Tese de doutorado de Rubia Auxiliadora Constâncio Quintão, apresentada no Instituto de Geociências (IG) da Unicamp, mostra que o incremento e intensificação das atividades tecnológicas por parte das montadoras de veículos instaladas no Brasil gerou demanda por esse tipo de atividade também nos fornecedores de autopeças nacionais e multinacionais. O resultado tem sido a maior capacitação tecnológica ao longo de toda a cadeia.
Maior capacitação tecnológica é visível
“O aumento da P&D de montadoras e grandes fabricantes de autopeças multinacionais no país tem contribuído, ao longo do tempo, para a criação de uma base de fornecedores que está acumulando competências consideráveis para competir num mercado global exigente. E isto é fator de atração de investimentos das multinacionais em subsidiárias locais”, afirma Rubia Quintão, que desenvolveu a pesquisa no âmbito do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT).
O professor Ruy Quadros, orientador da tese, coordena dentro do DPCT o Grupo de Estudos em Empresa e Inovação (Gempi), que desde 1997 realiza estudos sobre o setor automotivo, focando o desenvolvimento de inovações e a capacidade de inovação das empresas. “Nosso primeiro projeto visou investigar o que aconteceria com a indústria automotiva no Brasil frente ao processo de globalização”.
Segundo o docente, a hipótese original do projeto seguia a linha sustentada por vários pesquisadores de que as multinacionais centralizariam as atividades de P&D nas matrizes, passando simplesmente a transferir projetos de produtos prontos para as subsidiárias. “Não foi o que encontramos. Já naquela época, empresas como GM e Fiat apostavam num conceito de globalização de forma mais descentralizada. Utilizamos inclusive a expressão ‘glocalização’, por se tratar de uma globalização com especialização regional”.
Quadros acrescenta que algumas empresas buscaram uma globalização ortodoxa, focada na centralização da engenharia nas matrizes, mas cedo perceberam que isso afetava negativamente sua capacidade competitiva. “Já no início dos anos 2000 estava claro que o Brasil, na verdade, passou a ser não apenas uma base de produção, mas também de engenharia de desenvolvimento”.
Em sua tese, Rubia Quintão procurou saber até que ponto as subsidiárias das montadoras e autopeças têm incorporado os fornecedores locais neste esforço de aumento de atividades tecnológicas. Ela investigou 14 empresas, sendo seis multinacionais: ArvinMeritor (Sistemas para Veículos Comerciais), Bosch (Divisão Gasoline Systems), Eaton (Divisão de Transmissões), Mahle Metal Leve, Visteon e ZF-Sachs (Laboratório de Materiais de Fricção) e oito nacionais: Arteb, Fras-le, Freios Master, Letandé, Lupatech/Steelinject, Sabó, Sifco e Suspensys.
Para observar os níveis de capacidade tecnológica alcançados pelas empresas, a pesquisadora baseou-se nos principais eventos inovativos, onde são apresentadas inovações já consolidadas no país. “Um evento inovativo permite estudar como as empresas interagem, já que as inovações geralmente estão ligadas à mesma plataforma que a montadora está desenvolvendo. Pode-se, assim, identificar a contribuição em P&D que a fornecedora oferece ao cliente”, explica o professor Quadros.
Cinco grupos Rubia Quintão identificou padrões de trajetórias de capacitação tecnológica que dividem as empresas de autopeças em cinco grupos. O primeiro grupo é o de subsidiárias de multinacionais cujas capacidades foram adquiridas primordialmente por meio da compra de outra empresa.
“Temos o exemplo da Eaton, que adquiriu a Clark, de Valinhos, absorvendo dela a capacidade para produzir transmissões de automóveis e caminhões. Outro caso é o da Mahle Metal Leve, que comprou a Cofap interessada na divisão de anéis, mas que investiu ainda mais, fazendo com que a empresa mantenha desenvolvimentos globais nessa área”, ilustra a pesquisadora.
No segundo grupo estão as multinacionais que já desenvolviam atividades tecnológicas na fase de proteção, antes da internacionalização do mercado, e que intensificaram seus esforços de P&D para melhor concorrer no mercado globalizado casos da ArvinMeritor, Bosch e ZF-Sachs. O terceiro grupo traz as subsidiárias com atividades tecnológicas limitadas e que mudaram pouco neste período, como a Visteon.
