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O novo mundo do trabalho
O trabalho no novo mundo
ÁLVARO KASSAB

O professor Marcio Pochmann: “Temos uma base de qualificação da mão-de-obra que está em plena condição de participar dessa transformação tecnológica” (Fotos: Antônio Scarpinetti)Hoje, o Brasil tem uma base de pesquisa que está longe do ideal, mas é algo que nós nunca tivemos quando analisamos sob uma perspectiva histórica. Temos universidades, laboratórios e centros de pesquisas que não deixam a desejar em relação a centros do primeiro mundo. Temos uma base de qualificação da mão-de-obra que está em plena condição de participar dessa transformação tecnológica, seja o trabalhador um pesquisador ou operador.

Se olharmos algumas áreas, como por exemplo, os campos da biotecnologia, da pesquisa e de matriz energética, podemos identificar importantes oportunidades que o Brasil pode ou não aproveitar. Temos hoje uma chance que não tivemos no passado.

Entretanto, Celso Furtado sempre lembrava que o Brasil é o país das oportunidades perdidas... Estamos completando 22 anos de democracia e não há em quem colocar a responsabilidade. Não temos mais o regime militar, o anacronismo do trabalho escravo, o colonialismo. O negócio agora depende do povo, de sua elite, para que seja dado o salto de qualidade, como outros países aliás vêm fazendo.

É constrangedor saber que, em duas décadas de democracia, o país continuou marcando passo. A democracia apresentou um conjunto de proposições que não foram cumpridas. Perdemos posições em relação a muitos países que conseguiram avançar de forma significativa.

Ricardo Antunes - O Brasil seguiu o caminho mais trágico. Nós nascemos como apêndice do mundo mercantil europeu. Os portugueses e os espanhóis vieram para a América Latina, destruíram as comunidades indígenas, introduziram o trabalho escravo e criaram colônias de exploração, processo que avançou por vários séculos.

Foi com o getulismo, a partir de 1930, por meio de um processo complexo, que o Brasil começou a estruturar com um desenho industrial nacional. Começou a ser gestada uma indústria de base, com siderurgia, petroquímica etc. O papel do Estado foi importante nesse processo. Desenhou-se pela primeira vez uma sociedade denominada “nacional-desenvolvimentista”.

Com o golpe de 64, houve uma segunda mutação importante. A primeira ocorreu com Juscelino, que de certo modo preservou o modelo desenvolvimentista, mas abriu uma cunha internacionalizadora muito grande com a indústria automobilística. A ditadura militar investiu no destrutivo, ampliando fortemente a inserção do capital privado internacional, sem fazer definhar o setor produtivo estatal.

Com Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e a continuidade do governo Lula, o setor produtivo estatal foi desestruturado. A Companhia Siderúrgica Nacional, por exemplo, é hoje uma grande transnacional, uma das maiores do mundo. Ela foi vendida como moeda podre, como o foi em grande medida as empresas privatizadas fundamentalmente sob o governo Fernando Henrique Cardoso. O Brasil, a partir dos anos 90, inseriu-se no mundo produtivo global pelo pior caminho – sendo uma espécie de fornecedor em algumas áreas industriais e de serviços relevantes. Somos um continente imenso marcado por uma industrialização relativamente tardia, com um mundo rural bastante desestruturado. Nós não tivemos uma reforma agrária que modernizasse a estrutura rural brasileira. Nossa modernização agrária veio pela via conservadora, preservando a estrutura concentrada da terra.

Quando o neoliberalismo e a reestruturação produtiva – duas peças do mesmo complexo – aqui foram implantados, fez-se o desastre. A reestruturação alterou profundamente o mundo da materialidade – empresa enxuta, concentração, oligopolização, monopolização, sob o comando da financeirização. Já o neoliberalismo criou esse ideário e pragmática de que era preciso privatizar e “modernizar”. Privatizou-se tudo. Até o setor bancário, que era estatal e nacional, hoje é menos estatal e muito menos nacional.

