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Financiamento a C&T: mudanças nos acordos de cooperação internacional?


MARIA CONCEIÇÃO DA COSTA

A preocupação dos países avançados em colaborar com os países do terceiro mundo para que atinjam desenvolvimento econômico é antiga e faz parte do discurso e da agenda política de um número considerável de nações. Essa preocupação data de meados da década de 1920, quando se disseminou a cooperação internacional com a criação de agências para o desenvolvimento, como a Rockefeller Foundation, num primeiro momento, e nas décadas seguintes outras como o IDRC canadense, Ford Foundation, Cyted espanhola, SAREC sueca, IRD (ex-ORSTOM) e CIRAD francesas e a ODA inglesa.

Grande parte da literatura recente, especializada em entender o papel das agências de fomento internacionais, tem apontado cooperação internacional como a disposição de instituições internacionais, que adotam um determinado tipo de ação de fomento e ou financiamento a atividades cientificas. Assim, fomento seria uma ação continuada de apoio, incentivo, e estímulo a uma dada atividade, e que quase sempre inclui financiamento.

As razões políticas que nortearam a criação destas agências são conhecidas e muitas têm sido denominadas filantrópicas (ou paternalistas). O estilo filantrópico pressupunha uma concepção linear de ciência, pesquisa básica, pesquisa aplicada e desenvolvimento de produtos, cujos instrumentos iam desde investimento em formação, aperfeiçoamento no exterior até investimento em programas de pós-graduação.

Em distintos campos científicos o papel das agências filantrópicas foi decisivo e marcante. A criação, por exemplo, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, não teria sido possível sem o apoio da Fundação Rockefeller, que orientou os profissionais dessa área à docência e à pesquisa.

Pode-se afirmar que, até a década dos 80, a ação dessas agências se materializou em políticas de “desenvolvimento cultural”, um termo que acomodou uma variedade de aspirações e escolhas e que, durante as décadas de 50 e 60, abrigou divisões raciais, étnicas, religiosas, entre outras. Paradoxalmente, se a presença das agências internacionais possibilitou às nações encontrarem suas identidades culturais, a intervenção dessas agências e a conformação das agendas nos países onde atuam acabou por conformar uma imagem distorcida dos mesmos, isto é, a intervenção em muitas áreas construiu uma idéia, ou aspiração à uma idéia de nação, que não era de maneira alguma endógena.

A noção de desenvolvimento vem sendo mantida na agenda política das agências internacionais desde o pós-guerra: num primeiro momento atrelado à reconstrução dos países atingidos pela guerra. Num segundo momento, este termo esteve carregado de idéias e ações intervencionistas, como resultado dos movimentos emancipatórios das ex-colônias, e resultado também da guerra fria, especialmente nos Estados Unidos. E finalmente, numa perspectiva mais recente, o termo desenvolvimento tem sendo visto como um processo que envolveria diferentes atores sociais na busca de emancipação de suas situações marginais.

Na década de 90, as críticas pós-estruturalistas foram bem sucedidas em colocar sérias dúvidas não apenas sobre a viabilidade, mas também no desejo da disseminação da idéia de desenvolvimento. Isto é, o desenvolvimento passou a ser visto como um discurso cultural invasivo com profundas conseqüências, especialmente para a realidade social do assim chamado Terceiro Mundo.

Recentemente, nas últimas duas décadas, a cooperação assentada em bases institucionais vem incorporando novos atores. A ação destas agências, se muitas vezes interventora e centralizadora, começou a ser repensada de tal maneira que todas elas passaram a mudar sua maneira de trabalhar, de analisar propostas, de envolver os pesquisadores e técnicos dos países receptores. Este “novo” tipo de colaboração tem sido estendido aos países menos desenvolvidos e envolve, muitas vezes, instituições como as organizações não-governamentais. As razões para esta mudança não advêm apenas das críticas, mas do fato de a divisão de trabalho e de poder no mundo também terem mudado. Novas questões passaram a estar na agenda das agências financiadoras como, por exemplo, abordagens que privilegiam a questão de gênero, o impacto da reestruturação produtiva nas economias dependentes, a questão do meio ambiente e recursos naturais, efeitos sócio-econômicos de novas tecnologias, enfim, o impacto de uma abordagem “antiga” com uma nova roupagem, ou seja, globalização, entre outros temas que foram surgindo e sendo incorporados.

