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A construção da paisagem
 

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Do caldo de cana ao
suco de açaí (Parte I)



RACHEL LEWINSOHN


O barbeiro (Triatoma infestans)*Esta semana recebi um e-mail de uma amiga, que escreve: “Parece que a doença de Chagas, em Santa Catarina, já está desaparecendo da mídia, como se o problema estivesse resolvido.” Amiga, o problema está longe de ser resolvido; mas, com novas manchetes ofuscando o pânico incipiente sobre o caldo de cana em Santa Catarina, é essa a impressão que os noticiários transmitem. Eis que surgem novos problemas, entre eles 26 casos confirmados da doença, no Amapá. Francamente, não sei o que é mais pernicioso: a quase total ignorância do público sobre os fatos da doença, ou o seu embalo em espúrio senso de segurança pelas afirmações das autoridades sanitárias, de que a doença de Chagas no Brasil está sob controle.

Falemos dos problemas – e há muito que falar. Em primeiro lugar, o espanto geral ante a notícia da transmissão da doença de Chagas por via oral, como se fosse fato inédito. É verdade que ela é incomparavelmente mais rara do que a via vetorial, isto é, a transmissão pela picada do barbeiro, cujas fezes infectadas com Trypanosoma cruzi são introduzidas na corrente sangüínea quando a vítima coça o local da picada. Entretanto, a transmissão oral da doença é conhecida há muito tempo. “Os primeiros casos humanos autóctones de doença de Chagas na Amazônia surgiram a partir de 1966, com o relato1 de 3 casos... em Belém do Pará”, escrevem Ana Yecê das Neves Pinto e cols. em um estudo que faz menção de cerca de 148 casos descritos, até 2001, em toda a Amazônia brasileira; 121 dentre eles foram considerados agudos (houve 5 óbitos).2 No primeiro artigo, publicado em 1969, os autores “...aventaram a hipótese da infecção por via oral, a partir da contaminação alimentar com fezes de barbeiro infectado...” . A região afetada inclui os Estados do Pará, Amazonas, Acre, Amapá, Maranhão (considerando-se a Amazônia legal) e Rondônia: “Atualmente o Estado que mais tem notificado casos é o Pará, somando um total de 71..., [incluindo] casos ocorridos em 17 microepidemias familiares já descritas”.

No meu livro “Três Epidemias—Lições do Passado”,3 são descritos os mecanismos de transmissão do tripanosoma ao homem, além da picada do barbeiro:¯ transfusão de sangue, transplantes de órgãos, transmissão transplacentária (congênita) e “a via oral: pela ingestão dos parasitas com o leite materno, ou com bebidas ou alimentos contaminados ... com fezes de barbeiros, ou de animais infectados que...comeram os barbeiros ou deglutiram as suas fezes (gambás ou camundongos).” E, sobretudo: “A contaminação também pode se dar com a introdução, no alimento sólido ou líquido, de partículas dos barbeiros (triturados na moagem de cana por exemplo).” Na seqüência, são descritas duas microepidemias, ocorridas respectivamente em 1965 (Teutônia, RS) e 1986 (Catolé da Rocha, PB). “Na primeira 17 pessoas que faziam suas refeições em uma escola adoeceram no mesmo dia com o quadro clínico de miocardite aguda (6 vieram a falecer – uma virulência inexplicável). Na segunda, 26 pessoas adoeceram 7 a 22 dias após terem participado das festividades em uma fazenda, tendo todos bebido o caldo de cana moído no local; um deles faleceu de insuficiência cardíaca congestiva.”

“Nos dois surtos, que foram investigados com excepcional rigor, os achados... não deixaram qualquer dúvida a respeito do diagnóstico: tratava-se da doença de Chagas aguda. Em nenhum dos acometidos, em Teutônia ou Catolé, foi encontrado qualquer sinal da penetração do parasita; todos moravam em casas de boa qualidade, livres de barbeiros. Eliminadas as outras modalidades de transmissão e a existência de uma forma crônica assintomática de que eventualmente fossem portadores, o único fator que os pacientes tinham em comum era o de terem compartilhado dos mesmos alimentos cozidos, e, no caso de Catolé, de terem todos ingerido caldo de cana. Neste caso, aliás, ficou comprovado que a máquina de moer cana estava infestada de barbeiros.”

Ocorrência semelhante foi um surto de microepidemias no Pará em 2001, quando barbeiros contaminaram grande quantidade de suco de açaí. Outra epidemia se verifica agora no Amapá. No surto noticiado em 30 de março deste ano pelo Serviço de Epidemiologia da Secretaria Estadual de Saúde, confirmado pelo Instituto Evandro Chagas, de Belém (PA), 26 moradores da região de Igarapé da Fortaleza adoeceram da moléstia de Chagas aguda, após a ingestão de suco de açaí contaminado. Algumas feições do noticiário deste surto4 merecem destaque:

“A coleta de sangue das pessoas contaminadas foi feita em fevereiro, mas o resultado dos exames estava sob sigilo da Secretaria de Saúde. Apesar do número elevado de pessoas contaminadas, a Divisão de Epidemiologia descarta a ocorrência de surto da doença no Estado.

