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Sérgio Buarque
finca raízes na Unicamp
ÁLVARO KASSAB
Algumas tomadas do filme Raízes do Brasil, exibido na Unicamp na noite de 1º de abril (quinta-feira), eram familiares para a maioria dos espectadores que lotaram duas salas do Centro de Convenções. Um plano geral da Biblioteca Central, por exemplo, chegou a causar certo burburinho. Em outra seqüência, já no interior do prédio da BC, um personagem caminha entre as estantes que abrigam a biblioteca de Sérgio Buarque de Holanda, adquirida pela Universidade em 1983. As aparições do personagem em questão se repetiriam em outras cenas da cinebiografia do historiador e sociólogo paulistano. Na noite da exibição, escorado no quase anonimato e na escuridão das salas de projeção, ele acertou as contas, no bom sentido, com seu passado recentíssimo. Trata-se de Zeca Buarque, neto do historiador. Exatos dez anos após ter sido recepcionado como calouro do curso de História da Unicamp, Zeca voltava à universidade na condição de narrador e de assistente de direção de Raízes do Brasil. Na noite anterior, ainda no Rio, conjecturava do outro lado da linha. "Vai ser muito engraçado". Foi bem mais. Zeca reencontrou amigos e ficou satisfeito com a acolhida do público.
Se minimiza sua importância na carpintaria da obra dirigida por Nelson Pereira dos Santos, Zeca é generoso na avaliação que faz do papel da Unicamp em sua formação. Foi na Universidade, revela, que se aprofundou na obra do avô, cuja trajetória é detalhada no filme. Zeca deduz que o fato de ter feito uma monografia de conclusão de curso sobre a fase modernista de Sérgio Buarque, contribuiu para que integrasse a equipe de trabalho das filmagens. Não por acaso o cineasta narra trechos de artigos e reportagens de Sérgio produzidos nessa fase de sua produção intelectual.
Nelson Pereira dos Santos trata de colocar as coisas no devido lugar. Na avaliação do diretor, a participação de Zeca foi fundamental na confecção do filme. Primeiro, por "conhecer tudo" sobre o avô. Segundo, por ter feito a ponte com os integrantes da família, cujos depoimentos permeados pelo confessional e pelo lirismo enriquecem a cinebiografia. Para o cineasta, Zeca é uma das raízes deixadas pelo pensamento de Sérgio. Um legado que, na opinião do cineasta, é a razão de ser do filme dirigido por ele.
Um pensamento em movimento
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A Unicamp foi a primeira universidade do país a exibir Raízes do Brasil. Pesou na escolha o fato de a Universidade abrigar o Acervo Sérgio Buarque de Holanda. São cerca de 2.490 documentos pessoais, mais de 8 mil livros, 600 dos quais raros, 210 fotografias, móveis e objetos, que integram o Acervo Permanente do Arquivo Central (Siarq). A Unicamp serviu também de cenário para trechos do filme. "Tivemos muito apoio do pessoal do Siarq e da Biblioteca Central", diz Zeca Buarque, para quem a escolha da família em confiar o material à Unicamp foi mais que acertada. "Está tudo muito bem-cuidado". Na entrevista a seguir, o cineasta, que é filho da cantora Cristina Buarque, a responsável pela pesquisa musical de Raízes do Brasil, fala de sua relação com a Universidade e com a obra do avô. E revela seu próximo projeto: filmar a história da Ponte Preta.
JU - Como foi sua convivência com seu avô?
Zeca Buarque Convivi muito pouco, ele morreu em 1982, e eu nasci em 1974. O contato maior ocorreu depois, que foi com sua obra, quando estudei na Unicamp, onde cursei história [IFCH]. Fiz um trabalho que para mim foi muito rico sobre a primeira fase de sua trajetória intelectual. O interessante é que quando fui fazer história nunca pensei em estudar a obra do meu avô, tinha até uma certa resistência. Mas acabou sendo inevitável, e foi esse estudo que me trouxe para o filme.
JU - Você se lembra de algum professor em especial?
Zeca - Tenho boas lembranças do professor José Roberto do Amaral Lapa [falecido em 2000]. Já minha monografia sobre o Sérgio teve a orientação da professora Margareth Rago. Quando fui fazer história, a minha dúvida, já naquela época, era muito grande entre escolher história e cinema. Sempre quis trabalhar com cinema. Quando tive que optar entre os dois, apostei numa formação humanística. Vi que poderia dominar depois a técnica cinematográfica.
JU - Acha que fez a escolha certa?
