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Os escaninhos da memória

ÁLVARO KASSAB

O professor Márcio Seligmann-Silva, do IEL, coordenador da coleção Espaços da Memória, em corredor do IEL: livros impõem debates éticos e políticos (Fotos: Antoninho Perri/Reprodução)Os livros A arte da memória, da historiadora da arte Frances A. Yates, e A memória, a história, o esquecimento, do filósofo Paul Ricœur (leia sinopses na página 7), recém-lançados pela Editora da Unicamp, inauguram a coleção Espaços da Memória, cuja coordenação está a cargo de Márcio Seligmann-Silva, professor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). Na entrevista que segue, o intelectual analisa as duas obras, tidas como clássicos do gênero, e fala sobre o papel da memória nos dias de hoje. “A memória tem a ver com o presente, embora sempre seja vista como coisa do passado. Ela é uma construção do presente, está sempre voltada para questões atuais. Se você silencia os discursos da memória, você está na verdade silenciando potenciais agentes de poder. O teatro da memória é eminentemente político”, afirma o docente, que dá também uma panorâmica sobre a linha de pesquisa que coordena no IEL, cujo foco são estudos literários referentes ao testemunho.

Detalhe da primeira página da Ars memoriae (Robert Fludd, Utriusque Cosmi...Historia, I, Oppenheim, 1619)Jornal da Unicamp – Quais são as contribuições que a coleção Espaços da Memória pode dar aos estudos acadêmicos? Que tipo de lacuna ela vai preencher?

Márcio Seligmann-Silva – A coleção nasceu a partir de uma necessidade que eu tinha como professor. Constatei que faltavam traduções e livros voltados especificamente para as discussões relacionadas à questão da memória. Percebi que, trabalhando com a questão da memória em sala de aula ou participando de congressos, havia uma certa carência de coleções importantes sobre o assunto. A coleção tenta abarcar então um amplo espectro de autores de obras que tratam do tema. Ela tem uma temática que permite articular diversas obras, ultrapassando os limites e barreiras disciplinares, e sugerindo debates que são inclusive políticos e éticos. Estes dois primeiros livros são emblemáticos nesse sentido. Embora sejam de linhas diferentes, tratam do assunto com profundidade.

JU – A que o senhor atribui esta carência?

Seligmann – Os títulos dentro dos estudos da memória são normalmente caros e volumosos. Existe também a impressão de que se trata de uma linha de trabalho muito difícil e especializada demais. Eu e os demais integrantes da comissão editorial da coleção gostaríamos de mostrar que a teoria da memória perpassa na verdade todos os debates relacionados às ciências humanas.

JU – Em que medida?

Seligmann – Na verdade, ao longo de todo o século XX ocorreu um processo de autoconsciência acerca do significado e dos discursos da memória, que muitas vezes eram relegados a um segundo plano por serem considerados discursos subjetivos e não-científicos. A memória, por exemplo, tem a ver com fotografia, com coleção de objetos, com emoções, com tentativas fragmentadas de articular narrativas etc.

Na primeira metade do século XX, o historiador Maurice Halbwachs, que é citado por Paul Ricœur, estabeleceu a idéia da memória articulada aos seus espaços. Outros autores, também da primeira metade do século XX, entre os quais Marcel Proust e Walter Benjamin, vão desenvolver uma original concepção memorial da cultura.

A memória tem a ver com o presente, embora sempre seja vista como coisa do passado. Ela é uma construção do presente, está sempre voltada para questões atuais. Se você silencia os discursos da memória, você está na verdade silenciando potenciais agentes de poder. O teatro da memória é eminentemente político.

JU – O senhor poderia exemplificar?

Seligmann – Você silencia determinados agentes sociais que devido à exclusão não podem emitir a sua versão, a sua narrativa da história. A memória, portanto, tem a ver com uma contra-história, o que Benjamin chamava de escovar a história a contrapelo. Normalmente ela estabelece-se de um ponto de vista mais ligado aos vencidos, em oposição à historiografia, feita pelos vencedores que dominam a produção do saber institucionalizado.

JU – Quais são as diferenças entre a obra de Frances A. Yates e de Paul Ricœur?

Seligmann – A arte da memória, da Frances A. Yates, é um clássico do discurso da memória. O livro foi publicado em 1966. Frances Yates era uma historiadora da arte ligada à Escola de Warburg, cuja sede ficava na Alemanha e migrou para a Inglaterra em razão do nazismo. A escola reunia vários historiadores da arte muito importantes, entre os quais Erwin Panofsky, Fritz Saxl, Edgar Wind e Ernst Gombrich. Em A arte da memória, ela faz um trabalho muito interessante sobre a tradição da mnemotécnica, ou seja, a arte da memória. A partir desta tradição antiga ela lançou as bases para uma história cultural calcada no discurso e nas estratégias da memória.

