Pesquisadores do Instituto de Geociências avaliam
impactos da invasão das plantações no cerrado brasileiro
Soja: perigo nos novos fronts
LUIZ SUGIMOTO
No Brasil endividado, a soja mais parece grão de ouro. Os esforços governamentais e privados canalizados para este item elencado como prioritário nas exportações, nos últimos 20 anos, colocaram o país como o segundo produtor mundial, atrás apenas dos Estados Unidos. Na safra 1999-2000, segundo o IBGE, colhemos 32,8 milhões de toneladas, 64,9% a mais que em 1990. As plantações se alastraram do Sul para o Centro-Oeste, e agora tomam conta dos cerrados, abrindo novos fronts no leste de Mato Grosso, noroeste de Goiás, sul do Maranhão, sul do Piauí, oeste da Bahia e porções do estado do Tocantins. Pesquisadores avaliam esta febre, precavidos contra o delírio que acometia os desbravadores cegados pelo brilho dourado de areia.
O professor Ricardo Castillo, chefe do Departamento de Geografia do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp, coordena um grupo de alunos envolvidos em pesquisas sobre transportes (rodovias, ferrovias e hidrovias) e redes de comunicação neste setor agrícola. "O que diferencia nossa abordagem sobre a chegada da soja nos novos fronts, em comparação à de economistas ou engenheiros, é a preocupação em obter parâmetros para um planejamento territorial e avaliar as implicações da cultura nesses lugares e populações", explica.
Risco de quebra não pode ser desprezado
Uma das conclusões do professor remete à crise do café, quando se construiu uma gigantesca infra-estrutura para o escoamento da produção de São Paulo. Guardadas as diferenças, a quebra da soja também é um risco real. "A produção de soja é movida pelo imperativo da exportação, com parâmetros de produtividade ditados pelo mercado internacional. Vemos as novas regiões de soja dominadas por grandes empresas (na maior parte estrangeiras), que influenciam demais na distribuição das infra-estruturas, nos investimentos dos governos federal, estadual e municipal. Os municípios, em guerra para atrair investimentos, esquecem a política social e comprometem o orçamento para oferecer isenções fiscais e obras de engenharia às empresas. Acham que a soja será a salvação da lavoura", observa Castillo.
O avanço - O pesquisador do IG lembra que, nos anos 1960 e 70, a soja era produzida majoritariamente no Rio Grande do Sul e Paraná, ainda hoje grandes produtores, mas que já perderam em volume para o Mato Grosso. "No Sul existe o apoio de cooperativas e uma estrutura fundiária menos concentrada, sem a presença dominante das grandes empresas no circuito. Desde os anos 1980, a soja se estendeu para o cerrado, abrangendo ‘o polígono dos solos ácidos’: Triângulo Mineiro, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiás, Tocantins, sul do Maranhão, sul do Piauí e oeste da Bahia. São os novos fronts agrícolas", descreve.
Embora o solo ácido apresente fertilidade mais baixa, o relevo do cerrado é plano, bastante favorável à maquinização. O mestrando Samuel Frederico, que está concluindo dissertação sobre o tema, explica que o desenvolvimento de sementes adaptadas ao clima, corretivos e fertilizantes fez do solo um fator secundário para a produtividade. "Os produtores querem áreas planas, pois a fertilidade se corrige. Além disso, as terras no sudeste e norte do Mato Grosso já estão alcançando o pico de valorização, custando R$ 8 mil o hectare. Todos querem vender esta terra supervalorizada para comprar uma área quatro vezes maior no novo front", acrescenta Frederico.
Um detalhe importante é que, no ‘polígono’, quem menos ganha com a soja é o produtor. "O lucro maior fica com as empresas que dominam o circuito. Grupos como a Cargill, ADM, Maggi, Bunge-Ceval e Caramuru começam a lucrar mesmo antes do plantio, vendendo máquinas, insumos e antecipando créditos ao agricultor. Depois, compram a soja, transportam, armazenam, processam, comercializam e exportam tanto os grãos como seus derivados, sobretudo o farelo de soja e os cremes e óleos vegetais", aponta Castillo. Com exceção do grupo Maggi, deve-se notar que as empresas não possuem terras nem plantam a soja.
Retórica cruel - Mesmo a anunciada "criação de empregos no campo", alardeada pela mídia, não passa de uma retórica cruel na leitura feita pelo professor do IG. Ele afirma que a produção agrícola moderna é muito exigente em serviços especializados e pede pouca mão-de-obra barata. "Há empregos para engenheiros, técnicos em informática, pilotos de avião, gente que saiba lidar com máquinas que custam trezentos mil dólares. Ao contrário da modernização ocorrida nas regiões tradicionais, em que comunidades foram se aglomerando e as necessidades urbanas aumentaram gradativamente, no novo front o campo é que já nasce moderno", afirma.
