A despeito do emprego de sofisticados recursos tecnológicos, as guerras atuais assemelham-se estrategicamente às suas antecessoras, mesmo as ocorridas há milhares de anos. A afirmação é do historiador e coordenador-associado do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE) da Unicamp, Pedro Paulo Abreu Funari. Ele é um dos autores do livro História das Guerras, recém-lançado pela Editora Contexto. A obra, organizada por Demétrio Magnoli, geógrafo formado pela USP, é a primeira produzida no Brasil sobre o tema, um dos motivos que a torna desde logo referência na área. “Excetuando as armas nucleares, que foram usadas duas vezes, a tecnologia não alterou substancialmente as táticas de campo. Manobras de defesa e ataque executadas pelos Estados Unidos na Guerra do Golfo [conflito do início dos anos 90] foram similares às utilizadas pelos antigos romanos”, exemplifica.
Quatro da Unicamp colaboram
no 1º livro brasileiro sobre o tema
Além de Funari, que escreveu um capítulo sobre a Guerra do Peloponeso [século V a.C.], três outros membros do NEE colaboraram com o livro: Renata Garraffoni (Guerras Púnicas), Armando Vidigal (Guerras de Unificação Alemã) e Geraldo Lesbat Cavagnari Filho, este último responsável pela quarta capa. Ao todo, são 15 autores, cada um tratando de um conflito. Os nomes foram cuidadosamente escolhidos, tendo por critério suas qualificações. Os eventos analisados no volume foram selecionados segundo a sua importância histórica, dado que promoveram mudanças significativas na trajetória da humanidade. Ademais, continuam inspirando estrategistas militares e líderes políticos.
Os capítulos, apresentados em ordem cronológica, fazem uma análise ampla e apurada das guerras. Além das estratégias militares, os autores tratam dos contextos histórico, social e cultural nos quais os conflitos se deram. Também traçam os perfis dos principais personagens neles envolvidos. A linguagem adotada é clara e direta, o que torna o livro acessível a qualquer leitor. De acordo com Funari, um aspecto importante a ser ressaltado é o fato de a obra ter sido escrita por estudiosos de diferentes áreas. “Isso é fundamental, pois oferece ao leitor uma diversidade de pontos de vista. Dessa forma, quem ler o livro não ficará sabendo apenas como ocorreu uma guerra, mas também tomará conhecimento da existência de debates historiográficos em torno dela. Um conflito tem vários lados e, portanto, inúmeras implicações”.
Um outro aspecto relevante de História das Guerras é o fato de o livro desmistificar a crença geral de que os conflitos beneficiam somente os poderosos. Conforme o coordenador-associado do NEE, alguns deles são deflagrados atendendo os interesses populares. “Não é tão simples dizer que o povo e a democracia são a favor da paz. Às vezes, o povo quer a guerra para resolver os seus problemas”, diz. A Primeira Guerra Mundial é um exemplo disso. Segundo Funari, diversos países entraram em luta com o apoio popular. França e Alemanha enfrentaram-se, entre outros motivos, por causa do engajamento de grande parte de suas classes trabalhadoras. Eis aí uma explicação interessante para a importância de se compreender melhor as guerras.
Os conflitos, assinala o docente da Unicamp, contam-nos muito sobre a trajetória da sociedade. “A história da humanidade é a história das guerras. O mundo sempre esteve em luta. Além do mais, as guerras inspiram as pessoas, das mais variadas posições e nas mais variadas épocas. A invasão do Iraque pelos Estados Unidos é reveladora nesse sentido. Um dos assessores do secretário de Defesa norte-americano, Donald Rumsfeld, é historiador da Grécia Antiga. Ele valeu-se da Guerra do Peloponeso [embate entre Atenas e Esparta] para justificar a necessidade dessa incursão. O argumento principal era de que o país não poderia cometer o mesmo erro de Atenas, ou seja, deixar de patrocinar a democracia em outras localidades. Evidentemente, como estamos vendo, o argumento não deu certo”.