Zeca - Foi muito legal por vários motivos, entre os quais o fato de a Unicamp ter permitido um curso mais aberto, no qual as idéias circulam. Fala-se muito em interdisciplinaridade, não sei se isso funciona de fato. Mas a Unicamp me deu uma abertura muito grande. Eu fazia história, mas não tinha nenhuma pretensão de ser historiador ou de me manter na academia, embora tenha feito mestrado depois [cinema na USP]. Tive a oportunidade, por exemplo, de estudar cinema no curso de história, a partir de uma outra abordagem.
JU - De que tipo?
Zeca - Não aprendi a fazer filme, mas aprendi a estudar e a desenvolver minha capacidade analítica. Fiz um curso com o professor Marco Aurélio Garcia, por exemplo, sobre Rosselini. Depois, aprofundei esse mesmo assunto no meu mestrado. Consegui fazer um curso aberto e direcionado para aquilo que estava pensando. Essa formação está me ajudando e dando instrumento para trabalhar com o cinema da maneira que eu queria, além de ter me dado o privilégio de trabalhar com o Nelson [Pereira dos Santos]. O estudo sobre o Sérgio foi o elo para que o Nelson me chamasse. Foi minha monografia, meu trabalho final de graduação, sobre o Sérgio modernista. Alguma coisa do que falo no filme foi tirada desse trabalho, que foi inclusive mostrado ao Nelson. Estudei os primeiros textos produzidos por Sérgio até Raízes do Brasil.
JU - Como você vê a obra do seu avô?
Zeca - O que me chama muito a atenção é que, desde jovem, ele apostou na independência e na originalidade. Ele bebe muito de várias fontes Max Weber, por exemplo, é muito citado mas há uma independência muito grande de pensamento. Ele nunca se amarrou a nenhuma escola. No Modernismo, por exemplo, ele passou de entusiasta a crítico dos rumos tomados pelo movimento. Em Raízes do Brasil, você vai perceber uma crítica ferrenha aos intelectuais de sua época, que na verdade pertenciam a uma elite intelectual. Essa postura vai da juventude até a maturidade. Basta dizer que ele fundou o PT no final da vida. Hoje, o significado desse ato mudou muito; o PT é outra coisa, mas o que ele quis dizer com esse gesto mostra que havia uma coerência que permeou toda a sua trajetória. É um gesto que bate na mesma tecla do Raízes do Brasil, que é aquela coisa da necessidade de o poder mudar de mãos no país. Ele sempre bateu na tecla de uma linha original de um pensamento brasileiro. Sempre procurou uma saída para a nossa a crise.
JU - Até que ponto o seu conhecimento da obra foi importante na sua função de assistente de produção da cinebiografia?
Zeca - Não saberia te falar. A elaboração conceitual do filme é do Nelson. Acho que o maior peso está nos textos do Sérgio. O Nelson fez uma leitura muito generosa de Raízes do Brasil, ele não impõe pontos de vista. Não é uma releitura pretensiosa e fechada do livro. Ele traz vários elementos, tem imagens de toda a história do Brasil no século 20. Isso tudo é mesclado com os trechos de Raízes do Brasil. A grande sensação que o filme me causa é constatar a atualidade do livro; ou, infelizmente, a atualidade do Brasil...
JU - Alguma coisa o surpreendeu durante as filmagens?
Zeca - A primeira parte é toda surpreendente, porque tem familiares e dois amigos Antonio Candido e Paulo Vanzolini contando a história do Sérgio. A participação da Maria Amélia [viúva de Sérgio], por exemplo, é outra coisa muito surpreendente. Todo mundo fala que ela rouba a cena do filme. Ela teve uma disposição e um carinho fantásticos com o projeto.Sua disposição em abrir o baú e falar do passado é um negócio muito bonito. Acho emocionante ver um pensamento em movimento.
JU - Quais são seus projetos futuros?
Zeca - Tenho muita vontade de fazer um filme sobre a Ponte Preta. Já tenho o projeto. A partir da final do campeonato paulista de 1977, pretendo contar a história do clube.
Viagem no tempo e no afeto |
Raízes do Brasil tem duas partes de 70 minutos. Na primeira, a viúva Maria Amélia, seus filhos e netos falam de Sérgio. Antonio Candido e Paulo Vanzolini, amigos íntimos do intelectual, também dão seu testemunho. Vêm à tona aspectos pouco conhecidos do historiador. No segundo capítulo, com imagens de cenas históricas na tela, Ana de Holanda e Miúcha lêem a cronologia feita pelo próprio pai sobre os fatos mais importantes de sua vida, enquanto Sílvia Buarque lê trechos de Raízes do Brasil e Zeca, outros textos.
