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Do ufanismo invertido
ao
círculo perverso
ÁLVARO KASSAB

O professor Marcio Pochmann: “Temos uma base de qualificação da mão-de-obra que está em plena condição de participar dessa transformação tecnológica” (Fotos: Antônio Scarpinetti)JU – Qual o papel do sindicalismo nessa nova realidade?

Marcio Pochmann – Se olharmos para países latino-americanos, asiáticos e até mesmo africanos, percebemos que houve uma destruição da instituição sindical. Algumas instituições multilaterais, como o próprio Banco Mundial, acreditam que se encerrou a fase de sindicatos. Segundo esses organismos, estaríamos caminhando para a fase de organismos não-governamentais. Assim como tem ONG que cuida de índios e de crianças, temos ONGs que representam segmentos de trabalhadores.

 No caso do Brasil, verificamos que a instituição sindicato é sólida. Vários deles estão comemorando 70 anos de existência, o que não é pouca coisa num país que não tem a cultura de instituições consolidadas. O sindicalismo, bem ou mal, se mantém como instituição. No Brasil, existem cerca de 40 mil dirigentes sindicais liberados, que representam uma máquina que administra alguma coisa entre 1,5% e 2% do PIB. Numa sociedade com baixo grau de organização, temos um poder de barganha sindical que não é desprezível.

Ocorre que esse sindicalismo também sofre as conseqüências de mais de duas décadas e meia de semi-estagnação econômica. Ademais, conviveu com uma profunda reestruturação produtiva quase selvagem e com a ausência de democracia no ambiente de trabalho. De certa maneira, a liderança sindical jovem que está sendo conformada vem se descolando da base. Temos então um movimento sindical mais enfraquecido. Ele é fruto do momento difícil pelo qual estamos passando.

Ricardo Antunes –Essas mudanças intensas que ocorreram nessas últimas três décadas afetaram muito o mundo do trabalho e os organismos de representação trabalhista. Venho chamando isso de nova morfologia do trabalho. É preciso conceber empírica e teoricamente essa mudanças.

Muitos disseram, nos anos 1980/90, que o sindicalismo havia entrado numa crise terminal. Eu não compartilhei dessa opinião. Acho que os sindicatos vivem uma crise profunda, mas que não é terminal. Ela é derivada dos modelos vigentes.

No século XX, com a indústria de massa e a verticalização das empresas, nasceram os sindicatos fortes. O Sindicato dos Metalúrgicos do ABC nos anos 1980 representava uma base de 240 mil trabalhadores. Muitos diziam que talvez fosse o cinturão industrial mais importante do mundo capitalista à época.

No final dos anos 1980, isso entrou em convulsão com o nascimento da empresa flexível e enxuta. Os sindicatos hoje não podem mais ter a feição que tinham no século passado. Este é o primeiro desafio. A indústria era vertical e o sindicato, idem. Hoje, uma indústria que se horizontalizou e se estrutura em rede fratura a classe trabalhadora em centenas de unidades espalhadas pelo mundo, e não mais em uma fábrica com operários concentrados. Como um organismo sindical resgata o sentido de pertencimento de classe de uma categoria que, em alguns setores, se pulverizou muito e em outras se individualizou? Esse é um desafio premente.

O sindicalismo vertical, burocratizado e institucionalizado, como a CUT abraçou nos últimos anos, está fadado ao insucesso. Ela vai desaparecer? Não. A CUT tem apoio, tem recursos, depende do Estado. É uma espécie de variante neopeleguista em tempos de social-liberalismo...

O que é ser um sindicalismo contemporâneo? Ele precisa compreender a classe trabalhadora e sua nova morfologia. Hoje, ela é tanto feminina como masculina, reúne muitos jovens, conta com pessoas de 35 anos que são consideradas velhas e tem feição étnico-racial diferenciada. Participei há pouco tempo de uma atividade num sindicato espanhol, chamado Confederação Intersindical Galega, na região da Galícia, e houve uma assembléia para os imigrantes latino-americanos, ou seja, não havia aquela tendência xenofóbica presente em vários setores do sindicalismo dos países do Norte.

Está aberto o exercício de pensar em alternativas novas. O que estamos presenciando é a crise profunda de um sindicalismo que envelheceu no século XX. O rejuvenescimento só será possível se ele lutar contra a ordem. Até porque, como disse no início, o trabalho não desapareceu, mas é preciso compreender a nova morfologia do trabalho, que é multifacetada.