“Conforme Clóvis Omar Miranda, chefe da Divisão Epidemiológica da Secretaria Estadual de Saúde, a epidemia não existe porque não foi encontrado o barbeiro... ‘Por isso, afirmamos que esses casos são acidentais. A exemplo do que ocorre em Santa Catarina, no Amapá a contaminação não está acontecendo de forma clássica, ou seja, com o paciente sendo picado pelo mosquito’ (sic), disse Miranda.” (Itálicos R.L.)

Por outro lado, “ao admitir que o Estado não tem condições de realizar os exames para detectar a doença, o diretor da Vigilância Epidemiológica de Santa Catarina, Luis Antônio Silva, tenta acalmar a população, afirmando que “há um clima de pavor sem necessidade”. “Confirmada a doença, existe remédio, tem tratamento, não tem problema nenhum”, afirmou Silva.

Estivesse eu em Santa Catarina, duvido que essas afirmações me acalmassem; morreram 6 pessoas e dezenas estão internadas, com o diagnóstico confirmado de doença de Chagas aguda. Deve haver centenas que beberam o caldo de cana, mas, por não terem feito exame de sangue, ou por outros motivos quaisquer, a infecção não foi detectada neles. Eis uma pergunta minha ao senhor Silva: quantas pessoas precisam morrer para que o clima de pavor se torne “necessário”? E ao senhor Miranda no Amapá: quais seriam as condições necessárias para que a ocorrência merecesse o nome de “epidemia”?

Porém, mais grave do que essas tentativas malogradas de evitar o pânico, e para mim incompreensível, foi manter os resultados dos exames no Amapá sob sigilo da Secretaria de Saúde. Por quê? Isso equivale a esconder da população o perigo iminente de contrair a doença de Chagas, ao passo que toda a região amazônica deveria ter sido alertada, em termos que não deixassem dúvida, do risco de ingerir polpa ou suco cru de açaí, mormente porque já era conhecida a transmissão por via oral, e pela contaminação da mesma fruta! Essa simples precaução de evitar a polpa e o suco crus teria sido mais eficaz do que qualquer outra medida preventiva. Mutatis mutandis, o caso lembra a epidemia de cólera de 1892 em Hamburgo (Alemanha), quando as autoridades negaram a existência do surto, já em franca eclosão. O resultado foi uma epidemia muito mais severa, com mortalidade muito maior do que teria sido se a população tivesse sido alertada de não beber a água sem fervê-la.5

Isto nos leva ao problema básico da doença de Chagas humana (problema semelhante, aliás, para as doenças parasito-epidêmicas em geral): o do seu controle e prevenção. Logo após a descoberta, Carlos Chagas começou a pregar a necessidade de prevenir a doença pela eliminação do barbeiro das habitações humanas e pelo afastamento de animais domésticos, reservatório inesgotável de T.cruzi, das moradias dos seus donos. Pode-se dizer que no início do século XX simplesmente não existiam outros meios para controlar a doença. Hoje, após quase um século de avanços revolucionários da ciência e (bio)tecnologia, o nosso único meio de evitar epidemias devastadoras continua sendo a prevenção. No prefácio ao Atlas dos Vetores da Doença de Chagas,6 fonte da figura do barbeiro (Triatoma infestans), Eloi Garcia escreve: “O sucesso final para o controle da transmissão desta doença dependerá mais de estudos sobre hábitos, comportamentos, dinâmica de população, novos inseticidas e metodologias de controle bem como da interação T.cruzi–inseto vetor, do que de... vacinas e medicamentos contra o protozoário...” Ninguém discordaria dessa afirmação; mas ela é apenas parte do arcabouço complexo da prevenção da doença. A luta contra o barbeiro precisa, além da estratégia esboçada por Garcia, da vigilância e colaboração da população. Também precisa ser completada por outros meios, menos sofisticados, mas igualmente ou talvez mais importantes. O primeiro é a informação. De nada vale procurar o barbeiro na cana a ser moída, ou na fruta a ser processada, se a contaminação pode se dar pelas fezes do barbeiro ou pela urina ou as fezes de outros animais infectados com T.cruzi depositadas em alimento líquido ou sólido – eliminando a necessidade da presença (ou da picada) do barbeiro. Note-se que existem no Brasil mais de 110 espécies de triatomíneos, quase todos silvestres, muitos deles vetores (de fato ou em potencial) do T.cruzi. Nada indica que os surtos recentes foram causados por cepas oriundas do homem, ou que os seus vetores não foram espécies silvestres de barbeiros. Com efeito, o mecanismo de transmissão da doença é o mesmo de muitas febres hemorrágicas, que são transmitidas pela contaminação de alimentos pela urina de pequenos roedores que infestam as moradias humanas. O elemento crucial da prevenção é a informação: o ensino do porquê da necessidade absoluta de limpeza na cozinha; evitando o contato – não só do barbeiro mas de qualquer outro inseto ou animal – com água, sucos, frutas ou legumes que se comem ou bebem crus, ou com qualquer alimento cozido. O próprio cozimento é um processo de esterilização; é claro que depois do esfriamento, o alimento – líquido ou sólido – precisa ser mantido em recipiente tampado. Se o caldo de cana ou o suco de açaí fosse pasteurizado, eu não precisaria escrever estas linhas. Mais ainda que às casas de paredes e tetos íntegros, isto se aplica às moradias de pau-a-pique, de paredes e tetos rachados que permitem a permanência e procriação do barbeiro. Como explico no meu livro,7 nesses recintos, verdadeiras “casas de barbeiros, habitadas pelo homem” (Amato Neto e Baldy) as fezes dos barbeiros “chovem” sobre as pessoas que dormem ali. È claro que caem igualmente em qualquer recipiente aberto, caneca, copo, ou panela destampada. Mais do que qualquer outra medida, porém, é imprescindível que pare o desmatamento e o avanço do homem nos ecossistemas periurbanos, habitat do barbeiro silvestre. Forçado a encontrar outro nicho, ele se adapta ao homem com rapidez espantosa.

