A pesquisa de 300 páginas, orientada pelo professor Carlos Alonso Barbosa de Oliveira, do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit), aborda o período de estagnação econômica que vem desde 1980 e, dentro deste recorte no tempo, os últimos 15 anos do projeto liberal, que se impôs no país mediante a promessa de retomada do crescimento econômico.
“A promessa de redenção não se confirmou. Ao contrário, a estagnação econômica se aprofundou com Fernando Collor, nos dois mandatos de Fernando Henrique e no primeiro governo Lula. Na década de 1990, o país cresceu menos que na anterior (‘a década perdida’) e o padrão se mantém parecido na década presente. Assim, o enfrentamento da questão social fica condicionado a um país sem progresso material. Eu analiso este quadro como regressivo”, enfatiza Denis Gimenez.
Antes de seguir em sua análise, o professor esclarece que a tese de regressão econômica e social, no caso, possui um componente dinâmico. “A questão que se coloca é: regressão em relação a quê? Em termos econômicos, no conjunto, obviamente há uma regressão em relação ao avanço que outros países conseguiram e à nossa posição no mundo no final dos anos 70. Em termos sociais, temos que considerar que estamos progressivamente nos distanciando daquilo que seria desejável para uma sociedade razoavelmente civilizada em termos da garantia de bem-estar social”, pondera.
O pesquisador insiste que fala de processos regressivos no conjunto e em relação àquilo que é desejável para a sociedade brasileira. “Lembro-me nesse ponto do notável Celso Furtado, quando disse que, talvez, nunca estivemos tão longe da sociedade que desejamos”.
Heranças Segundo Gimenez, no período de industrialização entre 1930 e 1980, o Brasil chegou de fato a ser a oitava economia do mundo, com uma indústria complexa, uma sociedade de massa e a economia mais dinâmica do mundo. Nesse período, apesar do caráter conservador do processo de modernização do país, o dinamismo da economia e o crescimento da renda permitiram a melhoria significativa das condições de vida da população.
“Mesmo com tal avanço, ao final do período de industrialização, a questão social era gravíssima. Olhando para o país nos anos 80, vejo um número de pobres incompatível com o grau de desenvolvimento econômico atingido, com a população sofrendo de carências materiais múltiplas, na educação, saúde, habitação, saneamento”, avalia.
Não tendo enfrentado grande parte dos problemas sociais ao longo do processo de industrialização e de crescimento acelerado, o país não poderia fazê-lo quando entrava numa fase de estagnação econômica na década de 80. No entanto, vivia-se a luta pela redemocratização, sob a bandeira do resgate da dívida social, com intensos debates em torno de um conjunto de reformas democratizantes capazes de responder às críticas dirigidas antes ao regime militar.
Sob este espírito foi escrita a “Constituição Cidadã”, estruturando o orçamento da seguridade social e avançando em outras áreas sensíveis ao enfrentamento da questão social no país. “O fato de a Carta ter sido inserida num país com uma economia estagnada é um problema: ela é uma grande vitória das forças progressistas, mas também explicita os limites para um projeto social mais avançado sem progresso material e com uma economia pouco dinâmica”.
E é num cenário de crise, com inflação alta e dificuldades econômicas de toda natureza, que o reformismo democrático perde força e abre espaço para o novo liberalismo, que se vende como alternativa redentora para inserir um país periférico na economia global.
Fazer o quê? Depois que a promessa revela-se falsa e os próprios ideólogos do projeto liberal assumem que o país encontra dificuldades para retomar o crescimento e, portanto, para investir no enfrentamento dos problemas da população, qual é a agenda social possível? “Progressivamente é aquela focalizada no atendimento aos mais pobres entre os pobres”, responde Denis Gimenez.
De acordo com o professor, num contexto de estagnação, os direitos sociais inscritos na Carta de 1988, e particularmente as políticas universais, consideradas dispendiosas, vão sendo mitigadas em troca de políticas pontuais, baratas e sobretudo flexíveis podendo ser implantadas e retiradas quando convier, sem o amparo constitucional. “No fundo, é um processo de adequação da política social à nova ordem econômica”.
No mercado de trabalho, conforme diz Gimenez, com o baixo crescimento, ocorrem movimentos regressivos de toda ordem, como o desemprego em massa, a redução dos assalariados com carteira assinada, a precarização das condições de trabalho e a expansão do trabalho informal. “Diferentemente dos anos 80, é um processo de desestruturação brutal do mercado de trabalho”.
Na opinião do autor da tese, não pode haver dúvida quanto ao primeiro limite para o enfrentamento da questão social: é o baixo crescimento econômico. O quadro publicado nesta página mostra que a renda per capita no Brasil ficou praticamente estagnada no período de 1980 a 2003. “Considerando o dólar em paridade de compra constante, ela aumentou de 6.775 para 7.200 dólares, em 23 anos, mesmo com a população crescendo menos”.