Então nós nos inserimos como uma ponta do cenário internacional. O que eles esperam da gente? Em certo sentido, o que se passa agora com o agrobusiness é a expressão. É quase que uma regressão neocolonial. Imagine o país incendiando canaviais...O que o senhor Luiz Inácio Lula da Silva apagou muito rápido da sua memória é que nos canaviais laboram homens, mulheres e crianças em condições indignas de semi-escravidão. Sabemos que os trabalhadores cortam 12 toneladas por dia ou mais, aqui no Sudeste, freqüentemente burladas e fraudadas pelos usineiros. São 9 mil, 10 mil podadas por dia, que levam ao destroçamento do corpo laborativo.

Vamos fazer do Brasil um país de canaviais. Para quê? Para aumentar o aquecimento global e o assalariamento mais primitivo da classe trabalhadora? Esse tem sido o caminho de nossa inserção no mundo global. E, nessa via, a lógica é destrutiva.

Depois desse desmonte, é evidente que as condições de penúria da classe trabalhadora são imensas. Bastaria dizer que temos hoje mais de 50% dos trabalhadores na informalidade e os capitais querem mais. Sem contar que na concorrência chinesa e indiana no setor têxtil, de calçados e em tantas outras áreas, nós estamos em condições desfavoráveis.

JU – O Estado vem tendo seu papel reduzido, quando não questionado. Conquistas históricas são colocadas à prova ou suprimidas – sobretudo na área do bem-estar social – sob o pretexto da criação de novos postos ou, em última instância, de uma “flexibilização” de regras que vigoraram durante décadas. A que o senhor atribui essa reestruturação produtiva e em que medida ela determina a supremacia do mercado sobre o Estado?

Marcio Pochmann – Estamos submetidos a uma cegueira situacional. O Brasil abandonou a perspectiva do planejamento estratégico e o diálogo com o futuro, ficando prisioneiro do curtíssimo prazo. Isso nos impõe à lógica de financeirização da riqueza e, por conseqüência, a dualidade da flexibilização rumo à precarização ou ao desemprego.

É claro que se a análise for feita sob o ponto de vista histórico, a Revolução de 30, por exemplo, representou uma frente política que tinha uma diversidade ideológica – de visões fascistas a comunistas. Mas havia o consenso de que se tratava de um grupo, a despeito das diferenças, que buscava uma sociedade muito diferente daquela na qual encontrava-se o Brasil no período. Nosso ponto de partida, então, deu-se numa sociedade muito anacrônica.

Em um período relativamente curto, de três a quatro décadas, a sociedade brasileira deu um salto muito grande e modernizou-se. De 1930 a 1980, constituiu-se uma classe trabalhadora pujante. Consolidamos uma classe média assalariada relevante, a despeito das desigualdades e de não termos feito muitas das reformas executadas pelos países capitalistas civilizados, entre as quais a agrária e a tributária. Não fundamos também as bases de um sólido Estado de bem-estar social.

No período mais recente, aceitamos uma posição inferior. Estamos acomodados à subordinação nessa nova divisão do trabalho. Ela coloca, de um lado, o trabalho de concepção, criativo, relacionado às novas tecnologias – o trabalho imaterial, de maior remuneração – e, de outro, o trabalho de execução, mais simplificado, precarizado, de menor remuneração. Frente a essa nova divisão, cada país vai fazendo sua escolha. Assim como o Brasil decidiu se industrializar nos anos 30. Era esse o caminho que viabilizava a consolidação de uma classe trabalhadora, de uma classe média, de uma sociedade mais moderna.

Hoje, de uma certa maneira, o país se encaminha para uma situação mais próxima do trabalho precário. Não estamos dando um salto de qualidade. Não estamos ingressando nessa fase de trabalho de concepção, de combinar tecnologias com investimentos, bens públicos com privados. Isso nos permitiria desenvolver o trabalho criativo e imaterial. Será ele que nos fará ter melhor remuneração e maior ganho de produtividade.

Ricardo Antunes – A competitividade global de hoje nasceu sob a égide da reestruturação produtiva e do neoliberalismo. Hayek, Friedman e outros diziam muito claramente que o Estado é o caminho da servidão. E qual o caminho da libertação, para esses ideólogos? O mercado.

