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Tese mostra como desregulamentação e reestruturação
produtiva afetaram o trabalho entre 1990 e 2005

EMPREGO: o retrato do flagelo brasileiro

MANUEL ALVES FILHO

O economista José Dari Krein: "empregabilidade" e "empreendedorismo" viraram palavras mágicas (Fotos: Antoninho Perri)Entre 1990 e 2005, o processo de flexibilização das relações de emprego, que já estava em curso no Brasil, intensificou-se. O fenômeno trouxe uma série de impactos negativos aos trabalhadores, a começar pelo afrouxamento de direitos, passando ainda por mudanças no padrão de contratação, remuneração e cumprimento da jornada. A conjugação desses e outros fatores também acarretou inúmeras conseqüências, entre elas a precarização do trabalho e a explosão da informalidade. A constatação é do economista José Dari Krein, que acaba de defender tese de doutoramento sobre as tendências recentes nas relações de emprego no país. O estudo, que faz um amplo apanhando e uma profunda reflexão em torno das transformações ocorridas no período tomado para análise, nasce como referência para todos aqueles que querem compreender um pouco mais sobre o intrincado mundo do trabalho.

Contratações atípicas se tornaram comuns

De acordo com Dari, que integra o corpo docente do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit), ligado ao Instituto de Economia (IE) da Unicamp, onde apresentou a tese, o mercado de trabalho no Brasil foi marcado pela forte desregulamentação e pela reestruturação do setor produtivo entre 1990 e 2005. Esse processo, que ainda não deu sinais de esgotamento, ganhou impulso graças às transformações ocorridas nas esferas econômica e política. Foi nesse período, lembra o professor, que o país abriu a economia e passou a adotar o ideário neoliberal. Antes, nos anos 80, ainda havia no âmbito doméstico um contra-movimento à tendência internacional de flexibilizar as relações de emprego. “Naquele momento, nós vivíamos o início do período de redemocratização, no qual houve o fortalecimento do sindicalismo e dos movimentos sociais, o que colaborou para a ampliação da proteção ao trabalhador”, explica.

Entretanto, superada essa etapa, o Brasil embarcou na onda geral de desregulamentação. O discurso que passou a imperar propugnava que as relações entre capital e trabalho deveriam ser resolvidas no âmbito do mercado. Assim, o emprego ficou sujeito às variações deste. As demissões passaram, então, a acompanhar o comportamento do consumo. A cada nova retração, mais trabalhadores perdiam suas colocações. “Além disso, valendo-se das facilidades proporcionadas pela legislação, as empresas começaram a utilizar o mecanismo da substituição. Ou seja, trocavam um trabalhador considerado caro por outro com salário bem menor”, afirma o autor da tese. Com isso, houve um significativo estreitamento do mercado de trabalho e a conseqüente ampliação da informalidade.

Barracas de "camelódromo" (à esquerda) refletidas em óculos de trabalhador no centro de Campinas: estudo revela a explosão de informalidade em todo país  (Fotos: Antoninho Perri)Diante de cenário tão desfavorável, as instituições públicas responsáveis pela fiscalização do trabalho ficaram fragilizadas e os sindicatos tiveram seu poder de negociação afetado. A manutenção do nível de emprego, por exemplo, deixou de ser um objetivo central dentro das negociações coletivas para assumir um papel quase que secundário. “De maneira geral, a manutenção do nível de emprego continuou permeando as negociações, mas deixou de estar expresso nos acordos coletivos”, analisa o docente do Cesit. A partir dos anos 90, prossegue o autor da tese, duas “palavras mágicas” surgiram no mundo do trabalho. A primeira foi “empregabilidade”, que veio para fortalecer a lógica de que as relações de emprego deveriam ser equacionadas pelo mercado. Dito de outro modo, o emprego passou a ser uma responsabilidade do trabalhador, e não da coletividade ou do país.

A segunda palavra foi “empreendedorismo”. Esta tinha - e continua tendo - por princípio convencer as pessoas a criarem condições de constituírem negócios capazes de concorrer no mercado. Mais uma vez, a responsabilidade foi transferida do domínio coletivo para o individual. De acordo com Dari, o trabalhador que resistiu a essas transformações e manteve o emprego viu-se, transcorrido um curto período, num ambiente de trabalho precarizado e inseguro. Isso pode ser constatado pela análise das mudanças ocorridas em alguns aspectos relacionados às relações de emprego. A forma de contratação, por exemplo, tornou-se altamente desfavorável ao trabalhador. As empresas passaram a ter mais facilidades para demitir. Além disso, surgiram as contratações atípicas, como as por tempo determinado ou parciais.

