Falar em mulheres na ciência é falar em equidade. E isso significa, entre outras coisas, a construção de mecanismos que garantam a meninos e meninas o mesmo direito de seguirem até a vida adulta suas vocações, sonhos e desejos. Na ciência - assim como em uma série de profissões e atividades sociais de grau mais alto de formação, remuneração ou prestígio - o acesso e permanência de mulheres continua vulnerável a barreiras políticas que se traduzem em gestos culturais.
Quem nunca ouviu dizer que “meninas não são boas em matemática”? Quem não conheceu uma menina que acreditou nisso? Lugares comuns como este, fazem parte de práxis de exclusão de mulheres e meninas de determinados domínios que, implicitamente, se pressupõe, devem ser reservados a homens e meninos. Tais exclusões privam mulheres e meninas de poder, de parte de si mesmas e empobrecem tanto os âmbitos que dependem de percepção e inventividade apuradas quanto a expansão do campo democrático.
Em países de passado colonial e escravista esses mecanismos de desigualdade são acentuados por uma cultura excludente particularmente violenta que, com frequência trágica, chega ao feminicídio. Entende-se, portanto, como políticas que garantem a equidade de acesso de mulheres à ciência desde a mais tenra idade, podem ser profundamente benéficas tanto para as pesquisas quanto para a sociedade.
As instituições de pesquisa reúnem pessoas de senso crítico apurado e altamente exigentes no que se refere à qualidade da informação. Mas, infelizmente, isso tudo não protege do preconceito. O papel de Henrietta Swan Leavitt (1868-1921) na trajetória científica que permitiu a Albert Einstein chegar a seus melhores resultados de pesquisa começa a se popularizar. Os efeitos desastrosos de seu ocultamento por um sistema social e científico excludente, no entanto, ainda não tiveram impacto à altura na maneira como outras mulheres são vistas e reconhecidas na ciência.
Em meio ao escândalo provocado pela divulgação de novas declarações racistas de James Watson voltou a público a história de como o prêmio Nobel recebido por ele em 1962 se deu às custas do uso, não autorizado, do raio-X que a química britânica Rosalind Franklin (1920-1958) produziu da molécula de DNA. O caso que o Dr. Watson não nega e comenta de forma jocosa, reitera o quanto a desigualdade entre homens e mulheres pode se entranhar na ética científica. Mostra também que o preconceito pode ser manipulado eficazmente para esconder a desonestidade.
O assédio é uma das formas mais banais do desejo de manter intactas as desigualdades. Ele pode se manifestar no desprezo, censura ou desconfiança em relação a pesquisadoras que, por exemplo, decidem ser mães. Os maus presságios também podem ser grandes se a pesquisadora for considerada bonita, ou feia...O preconceito pode excluí-la dos círculos de camaradagem que animam discussões profícuas.
Em partes diferentes do planeta a presença feminina ainda pode ser encarada sem desconforto como acidental, resultante de uma persistência insolente e não como um direito. Mudar tudo isso de forma profunda implica em interferir em processos culturais afirmados em círculos mais vastos do que o científico. Mas deveria ser muito mais fácil fazê-lo em locais em que a descoberta, o questionamento dos pressupostos e a paixão pela possibilidade de se chegar ao pensamento original e crítico constituem a razão de ser.
A Unicamp deu recentemente alguns novos passos na construção desse percurso que é simultaneamente cultural e científico. O Comitê de Ética Científica ligado à Pró-reitoria de Pesquisa, embora não tenha como função entrar no detalhamento da questão, abordou a problemática em suas discussões. O Observatório de Direitos Humanos, em sua tarefa de apoiar a comunidade na reflexão sobre a tradução dos direitos humanos em seu cotidiano, se prepara para propor uma discussão sobre as práticas que a comunidade considera adequadas aos valores que informam sua missão social e científica. Na linha de frente desse processo e enfrentando uma de suas facetas mais duras, o Grupo de Trabalho encarregado de discutir o combate à discriminação baseada em gênero e/ou sexualidade e à violência sexual, sugeriu ações que o Conselho Universitário deverá apreciar no mês de março. No cerne dessas discussões está a convicção de que ciência e cientista não podem, nem devem, ser dissociados.
*Professora Titular do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, Historiadora Medievalista, Coordenadora do Observatório de Direitos Humanos e mãe da Marina.
Veja também
FCA promove encontro para debater a participação das mulheres na ciência
Projetos de extensão atraem jovens para a carreira científica e tecnológica
Ainda há muito espaço para mulheres e meninas na ciência e tecnologia