“Minha pesquisa é sobre a escultura policromada [com várias cores] em Minas Gerais, que é basicamente a escultura devocional, a imagem de devoção. Observamos essas imagens não somente do ponto de vista religioso, mas da história, da iconografia e dando ênfase aos materiais e técnicas adotados na criação do objeto artístico”, explica a professora. Muitos devotos apreciariam estar na platéia de artistas e estudiosos da arte, ouvindo mais a respeito de materiais, procedimentos técnicos, composição, detalhes anatômicos e outros segredos guardados no interior das esculturas, aprofundando o olhar com que veneram as imagens nas missas de domingo.
Beatriz Coelho iniciou suas pesquisas em 1990 e lamenta que nos últimos anos, por conta de estar aposentada, encontre mais dificuldades de financiamento para desenvolvê-las no mesmo ritmo. Adotar a escultura devocional como fonte primária de estudo exige viagens às cidades em que as peças se encontram, fotografias, gravações, filmagens e análises complementares de laboratório para identificar materiais e radiografias que mostrem detalhes escondidos. “A bibliografia e outros documentos são uma complementação do estudo. Como restauradores, muitas vezes conseguimos autorização para retirar o objeto do altar o que não é tão fácil , examinando-o por todos os ângulos. Os objetos falam. É importante saber olhar e ler o que dizem”, aconselha.
Composição Para demonstrar como se observa a composição de uma imagem, Beatriz Coelho projeta a foto de uma famosa peça de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, cuja restauração coordenou: é Nossa Senhora da Piedade, mostrada nesta página. “Como num caleidoscópio, cada posição vai gerando um desenho diferente. Tomando os pontos extremos da escultura, traçamos um triângulo. Mas olhando da cabeça da mãe para a cabeça do filho, e a outros pontos extremos da escultura, já teremos um polígono. Vemos ainda as linhas predominantes do rosto, dos braços e dos pés, e também linhas virtuais que levam o olhar do observador a acompanhar o olhar da mãe para o rosto do filho. Não há quem deixe de ser levado pelo olhar da mãe”, ilustra.
Em relação à estrutura, a pesquisadora explica que a imaginária devocional divide-se basicamente em dois grupos: as de talha inteira e as imagens de vestir, como as imagens de São Simão Stock e São Simão da Cruz, também de Aleijadinho e também nesta página. Há objetos com poucos ou vários blocos; maciços ou ocos; blocos unidos por cola, cravos ou sistema de encaixe; olhos esculpidos e pintados ou com olhos de vidro. “Encontramos olhos esculpidos e pintados bastante expressivos, mas os de vidro são mais realistas”, observa.
Nas andanças por cidades como Sabará, Santa Luzia, Catas Altas, Ouro Preto, Mariana e Tiradentes, Beatriz Coelho encontrou o cedro em 75% das esculturas cujas amostras foram analisadas em laboratórios. Também foram identificadas peças em cambará, jequitibá, canela, marinheiro, cangalheiro, catueiro, louro (a árvore da folha usada como tempero), pinho do paraná e mesmo em castanho espécie típica da Europa que não existia no Brasil. Encontrou também uma imagem com duas madeiras diferentes, com pau-de-lacre para o corpo e cabeça feita em canela. “Supõe-se que o artista, por querer trabalhar com mais detalhes na cabeça, tenha optado por uma madeira mais macia. Mas, quando restaurei a peça, o interior da cabeça estava corroído por insetos, enquanto o corpo mantinha-se preservado”, afirma.
A maior parte das imagens do início do século 18 era feita em poucos blocos, geralmente em dois. A partir da segunda metade do século, sobretudo no período rococó, as imagens deixaram de ser tão hieráticas e rígidas, ganhando movimentação com indumentárias esvoaçantes que se desprendiam da figura, uma complementação que exigia outros blocos de madeira. Uma imagem da primeira metade do século, de São Pedro Mártir, tem o corpo em peça única e a mão feita separadamente. “Para mim, a explicação estava na facilidade de se manusear uma peça menor para os detalhes dos dedos e da palma da mão”, recorda. Veio de um especialista em madeiras, porém, uma explicação complementar: se o artista acompanhasse o sentido das fibras da madeira do corpo para esculpir os dedos, eles se quebrariam.
