O primeiro indício de que Zeferino não estava disposto a curvar-se ao regime ocorreu em 1967, quando delegou ao filósofo Fausto Castilho, então secretário municipal de Educação em São Paulo, a tarefa de articular a formação do Instituto de Ciências Humanas. O plano era iniciar pelo Departamento de Planejamento Econômico e Social, o Depes. Acadêmico de formação alemã, estudioso da obra de Edmund Husserl, Castilho de imediato lembrou-se dos professores do curso livre de planejamento econômico que a prefeitura paulistana organizava desde 1965 com a ajuda do escritório da Cepal no Rio de Janeiro. O detalhe é que a Cepal, ou Comissão Econômica para a América Latina, um organismo das Nações Unidas com sede em Santiago do Chile, era tida como um “ninho de esquerdistas”, havia muito na mira dos militares.
As pressões estavam prestes a provocar as primeiras baixas quando Castilho convidou o economista Wilson Cano, um dos professores da Cepal. Cano, que já estava de malas prontas para o Chile, mudou de planos e estendeu o convite a outros dois colegas, Ferdinando Figueiredo e Roberto Gamboa. Em novembro de 1967, os três desembarcaram em São Paulo para uma reunião com Zeferino. Questionado por Ferdinando sobre a estrutura disponível, o reitor respondeu com o refrão de praxe: “primeiro, cérebros; segundo, cérebros; terceiro, cérebros”.
O trio despediu-se do encontro convencido de que a mudança de ares faria bem a todos. Além disso, Zeferino oferecia-lhes salários de doutores, embora fossem apenas bacharéis. Em troca teriam de apresentar produção científica e conquistar titulação. Àquela altura, Castilho já havia recrutado alguns dos melhores alunos do curso paulista: Luiz Gonzaga Belluzzo (seu chefe de gabinete na Secretaria de Educação), João Manuel Cardoso de Mello (seu oficial de gabinete), Carlos Eduardo Nascimento Gonçalves e Osmar Marchese, sendo que este trouxe um colega de pós-graduação na USP, Éolo Marques Pagnani. Estava escalado o time que daria início às humanidades na Unicamp.
Estrebaria A lista não passou despercebida. Nos corredores do poder, Zeferino ouvia insinuações de que estava transformando a Unicamp num “antro de comunistas”. A resposta era sempre a mesma: “São comunistas, mas são competentes”. Cano, o primeiro a chegar, desembarcou em Campinas em fevereiro de 1968. Como o campus ainda não existia, Zeferino mandara adaptar salas nos porões de um antigo colégio, o Bento Quirino, na rua Culto à Ciência. O galpão reservado aos cepalinos não se parecia em nada com o escritório do Rio de Janeiro. Sem a menor cerimônia, o próprio Zeferino confidenciou ao economista que, no passado, o lugar havia funcionado como estrebaria. Cano olhou para aquilo e respirou fundo.
Um dia, Ferdinando Figueiredo subiu ao andar de cima para falar com Zeferino. O primeiro curso estava previsto para o segundo semestre e era preciso material para imprimir os textos. Como ninguém o conhecia, o porteiro barrou-lhe a passagem. Passaram-se horas até que o reitor saiu para ir ao banheiro. Com medo de perder a chance, Ferdinando foi atrás. Zeferino autorizou a compra ali mesmo, enquanto urinavam lado a lado. No mesmo ano de 1968, o reitor daria novo sinal de atrevimento. Ainda sob o impacto do recém-anunciado AI-5, bancou a vinda de professores da Cepal que atuavam no exterior. Aquilo era uma afronta, mas o curso prosseguiu até 1969, quando se desdobrou no Departamento de Economia e Planejamento Econômico.
Enquanto os cepalinos consolidavam a Economia, Castilho atraía quadros para os departamentos de Lingüística e Ciências Sociais. A invasão da USP por membros do Comitê de Caça aos Comunistas, na rua Maria Antonia, havia gerado um clima de ebulição intelectual. Muitos professores agora viam na Unicamp uma alternativa para articular o conhecimento com as questões sociais e políticas. Entretanto, era preciso uma estratégia para não colidir de frente com o regime.