A esse respeito, o docente do Cesit faz uma observação relevante. Segundo ele, a legislação trabalhista foi flexibilizada para favorecer as contratações atípicas. O argumento dos defensores da medida é que ela ampliaria o nível de emprego. Na prática, porém, não foi o que aconteceu. “Está provado que a criação de emprego não depende da flexibilização das leis, mas sim do fortalecimento da economia”, atesta Dari. Também nos anos 90, continua o pesquisador, emergiram as relações de emprego disfarçadas. Entre elas está o trabalho-estágio, termo cunhado pelo economista, e o fenômeno conhecido popularmente como “pejotização”. Ou seja, muitas pessoas começaram a constituir empresas [tornaram-se pessoas jurídicas, daí o termo emprestado da sigla PJ] para prestar serviços à antiga empregadora.

Ainda no que toca às transformações ocorridas nas formas de contratação, há que se considerar, segundo Dari, o aumento das cooperativas de trabalhadores e a mais expressiva forma de flexibilização dentro desse domínio, que é a terceirização. Ademais, o tempo de trabalho também sofreu impactos por conta dessa nova realidade. Embora a jornada tenha sido mantida, ocorreram alterações expressivas em alguns aspectos. O domingo, por exemplo, deixou de ser considerado dia de descanso, segundo a legislação trabalhista. Não por acaso, a maioria das lojas dos shoppings agora abre normalmente nesse dia. Mesmo não tendo sido encurtada ou prolongada, a jornada foi de alguma forma flexibilizada. O banco de horas e o uso abusivo de horas-extras são demonstrações inequívocas dessa distensão, conforme Dari.

Além disso, o ritmo do trabalho e a fiscalização em torno das tarefas desempenhadas pelo trabalhador foram intensificados nos últimos anos. “Atualmente, alguns dispositivos eletrônicos informam ao supervisor ou ao gerente quantas autenticações um caixa de banco fez num determinado período. A partir desses dados, novas metas vão sendo estabelecidas”, afirma o autor da tese. Como se não bastasse, cada vez mais o tempo do trabalho ocupa o tempo social das pessoas. Levar afazeres para casa e permanecer com o celular ligado após a jornada tem sido quase uma obrigação. “A conseqüência disso tudo é que as novas doenças profissionais, vinculadas aos mecanismos de pressão exercidos pelas empresas, estão avançando. O estresse, a angústia e a ansiedade já afetam inclusive a sociabilidade das pessoas”.

Outro domínio atingido pela desregulamentação do trabalho e pela reestruturação produtiva é a remuneração do trabalhador. A tendência atual, de acordo com o professor do Cesit, é que parte dessa remuneração torne-se variável e individualizada. Isso quer dizer que uma parcela do salário está sendo vinculada ao desempenho tanto da empresa quanto do empregado ou grupos de empregados. O mecanismo da PLR [Participação nos Lucros e Resultados] tem ocupado, nos tempos que correm, um papel central nas negociações coletivas. “Também nesse aspecto, temos que considerar o pagamento de prêmios e comissões. Ocorre, porém, que esse dinheiro extra não é considerado para efeito de 13º salário ou mesmo para o cálculo da futura aposentadoria do trabalhador”, esclarece Dari.

O pesquisador ressalta, porém, que a recente política de valorização do salário mínimo não pode ser colocada nesse rol. A medida, que tem trazido reflexos positivos para a distribuição de renda e combate à pobreza, revela a existência de uma certa regulação pública que ainda é favorável ao trabalhador. “Entretanto, o salário mínimo não tem um peso importante nos setores mais dinâmicos da economia. De qualquer forma, isso demonstra que o padrão das relações de emprego está diretamente ligado com o modelo de país que queremos. Numa sociedade que se pretende civilizada, a regulação é importante”, avalia.

No entender do autor da tese, o processo de flexibilização das relações de emprego está em curso e não se vê no Brasil, pelo menos no momento, um contra-movimento. “Ao contrário, o que vimos é uma assídua pressão pela reforma trabalhista, cujas propostas são ainda mais prejudiciais aos trabalhadores”. Um exemplo dessa pressão é a Emenda 3, contida no projeto de lei que criou recentemente a Super-Receita. Esta previa que as empresas que contratam pessoas jurídicas para a prestação de serviços estariam dispensadas da fiscalização trabalhista. Embora aprovada pelo Congresso, a proposta foi vetada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Se essa medida passasse, ela abriria a porteira para que outras formas de contratação também deixassem de ser fiscalizadas”, afirma Dari, que foi orientado pelo professor Carlos Alonso Barbosa de Oliveira.

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