Volto ao exemplo do telemarketing. Como disse, trata-se de uma categoria com forte nível de feminização do trabalho. Um sindicato masculino, herdeiro da era taylorista-fordista, é incapaz de compreender esse traço novo. Várias empresas recrutam trabalhadores muito jovens e solteiros. Como que o sindicato faz para mostrar a um jovem de 20 anos que o sindicato é sua casa, e não a empresa? O sindicato precisa desmontar essa construção e dizer: a empresa é o seu trabalho, mas os donos são outros.

Esses são alguns dos desafios colocados. Nesse sentido, não sou pessimista. As forças sociais do trabalho ainda precisam dessa ferramenta - o sindicato - mas não devem ter a ilusão de que ela é a única. Na Argentina, por exemplo, nasceram muitos núcleos dentro dos chamados movimentos sociais dos trabalhadores desempregados, os “piqueteros”, as fábricas “recuperadas”, ocupadas pelos trabalhadores. São várias as formas de resistência. Por outro lado, são muitas as ferramentas que precisam ser adaptadas às condições atuais.

JU – O marxismo e outras correntes clássicas do pensamento serviram de referencial analítico para o estudo de praticamente todas as transformações e fenômenos registrados no mundo do trabalho no período compreendido entre os finais dos séculos XIX e XX. Essas matrizes teóricas dão conta de explicar hoje essas transformações?

Marcio Pochmann – Não podemos entender o presente como não sendo resultado do passado. Não tenho dúvida de que essa contribuição do pensamento heterodoxo, que vem do século XIX, continua sendo importante e atual para entender o momento presente como um processo histórico. Sem esse entendimento, ficamos com uma visão limitada que inexoravelmente nos leva para uma ação de curtíssimo prazo.

Trata-se de uma contribuição inegável. Entretanto, precisamos entender que a sociedade e o próprio capitalismo são muito dinâmicos. As ferramentas do passado nos servem, mas temos de buscar complementações para termos uma visão atual. É preciso evidentemente que os reformadores e os pensadores sejam contemporâneos dessas transformações.

Ricardo Antunes – Nos últimos três séculos, as ciências sociais operaram com paradigmas – o marxista, o positivista, o funcionalista etc. A própria denominação paradigma é considerada como uma dimensão modelar para explicar uma dada realidade. E assim fomos, cada qual com seu paradigma. Acho essa concepção, em particular nas ciências humanas, um profundo equívoco.

Portanto, não leio o marxismo como um paradigma. Essa coisa de encaixar o modelo dentro da realidade remete à uma tradição epistemologizante do marxismo que é muito distinto, na minha opinião, do rico percurso analítico de Marx. Portanto, não leio o marxismo como paradigma. Eu penso, nesse sentido, que a aquisição original e excepcional de Marx é outra. Ele não tinha um paradigma. Ele dizia: “Eu parto do mundo e tento explicá-lo”. E o meu método será fértil se eu explicar o mundo real. Se eu não explicar o mundo real de modo autêntico e verdadeiro, o meu caminho metodológico está fadado ao fracasso. Por isso é necessário falar no percurso ontológico de Marx.

É surpreendente que ele não tenha nenhum livro em que comece com “questões de método”. Tem vitalidade hoje o pensamento que mergulha no real e o compreende como ele é. É preciso inverter, nas ciências humanas, essa leitura dada pela prevalência paradigmática.

Se eu quero estudar o capitalismo hoje, preciso estudar como ele é. Agora, se você perguntar qual dos autores nodais do mundo contemporâneo mais fertilizou, mais profundamente analisou o mundo real e deixou pistas conceituais e analíticas no mundo real, eu diria que foi Marx. Mas não recorrendo ao que ele escreveu no século XIX e “encaixando” a realidade nisso, para validar o paradigma. Marx ficaria nervoso na sua tumba... Numa brincadeira, em forma de diálogo, com suas filhas, ele disse que seu lema de vida era “duvidar de tudo”. Algo que não combina com modelos ou paradigmas.

Assim concebido, o percurso marxiano de desvendar o real é excepcionalmente forte. Ele diz em um de seus textos primeiros: “o ente é um ente ou um não-ente; o ser é um ser ou é um não-ser”. Eu tenho que entender quem é esse ser que estou a estudar. E, para entendê-lo, é evidente que a construção marxiana é rica. Do mesmo modo, mesmo acolhendo o percurso ontológico de Marx, se eu for estudar o mundo burocrático hoje, me parece imprescindíveis as indicações de Weber.