Ela mostra como uma técnica muito antiga, que foi desenvolvida na Grécia, tem certos substratos culturais e até mesmo antropológicos que permaneceram ao longo da história. O livro não só mostra a história dessa técnica, mas também como ela vai se transformando ao longo dos séculos. Por meio dessa técnica, podemos explicar o funcionamento da nossa memória. Ela estabelece, por exemplo, uma relação de reciprocidade entre as palavras e as imagens. Trata-se de um dado importante para nós hoje em dia, que assistimos a essa virada imagética. A tradição da arte da memória em si traz essa tradição da arte imagética de inscrição. Yates vai mostrar, por exemplo que, na Idade Média, essa arte da memória foi se misturando com certos elementos neo-platônicos e cabalísticos e também estava na origem da enciclopedística tanto medieval como moderna. Trata-se de um livro que nos ensina a ler a história da arte e da cultura de um modo geral a partir do ponto de vista da teoria da memória.

Por exemplo, Frances nos mostra como, na igreja, o nicho e a disposição das imagens estão voltados para a construção da memória de um determinado texto cristão que deve ser passado para a pessoa que freqüenta a igreja, o que é uma transposição dessa antiga técnica da memória em termos de uma escritura arquitetural.

JU – E A memória, a história, o esquecimento, de Paul Ricœur?

Seligmann – Trata-se de uma espécie de obra máxima do filósofo. O livro traz o peso de uma vida de um grande intelectual que soube trabalhar de modo rigoroso com a hermenêutica e com a psicanálise, com a teoria da história e a da narrativa. Ricœur dominava diversas áreas do saber filosófico. Ele sempre esteve preocupado com a questão da narrativa e da memória e, nos últimos anos de sua vida, se voltou para esse debate muito intenso que estava acontecendo sobre a questão memória do mal no século XX. Este livro é uma das obras mais complexas e interessantes sobre essa questão dessa história do mal.

Como tratar e lidar com ela? Nós tivemos, por exemplo, na América Latina, uma herança muito grande do mal cometido por ditaduras militares. Na Argentina, são muitos os protestos contra os raptos de crianças por parte dos militares e do desaparecimento de opositores do regime. Já no Brasil, a resposta é muito mais tímida.

JU – Paul Ricœur afirma em seu livro que um de seus temas cívicos confessos é a idéia de uma política da justa memória. Isso é factível?

Seligmann – Este livro do Ricœur deflagrou um enorme debate na França ao defender a idéia do perdão. Para ele, o perdão não deveria ser totalmente descartado, mesmo diante de atrocidades. Porém, o fato de Ricœur defender o perdão não significa que ele vai também negar a necessidade da memória jurídica. Ele acha que o perdão está numa outra esfera. O debate sobre o perdão é paradoxal – ele só existe porque trata de algo que é imperdoável... No limite, acaba passando para um campo metafísico; seria uma espécie de metafísica do perdão. O fato de ele defendê-lo, não vai tornar sua obra menos importante, já que seu argumento é absolutamente rigoroso e muito sólido.

JU – Quais são suas bases?

Seligmann – Ele passa por todo o debate sobre essa questão da memória do mal no século XX. Ele estuda a historiografia e a condição histórica, o tema do esquecimento e da anistia. Isto, para mim, é mais importante inclusive do que o fato de Ricœur fazer a defesa do perdão. Muitos autores descartam o perdão, e eu tendo mais a concordar com esta tese. Mas a idéia é pensar como a memória do mal não se transforme em pólvora para conflitos futuros. Não se trata de alimentar os ciclos de vingança, muito pelo contrário. Trata-se de moldar uma cultura moral e política que impeça que as atrocidades aconteçam novamente. O livro de Ricœur foi publicado em 2000 e ele morreu em 2005. Ele estava muito engajado nesse debate, que é muito vivo e teve início há pelo menos três décadas. Sua voz era muito importante.

JU – Qual a importância da memória nos dias de hoje?

Seligmann – Como disse anteriormente, os discursos da memória articulam questões de poder e de política. Se tomarmos como exemplo o caso brasileiro, constatamos que existem várias vozes com relação ao período da ditadura militar. No caso do governo federal, que conta com muitos integrantes perseguidos pela ditadura, há uma resistência muito grande quanto à abertura dos arquivos que estão em poder dos militares e quanto ao fato de levar adiante a busca das valas coletivas.

JU – Por que isso ocorre, na sua opinião?

Seligmann – Porque nestes casos começamos a entrar nos campos das provas – e, conseqüentemente, comprovações – que poderiam levar eventualmente a processos.

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