Desde os inícios do século XX desenvolve-se o debate sobre a vocação agrária e/ou a vocação industrial do Brasil. A sucessão e a coexistência de "ciclos econômicos" na história do país, bem como a sucessão de crises da "economia primária exportadora", ou de "enclaves", logo colocaram a possibilidade, a necessidade e a urgência da industrialização.
Esta é a nova tese sobre a história e o desenvolvimento do Brasil: "industrialização substitutiva de importações". Essa tese nasce, expande-se e enraiza-se em forma intensa e generalizada nos anos 1930-64, para estabelecer uma cronologia aproximada. Mas já vinha sendo gestada anteriormente. E adquire efetividade nos anos que se seguem à Revolução de 1930. Assim surge o projeto de "capitalismo nacional", buscando interiorizar os centros decisórios sobre problemas de economia política e redefinindo amplamente os laços com a economia dos países mais fortes ou imperialistas, dentre os quais destacam-se a Inglaterra e os Estados Unidos. Em várias ocasiões, essa política de "nacionalismo e industrialização" teve o apoio de setores sociais e organizações políticas de esquerda. A despeito das vacilações, recuos e bloqueios ocorridos no curso dos anos e décadas, a "industrialização substitutiva de importações", isto é, o projeto de "capitalismo nacional" concretizou-se em larga medida. Tanto se acomodou às injunções da "economia agrária exportadora", como conseguiu obter vantagens econômico-financeiras e políticas da sua atividade. Houve tensões e conflitos, mas também acomodações com os setores sociais enraizados na "vocação agrária". E surgiu um novo bloco de poder, de composição industrial-agrária, sob a direção da burguesia industrial em expansão.
São vários e notáveis os autores situados nessa orientação: Roberto C. Simonsen, Romulo de Almeida, Jesus Soares Pereira, Celso Furtado, Francisco de Oliveira, Paul Singer e outros. Tiveram antecessores em Serzedelo Correia, Pandiá Calógeras e Cincinato Braga, entre outros.
Esta é a realidade: o projeto de capitalismo nacional teve sua época, gênese, ascenso, prosperidade, êxito, problemas, contradições, declínio e esgotamento. Foi errático, mas com êxitos inegáveis, no que se refere à criação e ao desenvolvimento de uma ampla, complexa e dinâmica economia nacional, crescentemente apoiada na industrialização, acompanhada de intensa urbanização e outros processos sociais de alcance nacional. De par em par com as transformações econômicas, alteraram-se as condições e as perspectivas da sociedade e da política. Começou a formar-se a categoria povo, no sentido de coletividade de cidadãos. Desenvolveram-se as classes e os grupos sociais. Sob certos aspectos, o florescimento dos anos 1930-64 foi, em larga medida, fertilizado pelos debates realizados no âmbito do projeto de capitalismo nacional. Sem esquecer que esse projeto beneficiou-se bastante das mobilizações, debates e criações de setores sociopolíticos e culturais de esquerda, mobilizados em torno do nacionalismo, antiimperialismo e transformação da sociedade. Houve uma vasta incursão em torno do que se poderia denominar "popular", "operário", "camponês", "indígena", "afro-brasileiro", e outras expressões socioculturais do povo. Houve uma fundamental viagem de políticos, cientistas sociais, escritores, teatrólogos, cineastas e outros, de diferentes gerações, em distintas regiões do país, na direção do povo, coletividades, setores sociais subalternos, em seus modos de vida e expressões culturais. Simultaneamente, desenvolveu-se bastante a politização das classes e dos grupos sociais subalter.
A Formação do
Capitalismo Transnacional
Simultaneamente à interpretação simbolizada na "industrialização substitutiva de importações", ou no projeto de "capitalismo nacional", desenvolve-se a tese de que a economia brasileira deveria beneficiar-se ao máximo da "inserção" na economia mundial. Trata-se de pôr em prática o projeto de "capitalismo associado", baseado no reconhecimento de que essa seria a única e realmente eficaz, produtiva e lucrativa via de desenvolvimento econômico. Combatem-se todas e quaisquer fórmulas nacionalistas; preconiza-se o internacionalismo, o multinacionalismo e, nas décadas finais do século XX, o globalismo. Os seus autores, atores e executores evoluem de argumentos liberais aos argumentos neoliberais, com os quais se desenvolve o novo ciclo de globalização do capitalismo em curso na transição do século XX ao XXI. Todos estão mais ou menos alinhados com as diretrizes teóricas e práticas formuladas e induzidas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BIRD), secundados pela Organização Mundial do Comércio (OMC).
