ÁLVARO KASSAB
Não é de hoje que causam polêmica as opiniões do sociólogo Simon Schwartzman sobre o sistema educacional brasileiro. Pode-se discordar de seu ideário. Não há como negar, porém, sua coerência. As convicções do intelectual estão fundamentadas em estudos feitos em um amplo espectro, que vai da ciência política ao trabalho, passando pela produção do conhecimento no âmbito da ciência, tecnologia e educação.
Nos últimos tempos, na condição de presidente do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS), Schwartzman tem se debruçado sobre questões relacionadas à pobreza e à política social. Cabe registrar que boa parte desses estudos foi desenvolvida no transcorrer de passagens por algumas das mais prestigiosas instituições do Brasil (FGV, Iuperj, USP e UFMG) e internacionais (Oxford, Harvard, Columbia, Stanford e Califórnia, entre outras).
Schwartzman esteve no último dia 10 na Unicamp, onde falou sobre o ensino superior em palestra promovida pela Comissão de Planejamento Estratégico Institucional (Copei). A síntese do que foi exposto pelo sociólogo pode ser conferida na entrevista que segue.
JU - À luz da perspectiva histórica, a universidade brasileira pode ser considerada nova. Que avaliação o sr. faz dela no estágio atual?
Simon Schwartzman Ela é muito desigual. Na verdade, temos um sistema de ensino superior muito diferenciado. São poucas as universidades mais características, com pesquisa, pós-graduação etc. Por outro lado, temos um grande número de instituições de ensino, públicas ou privadas. Portanto, não dá para falar em “a” universidade brasileira.
JU Em que medida o sistema é desigual?
Schwartzman Existe, primeiramente, a desigualdade em relação à atividade de pesquisa. Ainda que a legislação fale na chamada indissolubilidade do ensino, da pesquisa e da extensão, a pesquisa está concentrada num número muito pequeno de instituições. São aquelas que conhecemos: as universidades estaduais paulistas, algumas federais, a PUC do Rio de Janeiro e outras poucas espalhadas por aí. Ou seja, não existe de fato pesquisa em grande parte do sistema educacional brasileiro.
Temos também a diferenciação entre os setores público e privado. Suas características são muito distintas alguns cursos são muito seletivos, têm muito prestígio, enquanto outros são mais fáceis. Isso acaba refletindo também no perfil heterogêneo daqueles que ingressam na universidade. Alguns entram muito bem-formados, por meio de um processo competitivo intenso, enquanto outras carreiras não têm requisitos importantes. Esses fatores resultam num nível de qualificação muito diferente.
JU Hoje, as universidades formam um número considerável de mestres e doutores. Eles estão sendo aproveitados pelo mercado? O impacto dessa nova massa de recursos humanos qualificados já está se fazendo sentir na indústria e na pesquisa acadêmica? Por que a indústria não os contrata em número suficiente, como ocorre nos países centrais? O que poderia ocorrer de novo se fossem contratados?
Schwartzman Os dados mostram que, no Brasil, o principal mercado de doutores está no sistema universitário e em institutos públicos de pesquisa. Já os mestrandos, em geral, vão para o mercado de trabalho. Já está havendo, portanto, uma absorção.
Não é uma situação muito diferente do que a verificada em outros países do mundo. Os doutores dedicam-se mais à pesquisa acadêmica. Não é muito comum que empresas os contratem. A razão pela qual isso ocorre é que as empresas têm um horizonte de tempo relativamente curto. Mesmo as maiores, dificilmente têm condições e a cultura institucional apropriada para manter laboratórios de pesquisa mais básica, como foi, no passado, o famoso Bell Labs, nos Estados Unidos. Muitas empresas hoje preferem trabalhar em parcerias com universidades, e concentrar seus investimentos de pesquisa em atividades de inovação de produtos e processos.
JU O Brasil gera um número ainda pequeno de patentes, o que quer dizer que inova pouco. Dessas, a maior parte é desenvolvida nos laboratórios universitários, não na indústria. Esse deslocamento de função, nesse caso, mostraria que o país ainda patina na questão da inovação?
Schwartzman O pesquisador, por mais inovador e inventivo que seja, não tem como registrar e manter uma patente se não estiver associado a uma empresa que vislumbre com clareza seu interesse comercial. O custo para registrar e manter uma patente é muito alto. Na Europa, é atualmente de cerca de 50 mil libras. No Japão e nos Estados Unidos é mais baixo, cerca 15 mil dólares. Além do custo de registrar as patentes nos diversos países, existem os custos de defender legalmente as patentes contra patentes similares e uso não autorizado, que podem ser altíssimos.
Na verdade, o pesquisador só tem o registro de patente e todas as despesas e investimentos embutidos quando ela está ligada a uma perspectiva muito concreta de aplicação e de resultados ou quando há um grupo econômico vinculado à iniciativa.
Assim, o pequeno número de patentes não significa que nossos pesquisadores não sejam criativos, mas é um reflexo da baixa conexão entre o mundo da pesquisa e o mundo empresarial. Nas economias mais desenvolvidas, as próprias universidades se constituem em empresas que registram e exploram as patentes, compartindo os benefícios com os pesquisadores.
JU Nesse contexto, que avaliação o sr. faz da pesquisa desenvolvida hoje no país? O que pode ser projetado para o futuro?