E, para eles, quem são os inimigos do mercado? Os sindicatos, a “corporação do trabalho”, como eles diziam. Nesse ideário, o Estado deve ser profundamente alterado, deve-se instaurar um estado todo privatizado. Ele deve abandonar toda a sua atividade que prevê – e provê – educação pública, previdências, direitos, rede de proteção social do trabalho etc. Prega a transferência para o setor privado de tudo o que for passível de interesses mercantis. Estamos numa época em que até as cadeias são administradas pelas empresas. Nos Estados Unidos, isso já é uma tendência – é possível tirar lucro do cárcere, dos hospitais, das escolas. Educação hoje é um negócio. A escola não é mais concebida como um valor decisivo para a educação da humanidade.

Não concordo com essa tese de que o papel do Estado desapareceu. O que aconteceu é que o Estado se privatizou. De tal modo que o imperativo crucial nos dias de hoje é desprivatizar o Estado. Um exemplo cabal disso é que os Estados hoje convivem com banco centrais que controlam, por uma lógica exclusivamente financial e privatista, as políticas econômicas e monetárias.

JU – Num país onde são muitas as carências como é o caso do Brasil, o que cabe ao Estado? Em que medida a formulação de políticas públicas pode atenuar um quadro que combina informalidade, precarização da mão-de-obra, fuga de cérebros, forte desregulamentação e explosão do desemprego em áreas metropolitanas? O que pode ser feito?

Marcio Pochmann – Não é possível dar um passo rumo à modernidade sem que o Estado esteja presente. Precisamos resgatar a agenda que o movimento de redemocratização nacional apresentou ao país a partir dos anos 1970 e no início da década de 1980. A tese da reforma do Estado foi basicamente apropriada pelo pensamento conservador. Exemplo: quando se fala nela, o que se imagina é a sua redução – fala-se em corte de gastos, Estado inchado, incompetente, coisas desse tipo.

É fundamental ter um Estado com capacidade de lidar com as questões da “velha pobreza”, associando-as às novas questões colocadas hoje. É preciso implementar uma reforma administrativa que dê conta dessa nova realidade. O Brasil, nos últimos 25 anos, perdeu 2,5 milhões funcionários públicos. Quinhentos mil deles foram engolidos pela privatização – houve a transferência de 15% do setor produtivo estatal para o setor privado. Cerca de dois milhões de postos desapareceram em razão da terceirização e da racionalização privatista do setor público.

Hoje, o Brasil tem uma incapacidade enorme de implementar um planejamento. A situação do Estado de São Paulo é emblemática. Basta ver o que acontece com empresas como o Metrô, por exemplo, que já foi referência em engenharia na América Latina. O problema da cratera demonstrou justamente a perda de eficácia da empresa – não havia sequer um engenheiro para fazer um laudo técnico.

Houve, inegavelmente, uma degradação do Estado brasileiro, do seu corpo de funcionários. Se o país quiser ter uma regulação pública adequada, se quisermos ter capacidade de planejamento, o Estado tem de ser recuperado. É preciso estar atento – e atuante – aos desafios do século XXI.

O movimento de redemocratização nacional chamava a atenção para o fato de que o governo da ditadura militar já havia privatizado o espaço público. Essa é uma questão que merece ser destacada. A sociedade brasileira, até o início dos anos 1960, tinha um espaço público que hoje está muito reduzido. Ele foi apropriado pelo privado. A sociabilidade está sendo construída dentro dele. A começar pelo shopping center, que hoje é onde as pessoas podem caminhar com uma certa segurança. Entretanto, na década de 1960 a população tinha a opção do passeio, da praça pública. As pessoas caminhavam, andavam nas ruas. Nós perdemos essa característica. Parte dessa distorção é decorrente da ditadura militar, cujo período foi marcado pela privatização do Estado.

A redemocratização nacional não conseguiu recuperar isso. Acredito até que houve um avanço muito grande da ideologia mercantil. Isso cria uma crise de reprodução social. Estamos convivendo hoje com ela. Não conseguimos dar uma resposta que se imaginava e se pretendia. Fico muito preocupado – o país não tem cultura democrática. Em mais de 500 anos de história, não temos 50 anos com democracia com voto universal. Trata-se de uma questão de fundo. Ela está colocada como desafio para todas as gerações que vivem este momento e para aquelas que estão por vir.