Com as mudanças e entrada de novos atores na cena decisória e especialmente a emergência de uma nova concepção de gerar conhecimento, algumas agências tradicionalmente conhecidas por seu papel filantrópico passaram a ter um papel, em tese, menos intervencionista e mais participativo. A geração do conhecimento, a ciência, passou a ser vista também como uma construção social, que conta com outros atores para além da comunidade científica e da compra de equipamentos e ou o investimento na formação de recursos humanos.

Ao mesmo tempo em que emergiram novos rearranjos e barganhas entre financiadores e financiados, houve um reconhecimento de que a capacidade de pesquisa ainda é limitada; e não há, muitas vezes, recursos humanos qualificados e tampouco estrutura para avaliar os resultados de pesquisa e menos ainda para implementar essas políticas. Entender as novas relações que se abrem entre as agências de cooperação internacional significa contribuir com resultados importantes para informar a política relativa ao tema.

Ademais, é importante recolocar que a cooperação internacional e o papel dos governos no apoio às atividades científicas e tecnológicas não são um fenômeno vazio e ausente de influência dos contextos sócio-culturais locais. A história dos países, relações econômicas, considerações geopolíticas, preocupações políticas, direitos humanos, além da simples curiosidade intelectual dos cientistas estão entre os numerosos fatores que têm influenciado os distintos governos a buscar e dar apoio à cooperação internacional. Estas escolhas afetam as escolhas individuais dos pesquisadores ao escolherem tópicos específicos e parceiros na pesquisa conjunta.

Embora possamos afirmar que as agências de cooperação internacional vêm mudando seus estilos de atuação vis-à-vis suas relações com os países do Sul, ainda restam dúvidas sobre uma possível “democratização” das regras e contratos que envolvem as relações de cooperação entre países industrialmente avançados e os em desenvolvimento ou menos desenvolvidos. Ainda que algumas evidências nos façam refletir sobre as mudanças nas regras estabelecidas entre pares historicamente assimétricos, ainda é cedo para que possamos afirmar que estamos no limiar de um novo tipo de relacionamento Norte e Sul.

Podemos dizer, dado o exposto, que os acordos de cooperação tecnológica têm se pautado por estilos de ação diferenciados conforme seus interesses e a correlação de forças internas nos países onde atuam. É desta forma que hoje se evidencia um estilo de ação mais voltado para o incentivo de blocos regionais, para programas de desenvolvimento sustentável e para programas de ação mais diretos como, por exemplo, incentivo a programas liderados por comunidades locais e implementação de programas de políticas públicas, entre outros.

Entretanto, uma questão que permanece em aberto é se a cooperação internacional constrói, ainda hoje, capacidade científica e tecnológica endógena nos países em desenvolvimento. Isto é, mesmo em face da emergência de novos padrões de comportamento entre as agências doadoras localizadas nos países do Norte e os países receptores (Sul), esta questão permanece, ainda que, segundo cientistas de diferentes países, a cooperação internacional seja vista como uma ferramenta importante para o desenvolvimento da capacidade cientifica, resultando em benefícios para ambos os partícipes dos projetos. Assim é que pesquisas sobre biodiversidade, descobertas de novos princípios ativos em plantas, por exemplo, só pode ser realizada em países como, por ex., o Brasil.

Em resumo, cooperação científica entre Norte e Sul e padrões de financiamento são questões em aberto que demandam instituições fortes nos países do Sul capazes não só de formular agendas e demandas, mas certamente capazes de perceber os resultados das pesquisas como o produto da interação de distintos atores (governo, organizações não-governamentais, pesquisadores, etc) para que esses resultados venham a ser efetivamente incorporado nesses países.



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Maria Conceição da Costa é socióloga e professora do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp.

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