Professora do IEL detalha método de projeto que já atendeu 4 milhões de analfabetos brasileiros e se estendeu a outros países
Dona Maria , que saiu das
ruas de Inhapi para o mundo
LUIZ SUGIMOTO
Em Inhapi, cantinho a oeste de Alagoas, onde termina Sergipe e se vê a Bahia na outra margem do São Francisco, dona Maria, 60 anos, carregava seu livro pelas ruas e sorria para os apupos: "Ei, dona Maria, tá morrendo e vai estudar pra quê?". "Vou pra escola. E depois vou pra quinta série com a meninada", respondia. Sair na rua de livro na mão era assumir publicamente a condição de analfabeto, por isso, muitos alunos contornavam a cidade para entrar pelos fundos da escola. Maria Eleutéria da Silva entrava pela porta da frente. Ela foi a primeira pessoa a concluir a 8ª série, em dezembro passado, depois de aprender a escrever o nome com a ajuda de professores da Unicamp, que coordenam em Inhapi e Olho D’Água do Casado um projeto de letramento da Alfabetização Solidária (Alfasol).
A Alfasol é uma sociedade civil que atua nacionalmente para diminuir o índice de analfabetismo no país o Censo 2000 do IBGE apontou 17,6 milhões de brasileiros analfabetos ou analfabetos funcionais (12,8% da população). Criando um modelo de atuação simples, inovador e de baixo custo, a Alfasol já atendeu 4 milhões de jovens e adultos entre janeiro de 1997 e dezembro de 2003, em 2.010 municípios, em parcerias com universidades, governos municipais e estaduais, empresas privadas, pessoas físicas e outras organizações. A eficiência do modelo fez com que a Alfasol voasse para outros países de língua portuguesa: Timor Leste, Cabo Verde, Moçambique e São Tomé e Príncipe. A Guatemala é a primeira exceção hispânica.
A Unicamp participa dos três projetos da Alfasol. A professora Sylvia Bueno Terzi, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), é responsável pelo Projeto Nacional nas duas cidades alagoanas. Nesta página, ela fala também de suas experiências no Projeto Internacional em Cabo Verde, arquipélago atlântico a 500 km da costa do Senegal, para onde tem viajado desde 2002. O Projeto Grandes Centros Urbanos, voltado para a população pobre no raio de 100 km de capitais como Recife, Rio de Janeiro e São Paulo, tem suas atividades em Campinas coordenadas pela professora doutoranda Maria Angélica Lauretti Carneiro. O limite foi extrapolado até Sumaré e Hortolândia e a equipe lamenta ter de recusar pedidos de outras cidades, que são muitos.
Letramento "Para nós, da Unicamp, o objetivo não é simplesmente alfabetizar, mas promover o letramento crítico. A leitura e a produção de textos são atividades humanas muito complexas, que ocorrem na interação social. Existe nas sociedades letradas a prática de se manter atualizado sobre o que acontece no mundo. Queremos que o alfabetizando se aproprie desta prática social", explica Sylvia Terzi. Assim, leva-se um jornal para a sala de aula e a notícia é colocada em discussão. Apesar de ainda não dominar a escrita, o aluno "escreve" o que pensa recorrendo ao professor como seu leitor e escriba. "É importante que ele se sinta capaz de registrar os fatos, que perceba o uso social da escrita", acrescenta.
Seguindo o caminho inverso da escola tradicional, onde se começa ensinando sílabas para as quais o aluno não vê função, o letramento parte da função da escrita diante de necessidades imediatas. "Mais do que escrever o nome, o alfabetizando deve compreender para quê serve a certidão de nascimento, a carteira de identidade, a ficha de cadastro, porque se registra um cidadão. Da mesma forma, deve perceber a crítica por trás de uma crônica, despertar para a importância da leitura", afirma a professora do IEL. "O bilhetinho que a criança troca em sala de aula, e que a professora toma e rasga, na verdade é a primeira manifestação de apropriação da escrita", observa.
A coordenação da Alfasol acompanha os alunos por um semestre, período insuficiente para que sejam totalmente alfabetizados. Seguir nos estudos através de cursos intensivos regulares é uma opção. Mas o aprendizado, de acordo com Sylvia Terzi, vai acontecer de maneira bem mais rápida. "Se tomarmos como exemplo os recentes atentados em Madri, os alunos já terão discutido o que é terrorismo, porque ele existe em alguns países e em outros não. Quando escreverem a palavra ‘bomba’, ela não será uma mera junção de sílabas, virá carregada de significados e emoções", ilustra.
Aspirações Mas um semestre é o bastante para abrir o apetite por conhecimento. Os professores puderam comprovar como as aspirações mudam, em pesquisa com 84 alfabetizandos de Inhapi e Olho D’Água do Casado. No início das aulas, os alunos almejavam apenas poder escrever uma carta, melhor pleitear um emprego, colocar a assinatura no recibo da aposentadoria rural diante de todos na fila do banco. Depois de cinco meses, já se notava a satisfação por entender o noticiário de tevê, saber o que acontece no mundo e discutir os fatos na comunidade. Uma senhora já se via conversando com os filhos, quando antes se sentia excluída por não saber do que falavam. Sylvia Terzi recorda, também, uma expressão muito utilizada naquela região ainda marcada pelo coronelismo: "Agora não preciso mais andar pela cabeça dos outros". Trata-se de letramento crítico. "Isto é transformação social. O que pretendemos, no final, é a formação do cidadão letrado", afirma a professora do IEL.
As aspirações dos professores da região também mudaram. Dentre aproximadamente 200 alfabetizadores capacitados, mais de 50 foram atrás do diploma de ensino superior. Contribuiu para isso a lei que torna obrigatório o diploma para todos os professores até 2008. Obrigatoriedade à parte, antes, eles viam a faculdade como regalia de rico, não de gente que vive ‘nesse fim de mundo’. Eles não mais admitem regalias. Recentemente, num concurso público para contratação de professores, o prefeito de Olho D’Água do Casado deu posse somente a seus aficcionados, o que seria considerado normal. No entanto, desta vez houve greve e o prefeito se viu obrigado a respeitar a lista de classificação.
Consciência Além da greve, Sylvia Terzi testemunhou outra transformação: "Os professores vêm de famílias com treze, quinze irmãos. Quando perguntava quantos filhos queriam ter, respondiam: ‘não quero tantos, só oito’. Ainda acatavam o ditado ‘filho é Deus que manda, os que morrem é Nossa Senhora que leva’. A faculdade fez a diferença. Já sabem que não basta dar roupa e comida, é preciso dar educação, querem apenas dois ou três filhos. Não é possível pular etapas no processo de amadurecimento. Não vamos lá para mudar, eles é que devem se conscientizar da necessidade de mudanças", pondera.
O tom não é de protesto, mas Sylvia Terzi lamenta a pouca infra-estrutura para muito trabalho. É a mesma estrutura dos tempos em que a professora coordenava 20 turmas, quando hoje são 68. Na sala reservada à Alfasol no IEL, em meio a arquivos e caixas, encontram-se publicações doadas e que serão enviadas para Alagoas. Aceitam-se livros didáticos, de ficção, poemas, revistas, apostilas e cadernos de exercícios de cursinhos, tudo o que possa interessar a alunos e professores de lá. Porque mais que o letramento em sala de aula, faz-se um trabalho na comunidade, em que carro de som transmite notícias e muro vira mural. "Em Inhapi não se encontrava nem jornal para o trabalho em aula. Pedi, então, que conseguissem jornal velho. ‘Professora, se não tem jornal novo, como pode ter jornal velho?’, perguntaram".