Se você perguntar: qual o percurso, então, o que nos ensinou Marx ou o que nos ensinou Weber? Aí eu acho uma pergunta legítima. Mas apenas para determinar o percurso que me ajuda compreender o real, e não para encaixá-lo dentro dele. E esse percurso, no meu entender, faz com que Marx não seja um autor nem do século XIX nem do século XX. Enquanto vigir a lógica do capital, a vasta obra marxiana é imprescindível para ajudar na compreensão no capitalismo dos nossos dias.

JU – Nesse contexto, emergiram novos fenômenos de dimensões transnacionais, entre os quais o desemprego em escala mundial – que coloca sobre a mesa problemas que vão desde fenômenos provocados pela imigração até aqueles gerados por distorções dele derivados (violência etc) –, até a discussão sobre a urgência da adoção de medidas que atenuem os efeitos de problemas ambientais, neste último caso em grande medida provocado por meios de produção predatórios. Qual é, na opinião do senhor, a contribuição que a academia pode dar? Ela vem decifrando as transformações? É possível que dessa discussão surjam paradigmas?

Marcio Pochmann –A universidade, de maneira geral, está aberta para a contemporaneidade, muito embora ela também sofra os efeitos de uma realidade em transformação. Acredito até que ela perdeu um pouco daquela unidade que tinha na formação do pensamento. A universidade hoje é uma reprodução de especialidades, que é algo quase inevitável numa sociedade tão complexa. No entanto, a formação de especialistas faz com se saiba cada vez mais de menos coisas. Trata-se de um problema sério e que precisa ser enfrentado decisivamente.

A universidade se ressente da condição de formar quadros que tenham uma visão do todo e não apenas de parte. Essa incapacidade inclusive se reproduz na própria formação. Ela pode tratar, por exemplo, de uma nova pobreza que tem uma totalidade do ponto de vista da saúde, da educação e da habitação, mas estamos formando profissionais com visões muito especializadas em cada uma de suas áreas. Vejo isso como o primeiro desafio.

O segundo é o papel a ser desempenhado pela universidade na construção da nova sociabilidade. Estamos numa sociedade em que a educação passa a ser um elemento obrigatório ao longo de toda a vida. Não é mais uma coisa que está situada tão-somente na categoria de algo que antecipa o exercício do trabalho, concentrada fundamentalmente no segmento infanto-juvenil. Na sociedade do século XX, a educação era dirigida, com as exceções de sempre, para alguém até no máximo 25 anos de idade. Havia uma percepção da educação como valor utilitário – o da educação para o trabalho.

Nessa nova sociedade, que já tem uma família totalmente desfigurada, o que pode construir as bases da nova sociabilidade? Talvez, uma educação que tenha uma atuação transformadora, vinculada ao indivíduo ao longo de toda a sua vida. Certamente ela será diferente daquela que nós temos hoje. Cabe à universidade, e ao sistema educacional como um todo, enfrentar esse desafio.

Ricardo Antunes – Nós vivemos uma época de obliteração da razão. Quando se tem Paulo Coelho como literatura dominante em escala global, a razão bushiana como sendo quase como inevitável, constata-se que o cenário é muito difícil. O pensamento e a razão sofreram uma hecatombe.

A época da Revolução Russa herdou uma fase áurea do que se chamava social-democracia européia, que se inicia com Marx, Engels, e contou anteriormente na França com os socialistas utópicos, além dos economistas clássicos.

Esse pensamento ocidental de envergadura desemboca em 1910 num país como a Rússia que, por uma circunstância muito particular, tinha intelectuais do peso de um Lênin, de um Trotsky. Tínhamos também, em outros países, Rosa Luxemburgo, Lukács e Gramsci, para citar apenas alguns.

Curiosamente eles não foram acadêmicos, embora muitos deles tenham se formado na universidade. E os partidos floresciam como centros do pensamento vivo. Esse experimento desertificou-se, exauriu-se, quer pela stanilização dos partidos, que foi muito profunda, quer pela dogmática dentro deles. Para não falar da desertificação socialdemocrática.

No Brasil, por exemplo, um autor da envergadura de um Caio Prado Júnior, que era do Partido Comunista, nunca conseguiu ver suas teorias assumidas pelo partido ao qual era filiado, porque contraditavam um certo esquematismo que predominava no comunismo oficial.

