelerem a necessidade de políticas afirmativas que garantam maior representatividade feminina. “Precisamos de uma política mais abrangente para alcançar efetivamente a equidade de gênero na C&T”, defende Betina Stefanello Lima, autora de tese de doutorado sobre as políticas de equidade de gênero e ciências no Brasil defendida em 2017 no Instituto de Geociências.
Na Unicamp, as mulheres já são a maioria entre os inscritos no vestibular (56%) de 2018, mas entre os matriculados elas compõem 40% dos 69 cursos da Unicamp, participação que tem se mantido relativamente estável nos últimos 20 anos, de acordo com dados da Comvest. Na pós-graduação, porém, elas praticamente se igualam (49,6%) entre os matriculados de todas as áreas, embora nas ciências exatas e da terra e engenharia, não ultrapassem o teto dos 30% (veja gráfico), segundo o Anuário da Pós-graduação da Unicamp. A menor participação se dá nas ciências da computação (15,7%), matemática e estatística (28,5%), engenharias elétrica (21,1%) e mecânica (22,8%), e na física (31,6%).
Em tempos de imediatismo há uma sensação de que os avanços deveriam ser mais rápidos. É preciso reconhecer que houve avanços importantes nos últimos vinte anos, quando apenas 5,7% dos matriculados em pós-graduação em engenharia mecânica eram mulheres, 6,6% na engenharia elétrica.
Há pouco mais de 50 anos, quando a Universidade tinha um ano, em 1967, a lista de aprovados no primeiro curso de engenharia da Unicamp, incluía 4,7% de alunas dentre as 126 vagas da Faculdade de Engenharia Industrial. No ano passado a engenharia elétrica matriculou 27,1% de meninas, a química 25%, a mecânica 11,3% e de computação 11,1%.
Minoria mas com melhor rendimento
Apesar de serem ainda minoria entre as matriculadas na Unicamp e ingressarem com notas 3,1% inferiores a seus colegas, as mulheres se destacam ao final dos cursos, com notas médias 9,5% superiores (considerando a nota do CR, coeficiente de rendimento). Essa conclusão de impacto foi publicada em 2009 em artigo nos Cadernos Pagu, pelas docentes e pesquisadoras Elza Vasconcellos, da física, e Sandra Brizolla, da geociências da Unicamp. A diferença pode ser ainda maior em áreas como a biologia, saúde e ciências humanas, medicina, odontologia e economia. As autoras também verificaram que as alunas têm maior percentual de conclusão dos cursos com menor taxa de evasão.
Elza formou-se em física pela USP em 1965 e é docente aposentada do Instituto de Física Gleb Wataghin da Unicamp. Ela conta que antes de publicar o artigo não estava muito atenta a questão de gênero em sua área, embora fosse frequentemente a única mulher em sala de aula, reuniões, conselhos e laboratórios. “Eu era muito boa aluna, não me sentia intimidada pelos meus colegas”, relembra. Mãe de dois filhos, ela concorda que a ascensão na carreira e a produtividade sejam mais difíceis para as mulheres e vê com otimismo os movimentos em prol da igualdade de gênero. “São muitas variáveis para mudar o cenário, e a lei de Newton é válida aqui também: pelo fato das mulheres estarem forçando nesta direção [em prol da igualdade] existe reação”, compara.
Dentre as inúmeras dificuldades que se abrem no caminho feminino está o machismo, mais presente nas áreas com maior presença masculina. A estudante de doutorado em engenharia elétrica Clarissa Loureiro, primeira mulher a presidir a Associação dos Pós-Graduandos da Faculdade de Engenharia Elétrica e da Computação (Apogeeu) é bastante engajada na questão de gênero nas engenharias e atua em grupos que debatem políticas afirmativas em Campinas, no estado de São Paulo e na América Latina. Clarissa percebe que o movimento de gênero na ciência ainda é baseado em iniciativas de grupos de docentes e estudantes e defende políticas de combate ao assédio sexual, moral e a depressão no ambiente acadêmico que “continua sendo muito machista”. “Precisamos de mais incentivo e apoio dentro das universidades, nas escolas de ensino médio e fundamental”, concluiu.
Em setembro de 2017, a Unicamp criou um GT para debater e estabelecer políticas de combate à violência e discriminação baseada em gênero no âmbito da universidade. “Esse grupo propôs a criação de uma secretaria que, entre outras coisas, ficará responsável pelo acolhimento e encaminhamento de denúncias de assédio, bem como a elaboração de campanhas de conscientização da comunidade universitária. No Imecc [Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica] criamos o grupo Elza com o objetivo de propor ações para a criação de um ambiente livre de assédio e ações de incentivo à permanência feminina no instituto”, afirmou Anne Caroline Bronzi, professora do Imecc e integrante do projeto de extensão de Olimpíadas de Matemática da Unicamp, em entrevista concedida à equipe do podcast Oxigênio.
A Coordenadora Geral da Unicamp, química e professora titular Teresa Dib Zambom Atvars, acredita que há diferenças de atribuições no ciclo de vida de homens e mulheres que resultam em maiores atribuições para elas. "Do ponto de vista da qualidade, não tem diferença. Do ponto de vista quantitativo, o ciclo é diferente. E a academia não está preparada para responder a essa diferença. Nem aqui na Unicamp nem fora", afirma. Teresa, que dividiu o início de carreira com a maternidade, reconhece que a universidade terá que lidar com políticas que toquem a questão de gênero na ciência. "Em algum momento esse assunto vai ter que vir à tona na academia, porque ele é um tema relevante para a valorização da mulher", afirmou. Teresa compartilhou de sua experiência pessoal na carreira e maternidade ao Oxigênio.