Denis Gimenez afirma que aumentar esta renda per capita é uma premissa, pois a considera relativamente pequena para um projeto social mais avançado no Brasil. “Esta renda em 2003 é inferior à da África do Sul, da Argentina e do Chile, muitas vezes inferior à de Cingapura, e perdia também para a da Coréia do Sul, que em 1980, para espanto de muitos, tinha renda inferior à nossa”.
Para utilizar outro parâmetro, o professor informa que o Brasil gasta 7,9% do PIB com a saúde, segundo dados do Banco Mundial. Este índice é maior que o da Coréia do Sul (5%), da Espanha (7,6%) e do Reino Unido (7,7%) e igual ao do Japão. “Isto leva os conservadores e os partidários dos juros altos e do superávit primário a alegarem que já gastamos bastante em saúde; o problema é que os recursos seriam mal gastos”.
No entanto, quando os 7,9% do PIB são transformados em gasto per capita em saúde, chega-se a algo próximo dos 200 dólares por pessoa. Por este critério, o gasto do Japão é 12 vezes superior ao nosso e 137 vezes superior ao de Uganda, um país pobre cujo percentual do PIB destinado à saúde é quase o mesmo que o do Brasil.
“A pergunta é: como expandir o gasto em saúde sem crescer? O mesmo raciocínio vale para outras áreas da política social, como a educação, e ainda para outras áreas das políticas públicas, como a infra-estrutura. Isso deixa claro que nosso primeiro limite é a economia”, reitera Gimenez.
‘Efeitos sociais indesejáveis’
O professor Denis Gimenez chama a atenção para o fato de que o processo de avanço do projeto liberal não é exclusividade do Brasil. A partir do Consenso de Washington e da ação determinada dos organismos internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial e Organização Mundial do Comércio (OMC), a América Latina transformou-se ao longo dos anos 90 no principal laboratório para a implementação de reformas liberais no mundo.
Esta a tríade de instituições difusoras do novo liberalismo, que exerce pressão direta sobre os países para a abertura financeira, a abertura comercial, a adequação da política cambial, a redução do papel do Estado na Economia, a reforma fiscal, as privatizações, as desregulamentações, entre outros pontos do receituário, encontrou terreno fértil para suas propostas redentoras no continente estagnado.
“Esta agenda chegou ao Brasil tardiamente, até pelos impasses que vivemos em meio ao processo de redemocrarização”, explica Gimenez. E um dos argumentos dos conservadores, segundo o professor, é que não voltamos a crescer porque as reformas não se completaram. “Ocorre que, nos últimos 15 anos, as reformas fundamentais foram feitas e a realidade é o baixo crescimento, a estagnação, a regressão produtiva”.
Denis Gimenez destaca que depois de anos de resultados nada satisfatórios na região, o FMI e o Banco Mundial passaram a tratar os aspectos regressivos do projeto liberal como “efeitos sociais indesejáveis”. “Dizem que se trata de efeitos ‘temporários’, que desaparecerão conforme as reformas liberais forem sendo introduzidas. Na verdade, a despeito do ritmo ou intensidade das reformas nos vários países, tais efeitos têm se mostrado permanentes”.
O pesquisador informa que nos próprios documentos dos organismos internacionais, preconiza-se a necessidade de produzir um ajustamento “com face humana”, o que significa proteger os segmentos mais vulneráveis dos efeitos sociais indesejáveis do ajuste econômico. “O Banco Mundial, por exemplo, reconhece ‘ser fundamental a assistência aos mais pobres como forma de reduzir as resistências às reformas e, ao mesmo tempo, evitar instabilidade política em jovens democracias’”.
Gimenez observa que vai se conformando, assim, o projeto de mínimos sociais. “Trata-se de um processo silencioso e difuso de compatibilização dos interesses dos muito ricos (em geral rentistas, que vivem do setor financeiro e das benesses da política econômica, dos juros altos e da dilapidação do Estado) com a assistência precária aos muitos pobres, por meio de políticas sociais focalizadas, e num quadro de regressão da classe média”, escreve no final de sua tese.
E conclui: “É isto o que está desenhado. A Constituição Cidadã não foi pensada para esta nova ordem, tampouco um projeto social mais avançado pode ser. Ao contrário do que é propagado aos quatro ventos pelo artesanato liberal-conservador local, em consonância com as vozes doutorais de fora, não são os direitos constitucionais e de cidadania que emperram a economia, mas a ordem econômica liberal que tem se mostrado estranha ao desenvolvimento do país e a uma sociedade mais civilizada”.