Foi nesse contexto que as universidades públicas tornaram-se espaços de reserva para um pensamento científico criativo. É claro que meu olhar está muito voltado para as ciências humanas. Eu não seria a pessoa indicada para falar de outras áreas do conhecimento.

Quando os partidos se obliteraram e se enrijeceram, as universidades passaram a se colocar como pólo do pensamento crítico. No Brasil, além de Caio Prado tivemos intelectuais como Florestan Fernandes. Muitos intelectuais, dos melhores pensadores críticos do mundo contemporâneo, nasceram na universidade. Lukács, por exemplo, era professor na Universidade de Budapeste e sempre teve fortes vínculos com o PC húngaro. O intelectual Antonio Gramsci era membro do PC italiano.

Com o desmoronamento do pensamento crítico nos partidos, de certo modo as universidades foram centros receptadores desses valores culturais e científicos. O problema é que elas foram muito abaladas com as mutações das últimas três décadas. Houve a ânsia da privatização, a necessidade de tornaram-se dependentes do mercado, a escassez de verbas. O mercado entrou na universidade e pautou os temários de pesquisa. Tudo isso acentuou um fosso que fez com ela fosse empurrada para uma espécie de universidade da razão instrumental.

Portanto, eu vou com cuidado nessa questão. Se eu disser que a universidade está fora do mundo real, aí não nos resta mais nada. Fora da universidade, por exemplo, muitas pesquisas não encontrariam espaço. Não encontrariam respaldo nos partidos, porque eles não têm mais aquela tradição de investigação e, por razões evidentes, não encontraria espaço nas empresas, onde floresce o “admirável mundo da universidade corporativa”, uma verdadeira contradição em termos.

Estão se formando muitas universidades corporativas, porque o mundo dominante é lócus da razão instrumental. O desafio é resgatar o papel público e científico da universidade, esse espaço laico, plural, fora de qualquer controle político. É imperativo impedir que o mercado se apodere e passe a pautar de vez o mundo acadêmico.

O que a academia pode dar? Muito, mas para isso é preciso preservar seu vínculo público e de defesa do rigor científico, contra quaisquer interesses, que não sejam as reais necessidades humanas e sociais. É possível que dessas reflexões nasçam pesquisas novas? Eu diria que de todas que nós conhecemos hoje, a quase totalidade vem do espaço público. Nas grandes universidades e centros de pesquisas brasileiros, desde o Iseb dos anos 1950, gestaram-se vários projetos para o país. Nós teríamos que pensar numa universidade do século XXI que não fosse um apêndice do mercado. Trata-se de uma questão vital. Se a nossa lógica tornar-se a do mercado e se a nossa visão de ciência passar a ter uma agenda pautada por ele, estamos perdidos. O nosso mestre Octavio Ianni dizia: mercado não rima com humanidade, mas universidade rima com humanidade.

Por isso é imprescindível a luta contra a privatização da universidade. Por isso, os mercados têm desprezo pela universidade pública. Ela não pode ser o espaço da razão instrumental. Ela deve ser o espaço da razão emancipatória.

JU – O emprego, tal qual o conhecemos, tem futuro?

Marcio Pochmann – Tenho uma visão muito otimista sobre o futuro do trabalho, ao contrário de toda uma literatura que explora a identificação mais negativa. As possibilidades técnicas são muitas. Se olharmos do ponto de vista da conjuntura internacional, particularmente nos países desenvolvidos, não há o enorme desemprego estrutural de que se fala. Dizem que o assalariamento está com os dias contados. Não é verdade. O assalariamento continua dominando o emprego nos países desenvolvidos. Temos até redução do desemprego em algumas dessas nações.

Acredito que esse quadro vai mudar, assim como mudou no segundo pós-guerra, período em que foi criada uma situação de maior segurança do trabalho. Ela se deveu justamente a um novo entendimento. Tomaram-se medidas que visaram aumentar a inatividade, que foi financiada com recursos públicos. Foi criada toda uma rede que incluía o seguro-desemprego, pensões e aposentadoria. Os governos conseguiram concomitantemente retirar pessoas do mercado e dar garantias àqueles que iam exercer o trabalho.

Acredito que uma sociedade mais civilizada tenderá a caminhar inexoravelmente para essa condição. Qual seria? Aquela que pressupõe a redução do tempo de trabalho e dá garantias àqueles que vão exercê-lo. Estamos falando de uma sociedade cuja intensificação do trabalho é brutal. Alguém pode argumentar que será criada uma sociedade de vagabundos com uma jornada de quatro horas por dia durante apenas três dias por semana. Alto lá!

