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Método inédito desenvolvido pelo Labex lança luz
sobre estresse que acomete atletas de alto desempenho
Estudo prevê ocorrência de overtraining
CARMO GALLO NETTO
O Laboratório de Bioquímica do Exercício (Labex), conduzido pela professora Denise Vaz de Macedo, funciona junto ao Departamento de Bioquímica do Instituto de Biologia da Unicamp (IB). Em um dos lados do longo corredor de acesso às dependências do Departamento, num pequeno compartimento, realizam-se experiências com animais (ratinhos), submetidos a um programa definido e controlado de corrida em esteira. Do lado oposto, aparelhos e dispositivos, instalados em ampla sala, permitem a obtenção de dados e a colheita periódica de amostras de sangue de atletas e esportistas que se exercitam com base em protocolos estabelecidos.
O que se pretende em estudos aparentemente tão díspares? Depende, pois são múltiplas as atividades exercidas pelos pesquisadores do laboratório. Mas, sem dúvida, o trabalho mais significativo ali desenvolvido é o estudo do overtraining, assim chamado o estresse que pode acometer atletas de alto desempenho e que se manifesta, invariavelmente, pela queda abrupta do rendimento, em geral acompanhado por vários sintomas físicos e até psicológicos.
Testes foram feitos com ratos
Denise explica que, na literatura, existem múltiplas propostas de causas para explicar o fenômeno, “mas nenhuma delas consegue prever uma situação de overtraining antes que aconteça, o que ocorre por falta de um modelo. Estudam-se, então, casos isolados, que não possibilitam uma pesquisa sistemática”. O modelo, segundo a docente, permitirá caracterizar, primeiro, que parâmetros poderiam ser utilizados para prever a possibilidade de ocorrência do overtraining e, segundo, a abertura de caminho para teorizações que expliquem por que em um universo de atletas submetidos às mesmas situações de esforço, há os que melhoraram continuamente as performances e os que sucumbem ao treinamento.
O trabalho de pesquisa que levou a determinação do modelo inédito para o estudo do overtraining está sendo financiado pela Capes e é desenvolvido por Rodrigo Hohl, ex-aluno da Faculdade de Educação Física da Unicamp (FEF), e por alunos de iniciação cientifica. Os resultados aguardam publicação em revista especializada e a tese de doutorado resultante está em fase final de redação.
O principal objetivo da pesquisa, diz Rodrigo Hohl, foi desenvolver um modelo em animais (ratos) para investigar o fenômeno referido na literatura especializada como overtraining ou síndrome da queda de performance. Ele explica que a ocorrência se dá quando há um desequilíbrio entre o estímulo do exercício e a recuperação pós-exercício, que é o período em que ocorrem propriamente as adaptações orgânicas. “Um desequilíbrio dia-após-dia altera a sincronia entre os períodos em que devem ocorrer alternadamente estímulo e recuperação, leva à colisão destas etapas e, em face de um estado de fadiga crônica, provoca o overtraining em uma parcela de atletas de alto rendimento”.
Por que o estudo com ratos? O pesquisador esclarece que induzir à situação de overtraining em seres humanos não é ético e, além disso, não se vai encontrar uma população de atletas disposta a se submeter a um protocolo de treinamento que gera fadiga crônica, lesões, perda do ano competitivo e outros desarranjos físicos. Esta situação faz com que a investigação seja casual, o que dificulta o entendimento do fenômeno, pois o número de indivíduos é pequeno e os resultados, de difícil comparação, porque provenientes de atletas de modalidades diferentes e, portanto, submetidos a diferentes processos de treinamento.
“Meu objetivo foi estabelecer um modelo de indução do overtraining em ratos para que se tivesse um protocolo controlado, sistematizado e que permitisse investigar parâmetros simultaneamente no sangue e nos tecidos, processos inviáveis nos seres humanos, porque são invasivos”, revela Hohl.
O pesquisador lembra que o único parâmetro de consenso na literatura para identificar o overtraining, e que precisa estar claramente manifesto, é a queda de rendimento, constatada através de testes e avaliações físicas. “Por isso, o meu primeiro objetivo foi distinguir o grupo de ratos que acusaram queda de rendimento, mesmo porque inicialmente não sabia se isso efetivamente ocorreria”, explica ele.
Segundo o pesquisador, no auge do treinamento, de um universo de 36 ratos, oito foram retirados para análises de sangue e de tecidos. Os demais continuaram o protocolo e daí definiram-se três grupos numericamente iguais: o de morte súbita, que ele pretende analisar no pós-doutorado; o dos que melhoraram a performance; e o dos que apresentaram queda de rendimento.
E quais as conclusões e como elas se relacionam com seres humanos? Hohl revela que encontrou diferenças significativas nos parâmetros hematológicos entre esses grupos, que corroboram dados da literatura obtidos a partir de seres humanos: “Analisei alguns aminoácidos, como glutamina, glutamato e alanina, que constituem parâmetros clássicos na literatura. Nos músculos analisei algumas enzimas ligadas ao metabolismo energético e o substrato energético para o exercício, que é o glicogênio muscular. Hoje posso dizer, com segurança, que o protocolo pode ser usado para investigação do fenômeno pelo menos no tocante a interferências do treinamento físico, porque o overtraining pode estar envolvido com aspectos psicológicos. O modelo é inédito em animais e acredito que a sua divulgação permitirá novos insights nesses estudos”.
