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À esquerda Imagens que ilustram os Princípios da Arte da Memória ? Agostino Del Riccio, Arte della Memoria Locale, Biblioteca Nacional, Florença; acima, Teatro Secundário ? R. Fludd, Ars memoriae

‘A memória do arquivo é uma resposta
à sensação
de fluidez das ancoragens'

JU – Argumenta-se também que, em última análise, poderia provocar uma crise institucional.

Seligmann – Este é o argumento tácito, ninguém precisar afirmar, está ali, é latente. Trata-se de um ponto de vista não só defendido como também praticado pelo governo. Há até uma publicação importante do ano passado em que consta a biografia de 400 desaparecidos. Por outro lado, o governo não está correspondendo àquilo que desejava uma determinada camada da sociedade. Existem, por exemplo, sobreviventes que foram perseguidos, e os solidários, que cobram mais ação do governo. Existem também as posições mais extremas. Já os próprios representantes do governo militar, quando irrompem discursos e protestos contra os culpados pela violência da ditadura, classificam os adversários de revanchistas. Eles tentam desqualificar e descartar qualquer investigação mais aprofundada.

JU – Em artigo recente, o senhor escreve que “apesar do espaço, ou seja, dos locais e territórios, onde a memória sempre lançou suas âncoras, vivemos em uma era de aceleração e, conseqüentemente, de amnésia”. Quais são as conseqüências mais visíveis dessa aceleração?

Seligmann – Pensando em termos mais universais, podemos pensar na mudança da nossa relação com a tradição, o passado e a memória. Vimos ao longo do século XX – com o processo de desenvolvimento do capitalismo –, o deslocamento de milhões de pessoas que deixaram para trás suas origens. Enfim, uma série de mudanças socioeconômicas levaram as pessoas a terem um outro tipo de relacionamento com seus espaços – incluídos, aí, a perda de contato com a sua cultura e tradição.

A tecnologia internet, por exemplo – também tem um papel importante nesse fenômeno de super-aceleração. Nesse âmbito, constatamos uma espécie de perda de determinados referenciais espaço/temporais. Essa mudança pode ser descrita como uma entrada numa era na qual a gente não tem mais esse chão sob os pés. Não reconhecemos mais as inscrições do passado. As pessoas dificilmente moram hoje numa casa onde habitaram seus antepassados. São esses deslocamentos e essas acelerações que colocam essa memória em estado de fluxo.

JU – Qual seria a resposta a esse estado de coisas?

Seligmann – O discurso da memória do arquivo, que se desenvolve no final do século XX, é uma espécie de resposta à nossa sensação de fluidez da tradição e das ancoragens da memória. Existe hoje uma espécie de narrativa de resistência, truncada, mas que se dá. Ela, que está presente com recorrência na literatura, no cinema e nas artes em geral, tem a ver com a construção da identidade – e com a dificuldade em construí-la – numa era de aceleração.

JU – A arte funcionaria como escape?

Seligmann – Não sei se dá para afirmar que é um escape. No caso da arte, cabe registrar que essa inserção é paradoxal, já que ela participa também da dissolução das referências. Podemos ver na própria literatura os efeitos, digamos, dessa liquefação da tradição. Por outro lado, é uma tentativa de inscrição, de construir um discurso que oriente minimamente a nossa ação. A arte ajuda a construir essas orientações, mesmo que muitas vezes nos desorientando para tentar nos reorientar. Um escritor como o [Samuel] Beckett, cuja narrativa é extremamente fragmentada, nos reorienta, cria novos parâmetros. A narrativa não precisa ser orgânica e linear.

JU – Além das manifestações oriundas do campo das artes, existem outras inseridas no âmbito desse registro?

Seligmann – Há a questão dos arquivos. Eles têm a ver sempre com o poder. O arquivo é uma fonte de informação que permite que se articule determinada construção do passado e uma reconstrução de identidades fragmentadas e emudecidas por conta de violências registradas no passado. Essa querela dos arquivos, que é extremamente interessante, também acontece na América Latina, na Europa, nos Estados Unidos, na Ásia etc. Ela tem a ver com esses embates da memória do mal.

JU – O senhor coordena uma linha de pesquisa no IEL cujo foco são os estudos literários referentes ao testemunho. Quais são o seu alcance e o seu significado?

Seligmann – No Brasil trata-se de uma questão que vinha sendo mais estudada pelos antropólogos e por determinados historiadores. O que podemos considerar mais recente é uma preocupação no âmbito dos estudos literários referentes ao testemunho. Existem alguns equívocos que perpassam essa idéia da literatura e sua relação com o testemunho.

JU – Quais seriam?

Seligmann – A expressão literatura de testemunho faz com que algumas pessoas pensem que exista um gênero. Na verdade, ele não existe. O século XX nos ensinou a ler todo e qualquer produto cultural como possuindo traços testemunhais. Parafraseando Walter Benjamin, aprendemos que todo o documento de cultura é um documento de barbárie. No fundo, é essa a idéia que está por debaixo da pesquisa sobre o testemunho.

Podemos aprender a ler Graciliano Ramos, Jorge Amado, Machado de Assis, João Cabral de Melo Neto, entre outros, do ponto de vista de questões históricas que estão sendo trabalhadas nas suas respectivas obras. Mas não se trata de analisar estas obras sob a perspectiva da “teoria do reflexo”, que durante muito tempo se aplicou no Brasil.

JU – O que pode mais ser levado em conta?

Seligmann – Podem ser levadas em conta muitas questões, entre as quais como os referidos embates de memória se articulam nestas obras. A memória é tanto individual, coletiva e pode chegar a uma dimensão nacional e ir além dela. Além disto aprendemos agora a levar em conta a dificuldade de articulação de situações traumáticas. A idéia da realidade como trauma desloca a questão da representação. Não existe, quando a gente está falando de uma realidade traumática, a possibilidade de uma representação no seu sentido tradicional. O trauma tem a ver com os limites da linguagem e da representação. Pensar a realidade como trauma implica um diálogo da teoria da representação com a psicanálise. De resto, a nossa linha de pesquisa quer ser também uma contribuição metodológica que também tem uma faceta política.

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