Trabalhar oito horas hoje sob as novas formas de organização – com computador, Internet, celular etc – chega a ser insano. As novas ferramentas fazem com que você fique plugado 24 horas no trabalho. O empregado vai para casa, sonha com o trabalho, fica com medo de ser demitido... Essa insegurança nos coloca vinculados ao trabalho o tempo todo.

A sociedade industrial não estava preparada para conviver com essa instabilidade e com esses riscos. São desafios que precisamos enfrentar. Precisamos construir uma nova sociabilidade, que não pode continuar sendo ordenada pela disjuntiva neoliberal.

Ricardo Antunes – O emprego regulamentado, contratado, com direitos, como tendência, é mais parte do passado do que do presente, mantida a sociedade na sua lógica atual. Seria muito mais simpático dizer o contrário. É um delírio imaginar que, no capitalismo dos nossos dias, nós possamos ter uma sociedade do pleno emprego. A nossa bandeira não é mais lutar pela sociedade do pleno emprego, mas por uma outra sociedade.

O emprego que a sociedade atual nos reserva é (quase) virtual, desregulamentado, mais intensificado e mais multifuncional – você trabalha por dez. Ele oscila como um pêndulo, como eu digo no meu livro O caracol e sua concha. Cada vez menos homens e mulheres trabalham muito. No outro lado do pêndulo, na superfluidade, cada vez mais temos o trabalho precarizado e o desemprego estrutural.

Algumas questões de fundo são colocadas. Por exemplo: que sociedade nós queremos para o século XXI? É aquela destrutiva, da mercadorização dos bens materiais e imateriais, corpóreos e simbólicos? Uma sociedade em que centenas de milhões continuem vivendo com menos de dois dólares por dia?

Nós queremos uma sociedade, com vida e trabalho dotados de sentidos. Trata-se de uma grande contradição: o trabalho que estrutura o capital, desestrutura a humanidade. Como contrapartida, o trabalho para estruturar humanamente a sociedade, tem que desestruturar o capital. E não há vida dotada de sentido com trabalho desprovido de significado autônomo e auto-determinado.

Vamos preservar o capital ou exercitar o espírito crítico para auxiliar na construção de um novo modo de vida? Nós não sabemos sequer se o século XXI será longevo. Quem pode garantir isso? Não temos mais certeza de nada. Quem poderia imaginar que três aviões poderiam atingir dois símbolos do poder norte-americano – as Torres Gêmeas e o Pentágono?

O capitalismo é em si e por si destrutivo. Ele acumula destruindo força humana que trabalha; ele acumula destruindo forças produtivas que ele torna inoperantes; ele acumula destruindo o meio ambiente e a natureza. Por que Bush não aceita o acordo de Kyoto? Porque o esquema americano não tem como controlar o nível de poluição ambiental que a sua lógica destrutiva impõe. São menos de 5% da população mundial que consome mais de 25% dos recursos energéticos do planeta.

Para quebrar essa destrutividade, o que o mundo do capital fez? Criou um metabolismo social fundado no trabalho necessário mais trabalho excedente, mecanismos necessários para a geração do valor, apropriado pelo capital sob a forma do lucro.

Nós precisamos pensar num imperativo societal pelo meio do qual a sociedade se estruture por um sistema de metabolismo social, em que o trabalho disponível seja imperativo visando a criação de coisas socialmente úteis. É preciso pensar que o tempo disponível para produzir coisas úteis supõe que o trabalho e a vida sejam dotados de sentido. A pergunta que se faz é: na sociedade dos nossos dias, o capitalismo faz com que sua vida seja dotada de sentido dentro e fora do trabalho? Não. Dentro do trabalho, vivemos o estranhamento, o risco e a iminência de sua perda. Fora, não fazemos outra coisa que não seja pensarmos em como nos qualificar mais para não perder o trabalho amanhã. É um circulo vicioso perverso.

O resultado disso são hordas de miseráveis, a destruição ambiental, o aumento da criminalidade, a política do narcotráfico e a lógica belicista, entre outras aberrações. Ou acabamos com esse arcabouço societal destrutivo ou a humanidade não vai vivenciar esse nosso século XXI sem traumas profundos, cujas conseqüências são difíceis até de imaginar.

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