Guarda-chuva Seguindo esse raciocínio, a lingüística foi escolhida como uma espécie de guarda-chuva disciplinar, que emprestaria caráter científico às análises das ciências sociais, muito mal vistas pelo governo militar. Vários dos primeiros contratados receberam apoio da Fapesp para o doutorado na Europa em suas respectivas áreas, com a condição de também cursarem lingüística em Besançon. A lista incluía nomes como Antonio Augusto Arantes (antropologia), Luiz Orlandi (filosofia) e André Villalobos (sociologia).
Em fins de 1969, obedecendo à mesma estratégia, Castilho pediu ao crítico Antonio Candido uma relação de nomes para uma segunda lista. No início de 1970 embarcavam para Besançon os lingüistas Carlos Franchi, Hakira Osokabe, Rodolfo Ilari e Carlos Vogt. Após mergulharem no ambiente intelectual da França, onde o estruturalismo de Claude Lévi-Strauss estava no auge, o grupo retornou a Campinas pronto para iniciar suas atividades. Até o final daquele ano estariam em andamento os cursos de bacharelado em Economia, Lingüística e Ciências Sociais. Posteriormente, os dois primeiros departamentos o Instituto de Economia (IE) e o Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), seriam desdobrados em unidades autônomas.
Enquanto o segundo grupo de lingüistas seguia para a França, o primeiro time de estrangeiros chegava às humanidades. Ao retornar para o Brasil, Arantes trouxe a tiracolo os antropólogos Verena Martinez-Alier e Peter Fry, que estavam na Inglaterra. Os três começaram a dar aulas para a primeira turma de graduação em 1970. Já no ano seguinte, foram incumbidos por Castilho de iniciar o programa da pós. A essa altura, as atividades já haviam deixado o velho galpão no colégio da rua Culto à Ciência e ocupavam um prédio emprestado na Faculdade de Engenharia Mecânica devidamente instalada no campus. O único inconveniente era estudar Chomski, Kant e Marx respirando os odores nauseabundos que toda sexta-feira exalavam da sala vizinha, onde um certo professor de química realizava suas experiências.
Como o grupo era pequeno, recorreu-se a professores visitantes de padrão elevado, o que colocava os alunos em contato com uma grande variedade de linhas teóricas. Logo, a unidade estava repleta de chomskianos e levistraussianos. Entre os visitantes figuraram nomes como Carmelo Lisón-Tolosana, Juan Martinez-Alier, Daniel Gross, Richard Price, Robert Shirley, Diana Brown, Mario Bick e Helene Clastres, além dos brasileiros Roberto DaMatta, Francisca Vieira Keller e Roberto Cardoso de Oliveira. Um pouco mais tarde, também chegariam Octavio Ianni, Vilmar Faria, Leoncio Martins e Michel Debrun.
Visão lúcida Estruturado sobre a Antropologia, a Sociologia e a Ciência Política, o Departamento de Ciências Sociais também daria origem a outros dois departamentos: o de Filosofia (1976) e o de História (1978). Importantes estudos passaram a ser desenvolvidos com o fim de permitir uma visão mais lúcida da realidade brasileira. Para isso, montou-se uma biblioteca com mais de 40 mil volumes, além de arquivos históricos como o Edgard Leuenroth, voltado ao movimento trabalhista brasileiro.
Em 1971, divergências com Zeferino levaram Castilho a sair de cena. Ele voltaria em 1985, a convite do então diretor Luiz Orlandi e após a morte do reitor, ocorrida em fevereiro de 1981. Em novembro do mesmo ano, o IFCH escreveria um capítulo importante de sua história ao firmar-se como núcleo de resistência à intervenção no campus, ordenada pelo governador nomeado pelo regime militar, Paulo Maluf.
Estudantes, professores e funcionários se mobilizaram numa série de atos e debates com a participação de artistas, políticos e intelectuais, entre eles Florestan Fernandes. No papel de interventor, o biólogo aposentado Paulo de Toledo Artigas foi recepcionado por 500 estudantes no IFCH. Enfrentou um corredor polonês, tendo de passar por um tapete de moedas e romper uma faixa com a frase “autonomia universitária”. Artigas renunciou ao cargo antes de assumi-lo.