Há também as imagens ocas. Beatriz Coelho informa que esta opção tem menos a ver com outra crença popular, a do santo do pau oco, pensado para esconder ouro e moedas. “Ao contrário, este é um costume adotado na Europa desde a Idade Média. O escultor retirava a parte mais frágil da madeira, o miolo, para diminuir o risco de rachadura, sobretudo em peças maiores. Quanto a guardar ouro, não encontramos nem pó nos objetos que estudamos”, brinca.
Radiografias confirmam aberturas no interior da cabeça, para colocação dos olhos de vidro, constatadas em observação direta. A cabeça era seccionada, ficando face de um lado e crânio do outro. “Achamos dentro da cabeça de São Simão Stock uma moeda, que não era antiga (de 1970), e na cabeça de São João da Cruz, parte de uma tesourinha. Imagino que esses objetos serviram para calçar o resplendor bastante pesado e em madeira, e eles caíram pela abertura das esculturas”, supõe.
Carnação A propósito de “esculpido e encarnado”, Beatriz Coelho informa que a policromia é dividida em carnação e estofamento. “Carnação é a técnica de pintar imitando a carne: rosto, mãos, braços, pés descalços. Estofamento vem do francês étoffe (tecido) e visava basicamente a imitação de tecidos com que se fazem forros de cadeira e roupas de padre”, explica. Uma informação não comprovada é que se esfregava nas peças a bexiga do carneiro, pois sua gordura assegurava um brilho acetinado à carnação.
Examinando e comparando quatro “Cristos” de Aleijadinho, a pesquisadora observou a semelhança de traços fisionômicos como nariz, bigode, boca e cabelo. Chamou sua atenção, por exemplo, que as barbas de São Simão e São João da Cruz dão a impressão de nascer de trás para a frente, terminando em dois tubos que não se uniam, deixando um vazio de pelos na ponta do queixo. “Restauramos uma peça em que a barba tinha sido emendada, com uma fresta em gesso pintada de cor escura. Acho que quem fez aquilo ignorava tal característica da obra de Aleijadinho e resolveu completar a barba por achá-la estranha”, conta.
Na opinião da professora Beabriz Coelho, as informações sobre materiais e técnicas representam a principal contribuição de sua pesquisa para o conhecimento da escultura policromada devocional de Minas Gerais, além da interdisciplinaridade, com a colaboração de especialistas em botânica, química e outros observares, restauradores e historiadores da arte. “Mas, às vezes, sinto vontade de me sentar com Aleijadinho e pedir que me explique como produziu alguns detalhes de suas peças”, confessa.
Acervos Artísticos da Unicamp
A exposição Acervos Artísticos da Unicamp está aberta ao público até o dia 20 de abril, na Galeria de Artes. A mostra é parte do II Encontro de História da Arte e das comemorações do Ano 40 da Universidade, reunindo obras de artistas como Antonio Roseno, Bernardo Caro, Geraldo de Barros, Hercules Barsotti e Paim Vieira. “Nosso intuito é mostrar como a teoria e a produção artística se complementam, sempre. A exposição é lugar também de reflexão e de pesquisa em artes, onde as obras deixam de ser vistas apenas como ilustração de um artigo ou de uma explanação em Power Point. É um ‘exercício-recorte’ que realça a comunicação entre acervo, galeria, universidade e visitante”, afirma a curadora Ana Paula Felicissimo de Camargo Lima.
Segundo Ana Paula, a exposição Acervos Artísticos da Unicamp é fruto de um trabalho curatorial realizado desde 2005 por pós-graduandos em história da arte do IFCH, com intuito de divulgar parte das obras pertencentes à Universidade, contextualizando-as por meio de catálogos, artigos de jornais, anotações e outros registros documentais. “Nesse primeiro momento, não foi possível mostrar os acervos de todas as unidades, apenas da Galeria de Artes e do Arquivo Central (Siarq). Isso por questão de tempo e também porque quisemos datar a produção do final dos anos 1940 até o final dos 60, quando nossos artistas passaram por fases de reflexão, rompimento e influências da Europa e Estados Unidos”, explica.