Ricardo Antunes – Aquela idéia de que podemos voltar ao Estado keynesiano, forte e regulado, passou a ser parte da história. Se nos países escandinavos, na Alemanha e na Inglaterra, para ficar em alguns exemplos, isso sofreu um processo de corrosão, no Brasil, que sempre teve pouca tradição, foi pior. O capitalismo conseguiu sepultar essa tese nas última três décadas.

Isso coloca uma questão mais profunda. Há dois modos de fazer políticas públicas sociais hoje. Dentro do neoliberalismo ou, na melhor das hipóteses, dentro do social-liberalismo, que tanto encantou Tony Blair e outros. Neste último caso, é uma mescla de neoliberalismo com um verniz socialdemocrático bastante desgastado.

Essa política mais focada serve apenas para atenuar os problemas de bolsões onde a desintegração e o esgarçamento do tecido social chegaram a um nível insuportável. O Bolsa-Família é um exemplo dessa política. Atinge aqueles que estão nos bolsões do desemprego e da informalidade e precisam de um quantum para poder sair do nível letal.

Entretanto, seria possível também pensar em políticas públicas antineoliberais. São Estados dotados de força e densidade social e popular que utilizam a força política em benefício das maiorias, ainda que sob a uma forma minimizadora da barbárie. O que a imprensa e setores da intelectualidade chamam freqüentemente de “populismo” na América Latina (na minha opinião, uma categorização absolutamente insuficiente).

Por exemplo: quando o governo Chávez, no início de seu primeiro mandato, obstruiu a privatização da estatal petrolífera venezuelana, impedindo que a grande riqueza do país, que é o petróleo, caísse nas mãos de uma oligarquia e dos interesses norte-americanos, isso é uma política pública claramente antineoliberal. Por isso a imprensa em geral, que é privatista em grande medida, apresenta Chávez como uma figura grotesca. Já Lula vergou-se facilmente aos grandes interesses.

Quando Evo Morales decidiu nacionalizar o gás, houve uma grita no Brasil. Era o mínimo que ele podia fazer, até porque a maioria do povo boliviano, que o escolheu, clamava por isso. Eles queriam a nacionalização. Quando Morales implementou a medida, encontrou na Petrobras uma transnacional como qualquer outra. A empresa estava ávida de saques. Sua pauta era a mesma de outras transnacionais.

Com isso, quero deixar claro que não é qualquer política que pode contraditar. É preciso um Estado que tenha alto respaldo popular. Do contrário, o Estado pode tomar como políticas públicas essas medidas focalizadas, implementadas apenas para minimizar os bolsões, que tanto agradam o Banco Mundial e o FMI. Na verdade, o desafio dos governos venezuelano, boliviano e equatoriano, para ficar em três experiências recentes, não é minimizar os bolsões, mas sim resgatar a dignidade, as condições de vida e a riqueza de seus países em beneficio dos seus povos.

O Estado é um ente político que, sob pressão popular, pode ajudar a contraditar essas tendências tidas como inevitáveis, mas não o são. Se elas fossem inevitáveis, a política estaria completamente colonizada e desertificada, e o mercado dominaria tudo. Mas é preciso compreender as múltiplas formas de resistência, que ocorrem onde há força e impulsão popular.

Vejamos a questão da flexibilização. Nós vamos flexibilizar para tornar a nossa classe trabalhadora mais empobrecida e mais fragilizada, ou nós vamos dizer que o nível de exploração tem limite? A política pública neoliberal vai dizer que precisa flexibilizar para gerar mais emprego. Pura mistificação. Até porque o que gera emprego é outra coisa. Como as tecnologias são poupadoras de força de trabalho, pode haver muito crescimento sem o equivalente crescimento do nível de emprego.

JU – Fala-se, também, que o grosso da mão-de-obra do país está empregado em funções cujos produtos delas decorrentes têm baixo valor agregado e, portanto, não são competitivos num mercado cada vez exigente. Critica-se da mesma forma o fato de investirmos pouco em inovação tecnológica. Afinal, qual é a vocação do país?

