Pesquisas multidisciplinares sobre jogos e esportes
praticados por indígenas reúnem educação física e antropologia
Na aldeia, mente, corpo
e sociedade se integram
MANUEL ALVES FILHO
A associação entre a educação física e a antropologia tem trazido importantes contribuições ao entendimento da construção da atividade corporal no decorrer da história. O estudo de grupos diferenciados, como caiçaras, deficientes físicos, profissionais de áreas específicas, etnias ameríndias, entre outros, tem colaborado para o estabelecimento de uma visão mais rica e abrangente sobre o corpo e o seu uso na sociedade. No Brasil, alguns dos melhores trabalhos nessa área são de pesquisadores do Laboratório de Antropologia Biocultural do Departamento de Estudos da Atividade Física Adaptada (DEAFA) da Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp. O objetivo do grupo, em atividade desde 1989, é justamente abrir o leque de percepções. “A compreensão do corpo e da sua utilização técnica é tão diversa que uma explicação universalizante seria também limitadora”, afirma a coordenadora do laboratório, professora Maria Beatriz Rocha Ferreira.
Dentre os diversos trabalhos realizados pela equipe coordenada por Maria Beatriz, os que envolvem os indígenas chamam especial atenção. Os cientistas da Unicamp têm pesquisado a relação de várias etnias com os jogos tradicionais e o esporte. “Nosso papel é tentar entender que compreensão cada povo tem dessas práticas”, explica a docente da FEF. Os jogos tradicionais, diz, têm sua origem ligada aos rituais de cada grupo. Estão associados à colheita, à guerra ou a uma celebração religiosa. Assim, embora determinados jogos sejam semelhantes entre algumas etnias, eles assumem significados diferentes, dependendo do repertório cultural de quem os pratica.
Nos jogos tradicionais, conforme Maria Beatriz, as regras são dinamicamente estabelecidas. Normalmente, não há limite de idade para os jogadores, nem categorização das equipes. Também não existem necessariamente ganhadores e perdedores e nem tampouco premiação. Vale pelo prestígio. “A participação em si está carregada de significados e promove experiências que são incorporadas pelo grupo e pelo indivíduo”, explica a professora. Embora a questão da competitividade não seja tão flagrante quanto na sociedade urbana, alguns povos trabalham com a questão da superioridade. Um exemplo é a etnia Kadiwéu, que habita o oeste do Mato Grosso do Sul. Conhecidos como “índios cavaleiros”, eles faziam o controle da sede em um dos seus rituais. Vários motivos são apontados pelos indígenas, dentre eles o de não perder a força guerreira.
Assim, ao participarem de disputas futebolísticas, eles também não querem beber água, de modo a não perder a força “guerreira” e demonstrar maior fortaleza sobre o oponente. “A filosofia dos jogos tradicionais é muito diferente da do esporte. Para os índios, mente, corpo e sociedade estão absolutamente integrados. Um exemplo disso é que, no Sul do país, alguns povos deixaram de praticar os jogos tradicionais em razão dos desmatamentos. O aldeamento e a perda de matas e terras, entre outros fatores, tiveram influência na mudança das atividades corporais, em específico os jogos, rituais e dança”, afirma. De acordo com a especialista, os Jogos Nacionais Indígenas, que agora contam com apoio governamental, têm sido importantes para promover o intercâmbio cultural entre as variadas etnias. Durante o evento, um povo tem a oportunidade de aprender com o outro, inclusive fora do âmbito da atividade corporal. A última edição ocorreu em outubro de 2004, em Porto Seguro, Bahia,
Segundo a docente da FEF, os jogos foram prejudicados pelas intensas chuvas que atingiam aquela região. “Por meio desse tipo de evento, nós temos a chance de perceber um pouco melhor a importância dos jogos tradicionais como elemento da identidade cultural”, afirma Maria Beatriz. Os pesquisadores da Unicamp também têm investigado as práticas esportivas não-tradicionais entre os indígenas. Assim como os não-indígenas, a modalidade predileta deles é o futebol. O jogo praticado nas aldeias, prossegue Maria Beatriz, obedece aos valores de cada etnia. Estes podem ser percebidos na forma da organização da disputa e até mesmo no grau de frustração em virtude da derrota.
Para o índio, trabalhar com a perda é uma tarefa extremamente difícil, já que o conceito praticamente inexiste nos jogos tradicionais. “Esse processo de ressignificação é muito doloroso para eles. Tome-se o caso dos próprios Kadiwéu. Como povo guerreiro, que ajudou o Brasil a vencer a Guerra do Paraguai, eles estão acostumados com o sucesso. Trata-se de memória mitológica que é percebida no esporte. Assim, a derrota para eles é mais difícil de ser encarada do que para nós”, esclarece a especialista.
Maria Beatriz afirma que a melhor compreensão da cultura ameríndia por meio das atividades corporais não tem sido importante apenas para a Educação Física, mas para a academia de modo geral, que tem modificado a sua forma de pensar a questão indígena. A expectativa da professora é que essa evolução tenha continuidade, sobretudo neste momento em que várias instituições de ensino têm adotado programas de cotas dirigidas ao segmento. “Essas iniciativas são importantes, mas não bastam. Penso que as universidades também deveriam constituir grupos de apoio com a missão de ajudar os índios a fazer a transição do ensino médio para a universidade, respeitando obviamente toda a carga cultural que eles trazem consigo”.
Integração Os Jogos Indígenas são liderados pelos próprios representantes indígenas locais e nacionais, como os irmãos Marcos e Carlos Terena. São organizados pelo Ministério do Esporte e Secretarias Estaduais do Esporte com objetivos de incentivar a prática dos jogos, divulgar as manifestações esportivas e culturais de cada nação indígena e promover a integração entre as diversas etnias. Os Jogos já foram realizados em Goiânia/GO (1997), Guairá/PR (1999), Marabá/PA (2000), Campo Grande/MS (2001), Marapanin/PA (2002) e Porto Seguro/BA (2004). As provas tradicionais apresentadas são: Akô, Apãnare, Arco e Flecha, Arremesso de Lança, Corrida de 100 metros, Cabo de Guerra, Canoagem, Corrida de Fundo, Corrida de Tora, arco e flecha, lutas corporais, zarabatana, travessia individual de natação, tirimore e xikuharaty. As provas não-tradicionais são futebol de campo, natação e atletismo.