Samuel Frederico conta que em tais cidades, erguidas da noite para o dia, instalam-se a agência de aviões para pulverização, a revendedora de tratores, a casa de implementos agrícolas e serviços especializados. "Sapezal, no meio-norte de Mato Grosso, é uma cidade de apenas dez mil habitantes, mas com quatro aeroportos oficiais", exemplifica. "Se na fabricação de ração animal, por exemplo, as proteínas da soja forem substituídas por outras, não sei o que será dessas cidades", acrescenta Castillo
Perversidade social
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A febre da soja exerce enorme pressão sobre a rede de transportes, numa região desprovida de sistemas de movimento e mais distante dos portos. De acordo com o professor Ricardo Castillo, do IG, sendo um item prioritário de exportação, a soja acaba dirigindo o planejamento territorial, tanto que tem merecido destaque nos últimos Planos Plurianuais (PPAs). "Qual matriz de transporte de soja deve ser predominante? Rodovia, hidrovia ou ferrovia? É esta a questão coloca hoje", afirma.
Para o mestrando Samuel Frederico, os novos fronts pedem modais alternativos ao rodoviário, visto que ferrovias e hidrovias oferecem custos de frete e consumo energético menores. "Como se trata de uma comodity, com baixo valor agregado, a redução de custos é um requisito essencial. Os Estados Unidos exibem os menores custos, não por acaso, pois quase toda a soja escoa pelo Mississipi", explica. "Há notícias de que a China, um dos nossos maiores compradores ao lado da Europa, pretende investir em infra-estrutura no Brasil para diminuir os custos da soja", ressalta Castillo.
Diante disso, são avaliados três eixos principais. A hidrovia do Madeira ligaria a produção aos portos fluviais de Itacoatiara (AM) e Santarém (PA), usando as rodovias BR-364 e BR-163, sendo que a pavimentação desta última - 900 quilômetros entre a divisa do Mato Grosso e Santarém - é a grande polêmica do momento. O eixo hidrovia do Araguaia-Tocantins, ferrovias Carajás e Norte-Sul e porto de Itaqui (MA). E as ferrovias Ferronorte e Ferroban, que permitem o escoamento dos grãos ligando o Mato Grosso à malha de São Paulo e ao porto de Santos.
Assim como o grupo Maggi modernizou o porto de Itacoatiara, a Cargill construiu terminais graneleiros e domina o porto de Santarém, tendo todo o interesse na pavimentação da BR-163. No Mato Grosso, um consórcio fechou a pavimentação de 1.400 quilômetros de estradas estaduais e vicinais, em que o governo Blairo Maggi financia 50% das melhorias e, as empresas, a outra metade.
Resistência - As empresas, porém, enfrentam alguma resistência. Organizações ambientalistas obtiveram o embargo das hidrovias Araguaia-Tocantins e Teles Pires-Tapajós. "A forte oposição se deve ao temor de que as hidrovias comprometam o regime dos rios e ao fato de cortarem reservas indígenas", informa Castillo. Em solo firme, juntando-se as áreas tomadas por outras grandes culturas como algodão e milho, estima-se que restem apenas 25% da vegetação natural dos cerrados, considerada uma das mais variadas do mundo.
"Antes havia uma agricultura familiar nos fundos úmidos de várzea, até que a soja chegou ocupando as chapadas e depois os terrenos arenosos em declive. Isto tem provocado impactos não apenas sociais, econômicos e geográficos muito fortes, mas também ambientais. Há um processo desenfreado de ravinamento e assoreamento nas cabeceiras do rio Araguaia e em outras regiões, o que já chamou a atenção do Ministério Público", informa Ricardo Castillo, referindo-se a outras pesquisas desenvolvidas no IG.
Descompasso - Crítico do modelo adotado, o professor afirma que o Centro-Oeste é um exemplo típico de região funcional, em que tudo é estruturado e organizado em função de um único produto, ficando vulnerável às oscilações de preço no mercado internacional, e sem que aquelas populações sejam atendidas. "A maior parte da renda produzida não fica nesses lugares. É esta a grande perversidade social: o descompasso entre a produção local e regional e os interesses locais e regionais", acusa.
Ricardo Castillo alerta para a necessidade de projetos agrícolas que adotem novos parâmetros de planejamento de infra-estruturas, sistemas de armazenamento, valorização do produtor, estrutura fundiária e complementaridade entre as regiões. "O planejamento deve ter como princípio a consolidação do mercado interno, respeitando os interesses locais. É óbvio que as contas externas precisam entrar nesta equação, mas tudo pode ser resolvido de forma diferente", pondera. Em relação à soja, porém, ele é cético: "As plantações avançarão ainda mais. Se a hidrovia Araguaia-Tocantins for aprovada, como se prevê, milhões de novos hectares estarão abertos para a soja, o que só não aconteceu por falta de meios de circulação".
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