Marcio Pochmann –Estamos diante de uma agenda que nos apequenou. Não há um planejamento que indique qual a sociedade que pretendemos ter daqui a duas décadas. Quando, por exemplo, fica estabelecida em 1943 a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), vê-se que ela foi feita basicamente para um conjunto reduzido de trabalhadores. A maior parte deles morava no campo e a carteira de trabalho era algo muito distante. Entretanto, três décadas depois, já estamos falando de uma sociedade majoritariamente assalariada e com carteira assinada. Ou seja, houve a construção de um ideal de uma sociedade, dentro de uma visão de futuro. Perdemos isso atualmente.

Determinadas oportunidades vêm nos empurrando para uma sociedade mais primitiva. Vejo, com espanto, as declarações de lideranças políticas e empresariais, que estão impressionados com o que eles denominam de novo ciclo da cana-de-açúcar, já que o país é um dos poucos que tem capacidade de dobrar a área plantada. Trata-se de um ufanismo invertido. O Estado de São Paulo, cuja vocação é industrial, é responsável por 70% da cana no país. Isso é uma distorção. Estamos voltando à condição de produtores de bens primários.

Essa opção nos tira a possibilidade de aproveitar o melhor que a mudança de base técnica nos oferece. E isso precisa ser feito antes que surja um forte movimento de monopolização. Em 1890, por exemplo, na transição do Império para a República, Rui Barbosa – um industrialista – estava muito envolvido na tentativa de formar um partido republicano que pudesse ter como convergência nacional a industrialização. Ele não foi capaz de constituir esse movimento. Qual foi a alternativa criada? A política de “café com leite”, movimento dos governadores que enfraqueceu o Estado nacional e fortaleceu as oligarquias.

Se o Brasil tivesse se industrializado no final do século XIX, como o Japão o fez, quando a tecnologia ainda não estava monopolizada, a história seria outra. Havia, por exemplo, várias possibilidades de construção de automóvel. Porém, já início do século XX, a tecnologia já estava monopolizada pelo padrão fordista.

Se consideramos que hoje uma nova base técnica está sendo introduzida, apropriar-se das tecnologias produzidas por ela para integrar-se no sistema produtivo é relativamente mais fácil, já que elas ainda não estão monopolizadas. Mas, o debate na Organização Mundial do Comércio hoje já está centrado na propriedade intelectual. Evidentemente que, daqui a alguns anos ou décadas, as novas tecnologias estarão monopolizadas. Seu uso se tornará mais difícil e será subordinado aos interesses daqueles que as detêm.

Ricardo Antunes –A vocação que nos ensinaram a ter é aquela que nasceu com a nossa gênese colonial. Nosso papel é servir para fora. É evidente, porém, que esse papel nos foi introduzido inicialmente pelas burguesias mercantis que para cá vieram. Depois, outras se sucederam.

O nosso desafio é caminhar numa direção muito diferente. Nós temos um mercado interno imenso. Nossa força de trabalho chega a 80 milhões de pessoas. Temos terra e riquezas minerais, água etc. Não podemos colocar esse manancial a serviço do saque dos capitais globais. Nós teríamos de ter uma vocação por meio da qual a nossa produção contemplasse primeiramente as necessidades fundamentais do nosso povo.

Posso exemplificar com essa pergunta: produzir etanol ou produzir alimentos para a população? O mercado interno formado pelo mundo do trabalho no Brasil, uma vez qualificado, fortalecido e dignamente remunerado, seria propulsor dessas necessidades úteis e vitais.

A primeira medida seria, portanto, inverter completamente esse modo de conceber a produção, desde nossa gênese voltada para a sucção forânea. Sessenta por cento da riqueza do Brasil vai para fora. Isso faz sentido? Pode-se argumentar que o país estaria remando contra a globalização. Mas é claro. Essa globalização é dos capitais, das transnacionais e da mercadorizacão do mundo.

É lógico que não é possível fazer isso isoladamente. Mas basta ver o esforço da Venezuela, Equador, Argentina e Bolívia para saber que é factível. Chávez sabe que a Venezuela sozinha não conseguirá fazer muita coisa, mesmo porque o país não tem indústria, nem serviços e nem agricultura fortes. E o que ele fez? Promoveu a criação de cooperativas para produção de alimentos. Estive recentemente duas vezes na Venezuela e vi um processo de auto-organização popular muito interessante. Volta a ser pauta da agenda de um país latino-americano a questão do socialismo no século XXI.