O pesquisador ressalta que, embora o primeiro estudo seja de 1923, ainda não se têm os mecanismos do fenômeno elucidados e nem a sintomatologia definida. “Conhece-se um conjunto de sintomas que podem ou não ocorrer e a única manifestação admitida como constante é a queda do desempenho físico, daí a importância de determinar parâmetros bem-definidos para caracterizar o fenômeno”, conclui.
A professora Denise acrescenta que com o modelo desenvolvido em ratos pretende quantificar todos os marcadores sugeridos na literatura e estabelecer um paralelo com o que acontece no atleta: “Tendo o modelo posso tirar do rato o músculo, o fígado e outros tecidos e determinar que alterações estão refletidas no sangue”, afirma, ressaltando que estão sendo monitorados marcadores de processos inflamatórios, de lesões musculares, de estresse oxidativo e de defesa de oxidante.
“Fazemos o hemograma completo e vamos cercando tudo. O modelo nos permitirá o refinamento no número de análises, hoje muito grande e inviável de aplicação em atletas, devido aos custos. Temos já alguns parâmetros definidos e vamos começar a estudar outros. O modelo permitirá certamente chegar a alguns poucos parâmetros de referência, que afinal é o objetivo que perseguimos”. Para isto, a docente considera fundamental a utilização de sensores eletroquímicos, de utilização muito prática e barata, desenvolvidos em cooperação com o professor Lauro Kubota, do Instituto de Química da Unicamp (IQ).
A ponte entre pesquisa e ensino
Ouve-se que um dos diferenciais da Unicamp são seus professores pesquisadores, já que eles propiciam aos alunos uma formação teórica e prática. O caso da professora Denise Vaz de Macedo é certamente emblemático. No Labex, a docente orienta 23 alunos, entre iniciação cientifica, mestrado, doutorado e pós-doutorado. Admite que o trabalho é “enorme” e se vê diuturnamente corrigindo relatórios. Brinca com seus alunos, dizendo que “depois de morta, na fila do céu ou do inferno”, a encontrarão corrigindo os últimos textos. Mas o entusiasmo e o prazer que a movem fazem acreditar que ela já está no céu.
Chama a atenção em Denise a sua facilidade em se envolver com os alunos, em unir pesquisa e ensino, agregando pessoas e apostando em modelos interdisciplinares. Falando dos resultados obtidos, ela se entusiasma particularmente com o grupo com que trabalha: “Uma conjunção de fatores nos fez chegar a resultados tão promissores. Temos um grupo de alunos muito sérios e comprometidos com os experimentos, o que permite uma quantificação segura dos resultados”.
Segundo a pesquisadora, a agregação do professor René Brenzikofer ao grupo foi de “capital importância”. Físico de formação, mas lotado na Faculdade de Educação Física da Unicamp (FEF), ele criou a modelagem que permitiu separar os dados. “Chegamos a conclusões antes impensáveis, tanto que outros grupos de pesquisa não obtiveram resultados conclusivos”, diz a docente, para em seguida mencionar outros colegas. “Em várias das pesquisas, o professor José Camilo Novelo, do nosso departamento, nos auxilia nos estudos do proteoma. O professor Lauro Kubota, do Instituto de Química, nos ajuda no desenvolvimento de sensores eletroquímicos, e a professora Flavia Maria Netto, da Faculdade de Engenharia de Alimentos, com as pesquisas em nutrição”. De acordo com a pesquisadora, essa multidisciplinaridade foi possível graças ao Pronex, projeto temático aprovado pelo CNPq desde 2004 e coordenado pelo professo Kubota.
A docente enfatiza que tudo começou quando ela começou a envolver-se com ensino. Diz que o Labex trabalha em quatro vertentes: “Faz pesquisa básica, utilizando animais; pesquisa aplicada, com atletas; dedica-se à inovação, desenvolvendo produtos de nutrição e sensores eletroquímicos específicos; e utiliza fotocélulas para estudar corridas de velocidade. Mas, basicamente, o que alimenta e faz tudo isso acontecer é a atividade de ensino, que é também uma atividade de pesquisa, porque a cada ano a minha sala de aula é um laboratório novo. A cada ano, minhas disciplinas sofrem alterações em razão da ligação discente e das observações que faço com meus monitores”.
Denise considera “fundamental” levar para a sala de aula as pesquisas que o Labex faz, o que lhe carreia muito bons alunos. Para a docente, o grupo de pesquisadores que coordena entende a importância do ensino, alimenta-se dele e a ajuda a transformar os resultados de pesquisas em disciplinas obrigatórias e eletivas e em cursos de especialização.
Nessa linha, sente-se gratificada pelo fato de há três anos ter criado um curso de especialização em bioquímica, fisiologia, treinamento e nutrição esportiva, levando o que se faz no laboratório para um segmento que trabalha com a população em academias e é sabidamente mal formado. “Concluímos a primeira turma, criamos uma segunda aos sábados e, neste ano, iniciamos mais uma turma às segundas-feiras. Através desse curso posso atuar diretamente na formação simultânea de 150 alunos. Trata-se de um curso teórico-prático e tudo que temos no Labex eles aprendem, discutem e trabalham em cima de dados. São coisas que ficam, não se esquecem”.
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