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As ramificações de uma biografia
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Diretor de Rio 40 graus, Vidas Secas e Memórias do Cárcere, entre outros clássicos, Nelson Pereira dos Santos admite que passou a conhecer mais a obra de Sérgio Buarque de Holanda nas filmagens de Raízes do Brasil. Na entrevista abaixo, o cineasta fala sobre o documentário.
JU - O senhor chegou a ter contato com Sérgio?
Nelson Pereira dos Santos - Vi uma vez ou outra, não tive um contato mais próximo. Minha ponte com ele foi a Miúcha [cantora e co-roteirista do filme], de quem sou amigo há bastante tempo. Além do Chico, de quem me aproximei em manifestações políticas e culturais.
JU - O senhor leu a obra de Sérgio em seu tempo de estudante?
Nelson - O Antonio Candido diz que sua geração foi influenciada por três grandes explicadores do Brasil: Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Junior. Esses pensadores fizeram a cabeça da minha geração também. Acho que, depois dos três, não houve pensadores tão germinais. Tive contato com a obra do Sérgio quando prestei vestibular para Sociologia e Política. Passei, mas não cheguei a fazer o curso. Acabei me formando em Direito.
JU - Como surgiu a idéia do filme?
Nelson - A idéia foi concebida pela Ana de Hollanda [filha de Sérgio]. Eu acabara de fazer um documentário sobre o centenário de Gilberto Freyre, que foi comemorado em 2000. Ela me falou: "Por que você não faz um filme para o centenário do meu pai". Eu e Miúcha começamos então a pensar nisso.
JU - O que mais o surpreendeu durante as filmagens?
Nelson - Vou confessar uma coisa. Foi nas filmagens que conheci o pensamento do Sérgio Buarque. Quando o li a primeira vez, ainda estudante, tive aquela informação superficial. Fui recorrer ao Sérgio Buarque, mais tarde, já adulto, fazendo cinema, explorando o seu lado de historiador, especialmente nos trabalhos que abordam o período que vai da Monarquia à República.
JU - O filme revela facetas pouco conhecidas de Sérgio Buarque. Essa escolha foi deliberada?
Nelson - Como conheci Sérgio por intermédio da Miúcha, predominava a figura do pai. Havia muita afetividade, muita admiração. A minha idéia foi fazer esse caminho, contar a história dele pela visão dos familiares. De tal forma que a biografia do Sérgio se ramifica na vida dos filhos, depois na dos netos. O filme passa isso: o neto que vai estudar ciências sociais e que não conheceu o avô, mas sim o intelectual Sérgio Buarque de Holanda e o que ele pensava a respeito do Brasil. O outro neto que está estudando história... Essa narrativa dá uma idéia de continuidade. Acho que consegui passar isso.
JU - Quais foram os critérios adotados no âmbito da reconstituição histórica?
Nelson - Paralelamente à cronologia do filme, trabalhei com uma informação iconográfica da história do Brasil. Para contar com mais síntese essa história, recorri à trajetória dos presidentes da república. Esse capítulo começa com Artur Bernardes e, a partir daí, começo a trabalhar também com a música popular. Por quê? Justamente porque lá na frente o Chico se consagra como compositor, com A Banda e depois com Apesar de Você. Para cada presidente, escolhi um repertório. Passo o recado, há também uma brincadeira ali. E, depois, a história do Brasil naquele período é combinada com os textos do Raízes do Brasil que Sílvia Buarque lê. Então tem uma rima, um pensamento. A verdade é que toda essa montagem é mais percebida por quem conhece a história, por quem tem informação ou por quem viveu esse período. Alguém me disse: "Mas Nelson, precisa ter mais informação". Discordo. Acho que aí deixa de ser um filme que vai provocar a curiosidade. Um dos objetivos desse filme é ter uma função didática, de servir para ensinar um pouco de história. Ele provoca uma curiosidade.
JU - Qual o foi papel da Unicamp?
Nelson - Muita coisa do Arquivo Central foi usadaFotos: Divulgação: o material iconográfico, manuscritos, jornais, os artigos que ele escreveu. E também filmamos na Biblioteca Central. Aliás, filmamos muito mais do que aparece no filme. É uma pena que não dá tempo de montar tudo. Tivemos a melhor acolhida na Unicamp, além do apoio, que foi importantíssimo.
JU - A literatura é recorrente em seu trabalho. No que o ofício de documentarista difere da ficção e de uma narrativa mais linear?