Nesta contextualidade, é triste ver o Brasil ser colocado como posto de ancoragem do Bush. Quer ser uma esquerda mais palatável – a esquerda da era das commodities e do etanol. Lula sonha com o papel de tertius. Trata-se de mais um sonho que nem os espelhos serão capazes de retratar. Lula não é nem Chávez nem Bush. Ele quer tirar vantagem dos dois. Ele não quer nem a direita mais dura nem a esquerda mais vigorosa.

A posição do Brasil tem sido tão pífia que quando o Kirchner, anos atrás, determinou o não-pagamento da parcela privada da dívida externa argentina, o Brasil não se dignou a fazer sequer um telefonema, nada por não desagradar o Fundo Monetário Internacional. O governo Lula renunciou a esse papel de ajudar a formar um bloco para sair do isolamento.

Como se pode falar em inovação tecnológica, quando as grandes transnacionais a fazem nos países centrais? Aceitamos esses pacotes prontos das transnacionais, não temos acesso às suas tecnologias. Seguindo o receituário neoliberal, os governos, na última década e meia, desmontaram os núcleos autônomos de pesquisa, de tal modo que hoje nós dependemos também da propriedade intelectual produzida nos países centrais. Aqui, a política dos governos é de dilapidação das universidades públicas. Elas são, junto com os institutos públicos, alguns dos setores importantes da pesquisa científica nacional mais livre e por isso vivenciam uma escassez imensa de recursos.

Temos que pensar numa inversão. Isso implica em indagar: que sociedade nós queremos? A questão é fulcral. Nós queremos 1) preservar a sociedade capitalista na sua variante destrutiva?; 2)nós imaginamos que seja possível criar um capitalismo justo, belo, onde todos vivam segundo as regras das mesmas “oportunidades” – um sonho dourado numa noite de inverno; e 3) ou nós temos de pensar num novo tipo de sociedade, num novo modo de organização societal, num novo sistema de metabolismo societal que nos coloque para além do capital?

Isso nos obriga a pensar o que será – ou poderia ser – o socialismo no século XXI. No passado recente, essa questão era vista como utópica. Hoje, entretanto, existem governos, partidos e movimentos sociais que pregam essa mudança. As reuniões de todos os fóruns sociais mostram que outro mundo é possível. Este é o desafio crucial. Não parece crível que o mundo atual seja o “fim máximo da história”. Estamos desafiados a pensar quais são esses caminhos novos.

JU – Qual o peso da política econômica na geração de empregos e no mundo do trabalho? Com o senhor analisa o caso brasileiro?

Marcio Pochmann –A política econômica é determinante. O emprego não é uma variável indeterminada, que pode ser estabelecida a partir da vontade própria. O emprego está associado diretamente ao comportamento mais geral da política econômica. É ela que define as possibilidades de maior ou menor demanda da força de trabalho.

Constatamos que, nas últimas décadas, essa política perdeu o compromisso com o crescimento econômico. Ela é basicamente a expressão de um consenso em torno do combate à inflação. Os resultados dessa opção favorecem muito poucos. Culminam numa economia de baixa produtividade em que os principais resultados do excedente terminam sendo financeirizados e apropriados por uma elite.

É inimaginável acreditar que o país possa dar um salto de qualidade com a essa política macroeconômica adotada hoje. Ela é expressão de uma agenda amesquinhada. O país não pode ter como objetivo a inflação baixa, que é um condicionante do bem-estar social. Cabe registrar que a inflação, desde a segunda metade da década de 1990, praticamente desapareceu do mundo.

Acredito que não seja um problema técnico, do tipo “o que pode ser feito na política macroeconômica?”. Já é sabido o que é preciso ser feito. A pergunta é: por que não se faz? Na minha opinião, há um constrangimento de ordem política. Não há uma nova maioria que coloque a questão do desenvolvimento econômico-social como prioridade. Não se construiu uma frente política que pudesse dar sustentação à mudança. De maneira geral, nas últimas eleições presidenciais, o voto da população tem sido de protesto. O eleitor quer reformas. Embora os discursos em geral tenham pregado mudanças, elas não têm ocorrido.

