RAQUEL DO CARMO SANTOS
A economista Stela Cristina de Godoi mergulhou no universo dos trabalhadores do chão-de-fábrica das empresas do ramo automobilístico, do período entre 1954 e 1964, para compreender as experiências e formas de resistência operária. Considerada como “época de ouro” da economia brasileira pelas altas taxas de crescimento, o momento reserva algumas contradições que a pesquisadora resolveu apurar por meio da história oral e da memória.
Se por um lado, o projeto de industrialização e urbanização de meados do século XX tornou-se uma referência no que diz respeito às políticas de desenvolvimento econômico, os relatos da mídia deste período histórico aparecem também permeados por discursos de resistência. “Percebi que havia uma contradição entre a história econômica oficial e a experiência operária. Assim, a minha proposta inicial foi investigar o outro lado desta história”.
Em seu trabalho de mestrado em Sociologia “A roça e o aço: as experiências e as resistências operárias no Brasil moderno (1954-1964)”, orientado pelo professor Ricardo Antunes, Stela analisou as histórias de vida de 14 ex-metalúrgicos da região metropolitana de São Paulo. Ela constatou a existência de alguns traços de resistência que transcendem a esfera de militância política, produzida por meio dos sindicatos e partidos.
“Existia uma atmosfera de medo constante. Prova disso é que os ocupantes de cargos de liderança eram chamados de feitores, mostrando, provavelmente, uma analogia ao período de escravidão”, explica. Acidentes de trabalho eram ocasionados, freqüentemente, pela falta de equipamentos de proteção, pela cadência forçada e pelo medo das demissões.
Também foi possível identificar, no estudo, que a monotonia do trabalho expressa aspectos de estranhamento e alienação presente nesta experiência operária. “No trabalho metalúrgico, no interior do modo de produção capitalista, o operário experimentava uma sensação anestésica por passar o dia todo a fazer os mesmos movimentos, num tempo sempre idêntico”, explica.
Na linha de montagem, projetada para explorar a força física e mental dos trabalhadores, os operários se viam mais diretamente atingidos por essas “engrenagens da fábrica”. Já o trabalho metalúrgico realizado nas bancadas, local em que os empregados com um pouco mais de qualificação se mantinham, o salário era mais alto e permitia, segundo Stela, a realização de uma das necessidades subjetivas do trabalho humano, a interferência da habilidade individual no processo de produção.
Biscates O processo de aprendizado no interior das oficinas, segundo o estudo, continha traços de resistência. “Os mais experientes ao ‘passarem o serviço’ para o novato também transmitiam os traquejos, burlas e pequenas recusas, elaboradas e aprimoradas no processo de trabalho”, explica.
O termo biscate eram os objetos e artefatos produzidos com material da própria fábrica e não trabalho com ganho financeiro como é mais usualmente conhecido. Os biscates eram feitos na clandestinidade para uso dos próprios operários, como o caso de uma mariquinha, espécie de suporte para coador de café, produzido por um dos entrevistados. “Era uma atividade com sentido profundo, pois expressava, sobretudo, uma tentativa de recriar o sentido daquele trabalho estranhado, a partir do amálgama cultural do rural e do urbano”, argumenta.