MANUEL ALVES FILHO
Assim como o personagem Cebolinha das histórias em quadrinhos, criado em 1960 pelo desenhista Maurício de Sousa, muitas crianças falam “plaia” em vez de “praia”. Tradicionalmente, tanto especialistas quanto leigos consideram que elas trocam a letra “R” pela “L” no momento de pronunciar determinadas palavras. Puro equívoco, segundo duas recentes pesquisas desenvolvidas por integrantes do Laboratório de Fonética e Psicolingüística (Lafape) do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. De acordo com os estudos, o que ocorre nesses casos é que o menino ou a menina comete uma pequena imprecisão no momento da verbalização. “Por meio de análises acústicas, nós comprovamos que quando a criança diz ‘tapo’ no lugar de ‘sapo’, esse ‘T’ é diferente daquele empregado na palavra ‘tapa’. Ou seja, a criança acha que está falando certo, pois ela de fato faz a distinção. Nossos ouvidos é que não percebem”, explica a coordenadora do Lafape, professora Eleonora Cavalcante Albano.
As pesquisas foram conduzidas pelas fonoaudiólogas Maria Cláudia Camargo de Freitas e Luciana Lessa Rodrigues, quando ambas faziam o mestrado no IEL atualmente estão no programa de doutorado. Paralelamente aos estudos, cada um feito com dois alunos de uma escola municipal de Campinas, elas também realizaram uma intervenção clínica para corrigir o problema de fala das crianças. Graças à abordagem adotada, elas puderam identificar com precisão o que estava ocorrendo e, conseqüentemente, promover uma intervenção adequada aos casos. “Em menos de quatro meses, as crianças já estavam falando conforme o padrão visto como normal”, conta Maria Cláudia.
De acordo com a professora Eleonora, existe uma tendência relativamente generalizada entre os profissionais que trabalham com a fala de entender o fonema como um elemento estático. Por causa disso, boa parte deles costuma classificar a criança que pronuncia “caia” em vez de “cara” como uma “troca-letras”.
No entanto, uma concepção mais recente vê o fonema como um evento dinâmico. A docente do IEL lembra que o tempo é constitutivo e influencia tudo o que ocorre durante a fala. “Existe uma coordenação de acontecimentos, cuja ordem nem sempre é linear. Algumas coisas ocorrem simultaneamente, enquanto outras seguem uma seqüência. Para que as pessoas entendam melhor, tome-se como exemplo a comunicação gestual. O gesto se faz no tempo. A fala também. A fala nada mais é do que um gesto articulatório”, esclarece. É a partir dessa perspectiva dinâmica dos sons da fala que os estudos foram desenvolvidos. A técnica da análise acústica foi empregada, informa Luciana, porque ela permite registrar detalhes do processo de produção da fala que não poderiam ser captados pelo ouvido humano.
Análises Assim, as crianças que participaram dos estudos eram periodicamente levadas para uma cabine com isolamento acústico. Lá, elas pronunciavam palavras à medida que placas contendo desenhos eram exibidas. Todas as sessões foram gravadas por um equipamento de alta precisão. Em seguida, a gravação era analisada por meio de um programa de computador. “O que nós identificamos é que as crianças não trocavam os fonemas, como comumente se crê. Quando falavam, elas faziam distinções entre eles. Para elas, ‘caia’ em referência à palavra ‘cara’ é diferente do ‘aia’ presente na palavra ‘saia’. Nossos ouvidos é que não são capazes de perceber essa sutileza. Simplificando, não se trata de um distúrbio articulatório ou de um desvio fonológico, como o problema é tradicionalmente diagnosticado. É apenas uma imprecisão do gesto articulatório correspondente. Em termos de fala, essas crianças têm somente uma realização que fica aquém do que é considerado ótimo”, analisa a professora Eleonora.
Essa concepção é importante, de acordo com as pesquisadoras do Lafape, porque permite um diagnóstico mais preciso, possibilitando conseqüentemente a adoção de terapias mais ajustadas ao problema de cada criança. “A abordagem passa a ser mais simples e rápida. Não é preciso, por exemplo, submeter a criança a exercícios para o fortalecimento da língua”, compara Maria Cláudia. Segundo Luciana, quando esse tipo de pronúncia acontece aos dois ou três anos de idade, normalmente não acarreta maiores conseqüências. A tendência é que o menino ou menina passe a falar segundo o padrão tido como normal sozinha. No entanto, quando a imprecisão perdura até os cinco ou seis anos, aí, sim, pode trazer algumas implicações.
Nessa fase, destacam as pesquisadoras, a criança normalmente está na escola e pode virar objeto de brincadeiras dos amiguinhos ou de repreensão por parte de professores. Muitas são apelidadas de Cebolinha ou Hortelino Troca-Letras, o personagem dos Looney Tunes. “Ainda não sabemos a razão de algumas crianças terem mais dificuldade em superar essa pequena dificuldade de coordenação. Alguns indícios apontam para a existência de fatores de ordem emocional, mas não há nada conclusivo. O importante, porém, é que os nossos estudos estão trazendo novas contribuições para o entendimento e o tratamento desse problema que tende a ser magnificado por outras perspectivas”, concluiu a professora Eleonora.