Volto à questão do movimento de redemocratização nacional. O processo dele derivado não conseguiu oferecer uma base política necessária para que fosse dado um salto de qualidade. Nós temos hoje uma fragmentação. É lógico que vários segmentos têm projetos e base política, mas eles são insuficientes e incapazes, especialmente porque essa sociedade que construímos nas últimas duas décadas é muito diferente daquela que produziu o movimento pela redemocratização. Estou falando de uma sociedade que se estruturou em torno da industrialização e da urbanização.

Hoje, observamos o desmonte dessa mesma sociedade. Constatamos o enxugamento da classe média, o esvaziamento da classe trabalhadora e um imenso inchamento de um segmento que pode ser classificado como de agregados sociais ou de “desclassados”. São segmentos inclusive que não constituem uma base política necessária para que possa ser feita uma mudança radical na política macroeconômica. Sem base política, é possível que continuemos mais tempo reféns desse quadro que, na minha opinião, é de regressão econômica e social.

Ricardo Antunes –No plano mais geral, o capitalismo vem crescendo sem gerar emprego. Isso é para não termos mais a ilusão desenvolvimentista do Estado keynesiano dos anos 40 e 50. Há um segundo plano, mais imediato, que também considero importante: como no mundo atual a lógica é agudamente destrutiva, é evidente que uma política econômica, que de algum modo contradite essas tendências, pode minimizar o desemprego. E isso é positivo, dada a amplitude do flagelo.

Se o Brasil tivesse uma política econômica que não fosse totalmente pautada nos juros altos, no superávit primário e nessas medidas que marcam esse receituário que vem desde o Consenso de Washington, é óbvio que ela teria repercussão no plano do emprego.

A Argentina, que seguiu isso ao pé da letra, especialmente no governo Menen, desindustrializou-se brutalmente. O país foi destroçado. Muito moderadamente, dentro da ordem, Kirchner não seguiu alguns dos receituários. Diziam que a Argentina ia entrar em falência, mas hoje ela está crescendo 9% ao ano.

Os capitais querem as condições ideais, mas eles querem também o saque. Quando eles não têm as condições ideais, ainda assim continuam saqueando. Quando mais gendarmes forem os governos, melhores são as condições para essa sucção. Soros dizia antes das eleições de 2002 que Lula poderia trazer problemas para o mercado. Recentemente, ele disse ao jornal Valor Econômico que Lula era um fiador do mercado. É a gestação do gendarme.

Uma política econômica que fizesse uma reforma agrária e quebrasse o monopólio do latifúndio teria uma repercussão enorme na política de emprego no Brasil. Um governo que aumentasse significativamente o salário mínimo, de modo que a classe trabalhadora pudesse consumir, também teria forte impacto social.

Num dado momento, a comparação com o passado é importante para ver os níveis de degradação e de piora a que chegamos. O salário mínimo (concebido desde o getulismo e que está até hoje na Constituição de 1988) – prevê que a remuneração suprisse as necessidades do trabalhador e de sua família –incluindo saúde, educação, lazer e alimentação, segundo o Dieese, algo acima de R$ 1,6 mil. Lula está feliz porque o salário mínimo vai aumentar para R$ 380. E a locação de um cômodo numa grande favela brasileira nas cidades brasileiras custa entre R$ 150 e R$ 200...

É preciso uma política que reduza a jornada de trabalho. Não estou dizendo que a medida vai eliminar o desemprego, mas certamente irá minimizá-lo. Nós podemos ter políticas ousadas para minorar as condições trágicas em que vive nossa classe trabalhadora desempregada. Essas políticas seriam geradoras de emprego na medida em que contraditassem essa ordem.

Isso só pode ser feito onde há um governo eleito por força popular ou respaldado em lutas sociais que lhe dão densidade política. Quando foi eleito em 2002, Lula deveria ter anunciado ao FMI que não daria mais para fazer o que Collor e Fernando Henrique fizeram. E o que aconteceu? Ele fez mais do que eles fizeram... É por isso que Bush, FMI e o setor financeiro gostam de Lula e rejeitam Chávez e Morales.

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