Nelson - O documentário exige muita liberdade nas informações, nos depoimentos, além do fato de você estar sempre enfrentando imprevistos. Isso realmente desafia quem está fazendo um filme. Você filma tudo. Hoje, com uma digital, é muito mais tranqüilo você fazer um documentário, há mais condições técnicas. Já fiz documentário com 35mm, no qual você tem um chassis que dá 10 minutos de tempo para colher um depoimento. Isso faz com que aquele que vai dizer alguma coisa o faça de uma maneira sintética. Com a digital, você tem um tempo enorme na fita. Para fazer a captação de imagem, facilita muito. Complica na hora de fazer a edição, já que há muito material para selecionar. O documentário é isso: o imprevisto. Já na ficção, o imprevisto está dentro daquilo que já está arquitetado como história, como ação; os personagens são vividos por atores. É outro tipo de trabalho, estou até com saudade de fazer um...
JU - E os projetos para o futuro?
Nelson - Tenho a idéia de fazer um filme que vai se chamar Brasília 18%.
JU - Por que 18%?
Nelson - O 18% é a umidade relativa do ar da cidade na época da seca...Também porque é meu 18º filme de longa-metragem e ficção. Trata-se de uma história de amor que tem como pano de fundo uma história política envolvendo corrupção.
JU - A caixinha...
Nelson - Quando falo 18%, o pessoal brinca e diz: "mas é muito pouco". Aí eu digo que não é comissão...(risos). Depois, pretendo fazer um filme sobre a Guerra do Paraguai. Não se trata de uma obra de guerra, com batalhas épicas etc. Como em Memórias do Cárcere, o fundo é a prisão, o acampamento, os militares, os civis, enfim, elementos que servirão para construir a história principal.
A coisa pública e o quintal de casa |
Para o professor Antonio Arnoni Prado, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), que coletou no livro O espírito e a letra (Companhia das Letras) textos inéditos do historiador e sociólogo paulistano, Sérgio Buarque ficaria feliz em assistir ao Raízes do Brasil.
JU - Como o senhor acha que Sérgio Buarque veria sua cinebiografia?
Arnoni Prado - Acho que o Sérgio gostaria mais da primeira parte. Teria a alegria de ver os netos tão bem-formados, tão inteligentes. É uma família que viveu um ciclo histórico e deu uma resposta altamente criativa para esse período. Acho que sua maior alegria seria ver o Chico consagrado, as filhas cantoras, felizes. Ia gostar também das brincadeiras do filme. A segunda parte, como ele era um antiacadêmico, suponho que acharia meio chata.
JU - O que o senhor achou do filme?
Arnoni Prado - Excelente. Mais uma contribuição do Nelson Pereira dos Santos, fazendo um tipo de documentário ao qual o Brasil não está muito acostumado, de pegar seus pensadores e fazer uma projeção da obra e dos sentimentos que eles têm em relação ao país e levá-la ao grande público. Isso com a arte e o talento que o Nelson tem. Esse é um lado, um aspecto interessante. O segundo aspecto é mostrar que nem sempre os assuntos acadêmicos, de erudição, de história e de sociologia, são infensos ao público. O público gosta. E como disse o Antonio Candido no filme, o Sérgio é uma espécie de herdeiro do modernismo. Tem então o lado moleque e o lado artístico. Isso combinou bem, até na própria natureza da mensagem. A segunda parte do filme, por exemplo, são reflexões lidas pela mocidade sobre o Brasil contemporâneo, o que faz um contraponto com o Sérgio e o seu sentimento de alegria, de personagem estranha, que achava que a neta era avó dele, que cantava em alemão, que tinha aquela vida de modernista que chega ao século 21 com uma grande inteligência.
JU - Como Sérgio Buarque veria hoje o homem brasileiro?
Arnoni Prado - É uma pergunta difícil, mas no domínio do conceito do tema, da mistura entre o público e o privado, o Sérgio estaria consagrado hoje. Mais ou menos como aconteceu com o teatro do Nelson Rodrigues, que apontava as aberrações do Brasil. O pessoal achava tudo aquilo uma aberração, e hoje nós sabemos que o Nelson Rodrigues está sendo confirmado pela realidade. Aliás, em todos os planos - não só na realidade social, mas na realidade profunda da subjetividade, na crise da identidade do brasileiro - os complexos, os recalques, as taras. O Sérgio seria confirmado. A cordialidade é uma categoria absolutamente presente no Brasil, mas continuamos ainda dominados por oligarquias que confundem a coisa pública como se fosse o quintal de sua casa.
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