Ainda sobre a Guerra do Peloponeso, vale lembrar que o conflito foi vencido por Esparta. Esta, entretanto, não conseguiu manter-se como potência por mais de três décadas. “Isso demonstra que, no que toca a uma guerra, não basta alcançar uma vitória militar. O vencedor também precisa obter o domínio econômico e comercial”, esclarece Funari. Atualmente, prossegue o coordenador-associado do NEE, existem duas teorias predominantes em relação às guerras. Uma, de origem européia, afirma que esses eventos são inevitáveis e, portanto, é preciso sempre estar preparado para os próximos. A paz, assim, seria apenas um interlúdio entre os duelos. A outra é norte-americana e sustenta que a paz é possível e desejável. Portanto, bastaria uma guerra definitiva para acabar com todas as outras. Dito de outro modo, para os Estados Unidos o próximo conflito será sempre o último. Ocorre, porém, que teoria e prática não têm se aliado nesse aspecto.
Ideologia Quais são, afinal, as principais as razões que levam os países à guerra? O motivo comum a todos os conflitos, responde o professor Funari, é ideológico. De acordo com o estudioso, nenhum cidadão está disposto a entrar numa batalha para matar e principalmente para morrer em nome do petróleo, por exemplo. “Isso não é assim só hoje. Desde sempre, as pessoas precisam de uma ótima justificativa para guerrear. Assim, entra-se num combate por acreditar que ele será importante para manter o bem-estar dos filhos ou para assegurar a soberania da nação. Em outras palavras, trata-se de um ato simbólico. A guerra pode até ter um viés econômico e/ou político, mas seu início tem relação com uma questão simbólica”, esclarece.
A Primeira Guerra Mundial, mais uma vez, ajuda a explicar esse caráter dos conflitos. No início do século 20 as nações européias tinham, evidentemente, pronunciadas divergências políticas e econômicas. Entretanto, foi o assassinato do arquiduque da Áustria-Hungria, Francisco Ferdinando, em junho de 1914, em Sarayevo, capital da Bósnia-Herzegovina, que precipitou o confronto. “Acontecimentos desse tipo servem para que a pessoa convença a si mesma e aos outros sobre a validade e a correção de ingressar numa guerra”, analisa o professor Funari. Em tempo: em quatro anos de batalhas, entre 1914 e 1918, a Primeira Guerra Mundial deixou como saldo aproximadamente 10 milhões de mortos e outros 30 milhões de feridos.
Embora o livro não faça prognósticos, o professor Funari não se nega a responder à pergunta sobre o risco de um novo conflito mundial. Em sua opinião, não há qualquer indício, pelo menos no curto prazo, de que isso possa vir a acontecer. A existência das armas nucleares, diz, garante que as grandes potências não guerreiem entre si para resolver suas eventuais divergências. Entretanto, é certo que continuarão ocorrendo guerras locais, como pode ser constatado hoje em alguns pontos da África, Ásia, Europa e mesmo da América do Sul. Ou seja, a paz, entendida como uma situação na qual não haja desarmonia e prevaleça a plena liberdade, ainda é uma utopia.
A história, reforça o docente da Unicamp, revela que esse estágio jamais foi alcançado pela humanidade. A paz, afirma, também está associada ao domínio. Para impedir eventuais conflitos, o Império Romano, por exemplo, valia-se da força. Desse modo, a “paz romana” ficou igualmente conhecida como a “paz no cemitério”. Traduzindo, quem era contra as leis do imperador acabava morto. O NEE, destaca o professor Funari, dedica-se há vários anos ao estudo das guerras. Por meio delas, os especialistas tentam compreender melhor o mundo atual. “Não é possível falar das relações entre as potências sem falar em conflitos”, ensina. O NEE, que é referência científica no Brasil nessa área, mantém projetos de cooperação com centros de pesquisa de outros países, igualmente interessados em entender cada vez mais os complexos e variados elementos que envolvem esses fenômenos históricos.
SERVIÇO
História das Guerras
Editora: Contexto
Organizador: Demétrio Magnoli
Número de páginas: 480 Preço: R$ 55,00
Autores:
Demétrio Magnoli, Pedro Paulo Funari, José Rivair Macedo, Francisco Doratioto, Renata Garraffoni, Marco Mondaini, Elaine Senise Barbosa, Henrique Carneiro, Antonio Pedro Tota, Fátima Regina Fernandes, Armando Vidigal, Luiz de Alencar Araripe, André Martin, William Waack e Cláudio Camargo.