Durante muito tempo, as representações sexuais de diversos povos foram consideradas obscenas, imorais ou pervertidas. Um estudo recém-concluído para a dissertação de mestrado da historiadora Marina Regis Cavicchioli, apresentado ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, traz uma nova visão sobre o tema. Ao analisar minuciosamente a coleção erótica da cidade de Pompéia, a pesquisadora concluiu que a iconografia da época revela a sexualidade como um elemento cultural. No trabalho, Marina faz oposição à interpretação de estudiosos da cidade italiana, conhecidos como pompeianistas, e tenta mostrar que o discurso conservador desses especialistas está relacionado a uma postura ideológica.
Para desenvolver a pesquisa, Marina analisou quadros, esculturas, utensílios domésticos, amuletos, jóias etc provenientes do sítio arqueológico de Pompéia, cidade romana que foi soterrada pelas lavas e cinzas expelidas pela erupção do vulcão Vesúvio em 79 d.C. Ela também estudou peças originárias da cidade italiana que pertencem atualmente às coleções dos museus de Nápoles e Nacional do Rio de Janeiro. O acervo erótico desta última instituição, conforme a historiadora, jamais havia sido tomado para estudo do gênero anteriormente. Ao todo, a autora pesquisou cerca de 200 objetos, sendo que 109 deles tiveram a imagem reproduzida na dissertação. Mais do que isso, Marina promoveu a catalogação do material, acrescentando informações, análises e comentários sobre cada peça analisada. Graças a esse cuidado, o trabalho tornou-se uma importante fonte de dados para futuras pesquisas relacionadas ao tema.
De acordo com a historiadora, ao percorrer o sítio arqueológico de Pompéia, cujas escavações tiveram início em 1748, foi possível verificar que os objetos contendo representações sexuais estão presentes numa série de ambientes, e não apenas em prostíbulos, como foi registrado pelos historiadores conservadores. "Localizei imagens de falos e de atos sexuais em templos religiosos, residências e edifícios públicos. Ou seja, para o mundo romano de então, a sexualidade também tinha um significado religioso. Além disso, a sexualidade era entendida como um símbolo da abundância e da fertilidade", explica.
Ao analisar as relações de gênero, Marina pôde constatar uma forte supremacia masculina, dado que a idéia de fertilidade era baseada prevalentemente na figura do falo. Não foram encontradas representações explícitas do órgão sexual feminino sozinho, como aparecem em outras culturas. Para a sociedade de Pompéia, a mulher seria apenas o receptáculo da semente masculina. Entretanto, isso parece não ter colocado a mulher num papel de enorme submissão durante o ato sexual, pois ao contrário do que apontam alguns especialistas, a iconografia investigada pela historiadora contém muitas imagens nas quais as mulheres aparecem em posição superior à do homem durante a cópula. Mas se a sexualidade era encarada com tanta naturalidade naquela época, por que passou ser taxada de obscena e pervertida com o passar do tempo?
Segundo Marina, isso se deve ao "olhar preconceituoso" surgido na época das primeiras escavações, reforçado mais tarde por princípios ideológicos. Inicialmente, o objetivo dos trabalhos arqueológicos era apenas recolher materiais de valor estético para a coleção do rei. Com o tempo, ocorre uma mudança nessa intenção e passa-se a buscar elementos que revelem o significado de Pompéia para os povos antigos. "Fica claro, neste instante, o uso da história para a construção de uma identidade no presente. Esta prática foi adotada pelo fascismo, por exemplo, que acabou excluindo a questão da sexualidade por considerá-la imoral", afirma a historiadora. A supressão das representações sexuais também encontra eco na forma como o material erótico foi tratado pelo Museu de Nápoles.
Inicialmente, a coleção permaneceu trancada numa sala. Depois, no período da unificação italiana, por volta de 1860, as peças foram abertas à visitação pública, mas com ressalvas. "Todos" podiam ver os objetos, exceto membros do clero, mulheres e crianças. "Logo em seguida, esse acervo foi fechado ao público e ficou ainda mais inacessível justamente durante o fascismo, que pregava uma dura conduta de moralidade. Isso revela claramente como o passado tem a ver com questões ideológicas do presente. Ou seja, o fascismo se dizia herdeiro dos romanos, mas apenas em alguns pontos", analisa a autora da dissertação. Apenas muito recentemente, em 2000, a coleção erótica foi finalmente reaberta ao público, por iniciativa do próprio museu, a despeito da posição contrária do Vaticano.
Ainda assim, a visita só pode ser feita em horários específicos e as pessoas têm de estar acompanhadas de um guia. As crianças, por sua vez, precisam da autorização dos pais para ver os objetos. "Isso revela como o próprio museu constrói essa identidade e confere significado ao acervo. Em outros museus, como o Nacional do Rio de Janeiro, os objetos eróticos são expostos junto com as outras peças da coleção romana. Ou seja, são tratados de uma maneira natural", acrescenta Marina. Atualmente, conforme ela, perto de dois quintos do sítio arqueológico de Pompéia ainda não foram escavados. A tendência, segundo ela, é que o trabalho seja feito de maneira lenta e que os objetos sejam mantidos no lugar de origem, de modo a permitir novos olhares e interpretações sobre a história.
Foi exatamente isso o que fez a pesquisadora da Unicamp. De acordo com Marina, o estudo da formação histórica da cidade de Pompéia permitiu que o conceito de sociedade homogênea fosse questionado, abrindo espaço para se pensar a pluralidade de sujeitos. Já a história das escavações e da coleção erótica demonstrou como os discursos e práticas da História e da Arqueologia romana foram sendo construídos. "Com isso, foi possível demonstrar como se deu a formação ideológica de uma tradição de estudiosos italianos, que mantêm até os dias atuais uma postura interpretativa bastante conservadora do que são as representações sexuais daquela época", conclui. Mariana foi orientada pelo professor Pedro Paulo Abreu Funari, do IFCH, e contou com bolsa concedida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).