Modelos nas universidades
Elza não teve nenhuma professora durante a graduação em física na USP. Tampouco teve Gabriela Castellano, professora do IFGW, formada em física. Ambas têm em comum a facilidade e o prazer com os cálculos matemáticos e pelo pensamento lógico e abstrato, encontraram apoio familiar nas escolhas, se destacavam entre os alunos da turma e escolheram ser mães. A distinção no tratamento e assédios sofridos por muitas cientistas e pesquisadoras ao longo da carreira não fizeram parte da experiência de Elza ou Gabriela. Apesar disso, ambas se envolveram com ações relativas ao debate de gênero na física e reconhecem que muitas não tiveram a mesma sorte e que é preciso mudar esse quadro para garantir que as ingressantes nos cursos sejam mais numerosas, se formem e avancem na carreira com as mesmas oportunidades que seus colegas.
Gabriela faz parte das 33% mulheres que ocupam cargos de docência na Unicamp, considerando todas as áreas, acima das estimativas internacionais. Na física elas não somam 10%, na engenharia elétrica 6,5% e na mecânica 8,1%. Percentual já superado pelas alunas de pós-graduação, o que traz otimismo para o futuro no quadro universitário.
Política públicas
Betina analisou em seu doutorado o Programa Mulher e Ciência, criado em 2005, pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). “O programa foi um vetor para uma série de medidas sobre o tema [mulheres na ciência] e teve um efeito multiplicador, impulsionando outras iniciativas dentro e fora do governo federal”, ressalta. A física Gabriela é exemplo desse efeito multiplicador. Ela aguarda aprovação do projeto M.A.F.A.L.D.A. (Meninas na químicA, Física e engenhariA para Liderar o Desenvolvimento em ciênciA), submetido a edital dentro desse programa e que a motivou a coordenar e atuar, pela primeira vez, em um projeto que aproxima a ciência e a engenharia de garotas de uma escola pública. Sua iniciativa recebeu apoio de inúmeras colegas que participarão do projeto, além de apoio da direção do Instituto de Física que reconhece a importância da iniciativa. Em breve 30 meninas participarão de oficinas dentro de diferentes espaços da Unicamp.
O teto de vidro
A ascensão na carreira de mulheres - na ciência ou na maioria das demais carreiras - é como uma corrida de barreiras em que muitas não conseguem superar os inúmeros obstáculos no caminho. Apesar da imagem de neutra e meritocrática, na prática a ciência tenta lidar com as mulheres como se estivessem sob as mesmas condições de pressão e temperatura que os homens. Betina e sua orientadora do doutorado, Maria Conceição da Costa, analisaram a distribuição de Bolsas Produtividade do CNPq em diferentes estratos e constataram que conforme se avança para o topo a presença feminina se torna mais rarefeita. A Bolsa é considerada um reconhecimento entre pares daqueles com destaque na produtividade e status dentro de sua área do conhecimento. Em 2014, as mulheres somavam 36% de todas as bolsas, percentual que tem crescido lentamente desde 2001 quando era 32%. A participação diminui conforme se avança nos estratos superiores, chegando a 24% no nível 1A. Betina explica em sua tese que parte dessa diferença está relacionada ao fato de haver mais bolsas concedidas nas áreas de ciências exatas, da terra e engenharias, tradicionalmente com maioria masculina.
A existência do chamado teto de vidro - que não se vê, mas existe para barrar a ascensão das mulheres na carreira - se faz presente também na área de ciências humanas e sociais aplicadas, tipicamente mais femininos. Quando se analisa as coordenadoras dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia, projetos com maior aporte financeiro do CNPq, elas são apenas 36% nas humanidade e apenas 14% quando todas as áreas são consideradas.
Entre os membros da Academia Brasileira de Ciências (ABC), a organização de maior prestígio acadêmico no país e cujos membros são eleitos por pares afiliados, a Unicamp possui um total de 42 membros, dos quais apenas 4 (9,5%) são mulheres: Carol Hollingworth Collins (química, eleita em 2005), Sara Teresinha Olalla Saad (cientista médica, membro desde 2011), Anita Jocelyne Marsaioli (química, eleita em 2013) e Iscia Teresinha Lopes Cendes (cientista médica, eleita em 2015). Interessante lembrar que tanto a química como as ciências biomédicas são áreas em que tradicionalmente possuem maior participação de mulheres quando comparado as demais ciências exatas e engenharias.
Iscia, que é professora titular da medicina, reforça que, apesar da medicina ser também uma área predominantemente feminina, há dificuldades de se chegar ao topo. “Não resta dúvida de que as mulheres são hoje mais incentivadas a seguir a carreira de sua preferência sem se preocupar com modelos pré-estabelecidos”, conclui, enfatizando que em seu laboratório elas são maioria entre estudantes de pós-graduação e pós-doutorado.
A maior presença de mulheres em todos os segmentos da sociedade força uma mudança de perspectiva sobre a questão de gênero, oferece modelos para meninas e meninos, amplia as possibilidades de carreira e tende a potencializar mudanças mais frequentes. Neste sentido, as políticas são estratégicas.
Esperamos que, em breve, o Dia de Mulheres e Meninas na Ciência seja todos os dias e que as 49% de pesquisadoras brasileiras, reveladas no relatório de produção científica da editora científica Elsevier, possam também quebrar o teto de vidro e ocupar, em pé de igualdade, os estratos superiores da carreira, qualquer que seja a área do conhecimento de atuação.
*Germana Barata é pesquisadora do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade (Nudecri) da Unicamp, e mãe do Thomás e do David.
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