Em seguida vêm as empresas nacionais. No quarto grupo, aquelas que desenvolveram longa trajetória de capacitação, iniciada com transferência de tecnologia do exterior, mas seguida de esforços de aprendizado significativos e independentes. “Neste grupo estão empresas como Arteb, Lupatech/ Steelinject e Sabó que alcançaram o estágio avançado de capacidade de inovação”.
O último grupo é composto por empresas nacionais de trajetória tecnológica mais recente e marcada pela forte transferência de tecnologia dos seus principais clientes. Surgiu aí uma interessante parceria entre a Bosch e a Letandé (empresa de chicotes elétricos) que resultou na patente conjunta de chicote para sistema de bomba de combustível que funciona tanto a gasolina quanto a álcool (sistema flex fuel).
Ruy Quadros informa que a introdução do álcool exigiu a vedação das áreas de contato cujo ambiente é mais corrosivo. Ele lembra que a Letandé, que estava praticamente falida, a partir do contrato com a Bosch capacitou-se e passou a crescer de forma sustentável por vários anos.
Três níveis A matriz teórica utilizada por Rubia Quintão divide as empresas pesquisadas segundo os níveis de complexidade tecnológica básico, intermediário e avançado de produto ou processo, alcançados através dos eventos inovativos desenvolvidos por elas.
O professor Quadros esclarece que esta classificação refere-se a um ciclo. “A empresa que está no nível básico geralmente licencia uma tecnologia fora do Brasil e a princípio é capaz de promover pequenas adaptações para produzi-la aqui, como mudar o material para outro menos corrosivo, ou adequá-la para a motorização brasileira, que é mais baixa”.
As empresas passam ao nível intermediário quando desenvolvem uma engenharia com maior competência, dedicando-se a inovações incrementais, ou seja: não se trata mais do produto meramente adaptado, mas de um produto substancialmente melhorado a partir do produto licenciado. “Se, depois, a empresa projeta um produto próprio, incorporando tecnologia não existente, passa a ter capacidade de inovação, atingindo o nível avançado”.
Na amostra de 14 empresas, a autora da tese encontrou sete no nível avançado, entre elas as nacionais Arteb, Lupatech/Steelinject e Sabó. As sete foram responsáveis por 41 patentes depositadas de 1994 a 2003 e 36 concedidas entre 2001 e 2003. “Este é mais um indicador de que essas empresas já geram tecnologias desenvolvidas através de suas próprias capacidades tecnológicas”.
Mais D e menos P Ruy Quadros deixa claro, contudo, que no Brasil se faz muito mais desenvolvimento experimental do que pesquisa tecnológica. Ele informa que a GM, que possui o maior contingente de engenharia de desenvolvimento, mantém cinco centros globais de engenharia de desenvolvimento, um deles no Brasil e os outros na Austrália, Coréia do Sul, Alemanha e Estados Unidos.
“Um centro de desenvolvimento estrutura a engenharia e está dentro do conceito de P&D, mas é distinto da parte de criação de tecnologias novas. E os dois centros tecnológicos da GM estão nos Estados Unidos e na Europa. De qualquer forma, esta concentração no desenvolvimento é uma etapa nova, que não existia no Brasil”, afirma o professor.
Rubia Quintão conta que, na literatura da década de 1990, previa-se que havendo desenvolvimento de produtos localmente, ele estaria concentrado entre montadoras e grandes empresas de autopeças multinacionais, como Bosch e ZF-Sachs. No entanto, a descentralização da engenharia que as matrizes vêm implantando no mundo, favorece a engenharia nas empresas brasileiras, que alia capacidade técnica e baixo custo.
“Os fornecedores localizados no Brasil que possuem um nível de capacidade tecnológica avançado são capazes de compor a inovação do cliente e manter com as montadoras vínculos voltados para inovações”, observa a pesquisadora.
Universidades Um objetivo secundário na tese foi avaliar os vínculos para capacitação tecnológica que fornecedores de autopeças estabelecem com universidades e institutos de pesquisa. Como em outras pesquisas realizadas pelo Gempi, Rubia Quintão constatou que as empresas, geralmente, buscam estas instituições para promover adaptações ou melhorias em produtos ou componentes, além da formação de mão-de-obra especializada.
No entanto, entre as empresas nacionais há uma demanda por projetos de pesquisas de maior fôlego, importantes para a melhoria de produtos e processo. “Grande parte das empresas, principalmente as multinacionais, busca os laboratórios da universidade para prestação de serviços e testes, cuja solução exige conhecimento mais aprofundado de engenharia”, afirma Rubia Quintão.