Schwartzman A pesquisa no Brasil é muito fragmentada. Ainda prevalece a idéia de que cada pesquisador na universidade é livre para fazer aquilo que deseja. Os recursos das agências de financiamento são pequenos e muito pulverizados. Temos cientistas muito competentes, em muitos lugares, e vários centros de excelência. Acho, entretanto, que temos um problema de densidade. A pesquisa hoje no mundo cada vez mais requer investimentos muito pesados. Todos os países estão tratando de concentrar os recursos nas instituições de ponta, além de vinculá-los fortemente ao setor empresarial e a agências governamentais responsáveis pelas políticas públicas nas diversas áreas, que dependem de conhecimentos científicos e técnicos.
Isso ocorre muito pouco no Brasil.
JU Falta uma visão sistêmica, interdisciplinar?
Schwartzman Não acho que seja esse o problema. Se eu tenho um departamento de Física, com 40 pesquisadores e com cada qual tocando o seu projeto, a iniciativa já está pulverizada. Se eu colocar o físico junto com o químico, não é isso que vai mudar. O que tem de ser levado em conta é a vantagem comparativa onde podemos entrar com mais força, onde vai fazer a diferença? A interdisciplinaridade é uma decorrência natural da pesquisa relevante e de qualidade, não uma causa ou condição.
JU Há universidades que põem forte ênfase na transferência de tecnologia e na fixação de relações estratégicas com a indústria. A Unicamp defende o fortalecimento dessas relações, desde que elas tenham como eixo a produção de conhecimento novo e seu impacto na qualidade do ensino. De que forma o sr. vê o desenvolvimento dessas relações?
Schwartzman Participo de um estudo por meio do qual estão sendo comparadas experiências em quatro países da América Latina: Brasil, Argentina Chile e México. Estamos identificando exemplos de centros de pesquisa que conseguem combinar excelência acadêmica com aplicações relevantes, e entender o que facilita ou dificulta este processo. Na Unicamp, por exemplo, há um grupo muito conhecido, que é o do professor Fernando Galembeck, do Instituto de Química [IQ], que produz patentes e é ligado ao setor produtivo. No Rio de Janeiro, existem experiências importantes em áreas como o Departamento de Informática da PUC, e na COPPE, o programa de pós-graduação em engenharia da UFRJ, que tem um trabalho importante de cooperação com a Petrobras, entre outras atividades. Existem muitos outros exemplos. Temos, portanto, iniciativas importantes. Não é ainda o que dá o tom da nossa pesquisa como um todo, mas são experiências relevantes.
JU Por outro lado, a pesquisa corresponde apenas a 1% do PIB do país. O que precisa ser feito para chegar-se ao círculo virtuoso?
Schwartzman O problema é que é preciso vincular a pesquisa de uma maneira mais forte e pesada a áreas de interesse das empresas ou do próprio governo. Um exemplo concreto é o Instituto Oswaldo Cruz, do Rio de Janeiro. Trata-se de um instituto grande, que faz pesquisa para a área médica, de saúde e de fármacos. Ele possui recursos que são provenientes da área da saúde. A Embrapa também tem uma tradição de fazer pesquisas importantes na área agropecuária. O Brasil poderia ter uma pesquisa muito mais forte e importante na área ambiental.
O mesmo se aplica à área social. O IBGE, nesse momento, está iniciando uma pesquisa que vai custar 500 milhões de reais. Não sei se isso está sendo contabilizado como dinheiro de pesquisa, mas é. Estão colocando 80 mil pessoas nas ruas para pesquisar, levantar dados e informações. Por quê? Em razão de haver um entendimento de que isso é importante para o país. Quando se consegue estabelecer uma ponte efetiva entre o setor público e o centro de pesquisa, ou entre setores empresariais, como é o caso da agricultura, obtém-se uma massa de volumes muito mais significativa.
Agora, simplesmente aumentar as verbas para o pesquisador, fica uma coisa muito difícil de justificar. Não tem resultado visível, ninguém vê onde essa coisa vai dar. Sem isto, os pesquisadores acabam se transformando em um grupo de pressão que disputa mais verbas com outros grupos igualmente ou mais meritórios, como a educação básica, a saúde ou os transportes, e não tem como ganhar muito nesta disputa. É preciso ter uma pesquisa como no mundo todo acontece com um lado de aplicações e de resultados muito mais explícito e forte. De uma tal maneira que a sociedade entenda por que é importante que a pesquisa seja financiada.
JU O que há de anacrônico e de novo na universidade brasileira?
Schwartzman Há varias coisas anacrônicas. Uma delas é toda essa ênfase na indissolubilidade do ensino, da pesquisa e da extensão. Trata-se de uma concepção de universidade que deixou de existir há décadas. No mundo inteiro, a pesquisa se concentra em algumas instituições; o ensino superior, em grande parte, faz educação. Essa indissolubilidade não existe mais, está ultrapassada. Ao contrário, as instituições cada vez mais se especializam.
Outra coisa anacrônica é a idéia da universidade pública gratuita. Poucos países do mundo levam adiante essa proposta. Até os países europeus, que tinham uma tradição de manter universidades gratuitas quando elas eram poucas e pequenas, estão começando a introduzir o sistema de cobrança.
JU Mas, no caso do Brasil, o senhor não acha isso um pouco assustador?
Schwartzman Não. Para aquele aluno que provar que não tem recursos e, conseqüentemente, não tem condições de ingressar na universidade, embora tenha mérito, o governo implementaria um sistema de apoio. Ele receberia bolsas, crédito educativo etc. O que não pode é ter um sistema gratuito que atende predominantemente a pessoas das classes média e média alta, que vão aumentar sua renda privada de forma muito substancial ao longo da vida, sem que estas pessoas compartam o custo de sua educação.
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