Dentre os economistas situados nessa linha de pensamento e prática, situam-se Eugênio Gudin, Octávio Gouveia de Bulhões, Roberto de O. Campos, Mário H. Simonsen, Delfim Neto e alguns outros; claro que sem esquecer outros cientistas sociais, além de setores empresariais. Mas esse é um pensamento, e prática, presente e ativo nas associações de empresários, nas corporações transnacionais, em amplos setores da mídia, em geral pressionadas pelas organizações de marketing. São muitos os profissionais, economistas, administradores, sociólogos, cientistas políticos e outros formados nessa direção. Muitos, intelectuais e empresários, foram mobilizados pelo neoliberalismo no clima da diplomacia da Guerra Fria, baseada no maniqueísmo "capitalismo" e "comunismo".
O que está em causa é a primazia do "mercado", em detrimento do "planejamento". Os autores e atores empenhados na crítica e no desmonte do projeto de "capitalismo nacional" preconizam a associação ampla com o capitalismo norte-americano, europeu, japonês e outros, isto é, a franca, rápida e ampla "inserção" da economia brasileira na economia mundial. Assumem que a colaboração, associação ou fusão de empresas, corporações e conglomerados, compreendendo nacionais e estrangeiros, é o melhor caminho para o desenvolvimento, o progresso, a modernidade, o "primeiro mundo".
Essa linha de pensamento preconiza o "Estado Mínimo", compreendendo a reforma do Estado, a desestatização da economia, a privatização das empresas estatais, a privatização da educação, saúde, previdência; a redefinição das relações de trabalho, o abandono de compromissos do Estado do Bem-Estar Social. O neoliberalismo adotado timidamente pelos governos militares nos anos 1964-85, e ostensiva e intensivamente, pelos governos desde 1985, tem provocado toda uma ampla e profunda alteração das relações entre o Estado e a Sociedade Civil, provocando evidentes dissociações. Antes, quando predominava o projeto de "capitalismo nacional", havia-se desenvolvido um certo metabolismo entre a Sociedade e o Estado. Depois, aos poucos, à medida que predomina o projeto de "capitalismo transnacional", desenvolve-se uma crescente dissociação entre o Estado e a Sociedade, rompendo-se o metabolismo que se havia criado nas décadas anteriores. Modificam-se os significados de "público" e "privado", "nacional" e "mundial", "indivíduo" e "sociedade", "povo" e "cidadão", "democracia" e "tirania".
Na transição do século XX ao XXI, as diretrizes adotadas pelos governantes, em conjugação com as corporações transnacionais e as organizações multilaterais, como o FMI, o BIRD e a OMC, têm sido alheias ou mesmo adversas às tendências predominantes na sociedade civil. A maioria dos setores sociais, compondo a maior parte do povo, tem sido alijada de conquistas sociais que havia alcançado em longas décadas de lutas sociais. Grande parte da sociedade está sendo desafiada a reorganizar-se e movimentar-se de modo a sobreviver em um contexto no qual o Estado se transforma em aparelho administrativo de classe e grupos sociais, ou blocos de poder, dominantes em escala mundial.
Sob certos aspectos, o projeto de economia transnacionalizada, de inserção crescente na economia mundial, de alianças com metrópoles imperialistas ou blocos geoeconômicos e geopolíticos, tem uma longa história. Uma história que se revela na sucessão dos acontecimentos e em muitas análises da história, evolução, progresso, desenvolvimento ou modernização do Brasil. A "vocação" européia e norte-americana de parte importante das "elites" brasileiras sempre esteve e continua a estar presente nas controvérsias e práticas, teorias e ideologias, com as quais se move o Brasil desde a Independência. Não é demais relembrar que o Estado-Nação nasce à sombra do poder monárquico de raízes portuguesas, com as bênçãos do poder monárquico britânico, garantindo-se assim a legitimidade metafórica do Estado-Nação e dos governantes. Sem esquecer que a presença ativa do imperialismo inglês participa decisivamente dos laços econômico-financeiros e institucionais indispensáveis à formação e consolidação do Estado nacional. Alguns setores das "elites" nacionais que se haviam beneficiado do colonialismo português, beneficiam-se durante todo o século XIX do imperialismo inglês, e no século XX combinam este com o norte-americano, que aos poucos substitui aquele.
Esta pode ser uma surpreendente "lição" dessa história: boa parte das "elites" empresariais, intelectuais, militares e eclesiásticas tem escasso ou nulo compromisso com a nação, a sociedade nacional, o povo; devido aos seus vínculos, sempre renovados, com as "elites" transnacionais, desde o colonialismo ao globalismo. Por isso resta sempre a impressão de que são estranhos, ou alheios; na realidade colonizadores, conquistadores ou desfrutadores.
Visto assim, em perspectiva histórica de larga duração, o projeto de "capitalismo transnacional" ou "globalizado" tem antecedentes no colonialismo e no imperialismo, entrando em novo ciclo com o globalismo.
-----------------
Trecho extraído do capítulo inédito 7 Teses sobre o Brasil Moderno, que será incluído na reedição do livro A Idéia de Brasil Moderno (Brasiliense, 1992).