Quanto ao controle, precisamos antes de mais nada definir de que estamos falando. Somos informados pela OMS, PAHO e pelas autoridades sanitárias brasileiras, além de muitas publicações nacionais e estrangeiras, que a doença está “sob controle” em grande parte do Brasil, com a expectativa desse controle abraçar o país inteiro dentro de um futuro não muito longínquo. Para grande parte do público, e mesmo muitos médicos e trabalhadores na área da saúde não diretamente envolvidos com infectologia, o “controle” de uma doença equivale à sua (virtual) eliminação. Mas o critério de avaliação do “controle” da doença de Chagas são as estatísticas relativas à transmissão vetorial da doença, baseadas na incidência da infecção aguda: casos novos detectados em triagens de crianças e adolescentes, em gestantes e neonatos, a soro-positividade da população em geral. Outro critério de controle é a presença de barbeiros infectados nas habitações das regiões estudadas, e a determinação da eficácia (imediata e residual) de inseticidas. Há rigoroso monitoramento desses fatores em alguns centros de observação e pesquisa do país, dos quais Bambuí (MG), é um importante exemplo. As estatísticas mostram claramente que houve uma queda acentuada em todos os parâmetros, permitindo que se fale com justo orgulho na redução significativa do efeito de uma moléstia que em 1993 era considerada pelo Banco Mundial 8 como “a mais grave das parasitoses na América Latina, cujo impacto socioeconômico era muito maior do que o efeito conjunto de todas as outras infecções parasitárias [no subcontinente].” (Continua)


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Formada pela Universidade Federal Fluminense de Medicina, a professora Rachel Lewinsohn fez pós-graduação (dois mestrados, doutorado e pós-doutorado) nas universidades de Londres e Cambridge, Inglaterra. Desde 1982, pesquisou, lecionou e ministrou cursos de História da Medicina na FCM da Unicamp. É autora do livro “Três Epidemias: Lições do Passado” (Editora da Unicamp). Aposentada, continua a atuar como professora colaboradora voluntária da Unicamp.
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*A um tempo, o vetor mais comum da doença de Chagas (adulto: 21- 29 mm)

  • 1. Shaw JJ, Lainson R, Fralha H. Considerações sobre a epidemiologia dos primeiros casos autóctones da Doença de Chagas registrados em Belém, Pará, Brasil. Revista de Saúde Pública 3:153-157, 1965.

  • 2. Pinto AYN, Harada GS, Valente VC et al. Acometimento cardíaco em pacientes com doença de Chagas aguda em microepidemia familiar, em Abaetetuba, na Amazônia Brasileira. Rev.Soc.Bras.Med. Trop. 34(5):413-419, 2001.

  • 3. Lewinsohn, R. TRÊS EPIDEMIAS–LIÇÕES DO PASSADO. Ed.Unicamp, Campinas 2003, pp.267-269.

  • 4. Folha Online, 30/3/2005.

  • 5. Lewinsohn R. op.cit., pp.144-149.

  • 6. Garcia ES. Atlas dos Vetores da Doença de Chagas nas Américas. Prefácio. Editora Fiocruz, Rio de Janeiro 1998, p.13.

  • 7. Lewinsohn R. op.cit., p.268

  • 8. World Bank: World Development Report 1993. Investing in Health. Oxford Univ.Press, New York. 1993



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