Está em discussão no Senado um projeto de lei de autoria do senador Expedito Júnior com o objetivo de regulamentar a profissão de analista de sistemas, com exigência de diploma em curso de graduação específico para atuação profissional na área de informática (PL607/2007).
O Brasil sabidamente possui uma cultura cartorial. Em muitos casos, segmentos da sociedade brasileira, por dificuldades em se organizar adequadamente de forma independente, preferem delegar ao Estado a tarefa de regular uma determinada atividade. Em termos de profissões, é impressionante o número de atividades já regulamentadas e mais impressionante ainda a lista de projetos de lei, ativos e arquivados, que visam a regulamentação de profissões. Uma pesquisa na página do Congresso revela que estão em tramitação atualmente, entre outros, projetos de lei que visam a regulamentar as profissões de técnico em saúde bucal, cabelereiro, barbeiro, esteticista, manicura, pedicura, depilador e maquiador, geofísico, musicoterapeuta, yoga, cerimonialista e treinador de goleiros de futebol.
Em uma profissão regulamentada, a permissão para atuar na profissão é baseada, no modelo mais freqüente, na obtenção de um diploma de graduação em um curso específico. Para exercer aquela atividade, o profissional deve obrigatoriamente registrar-se junto ao conselho de profissão. Para permitir o funcionamento do respectivo conselho, os profissionais devem pagar uma taxa de contribuição anual. Para algumas profissões, como a de médico, a regulamentação rígida exemplificada acima, com base em diploma, é o melhor meio encontrado para proteção da sociedade. Em outras profissões, a regulamentação baseada em diploma é não somente desnecessária mas prejudicial aos interesses da sociedade.
Sem discutir o mérito individual dos projetos de lei em tramitação no Congresso, e de outros já aprovados, é interessante lembrar que a regulamentação de uma profissão, e a criação de um conselho de profissão, devem ser feitas com o intuito único de proteger a sociedade. A missão de um conselho de profissão é normatizar a atividade profissional na área, pela fiscalização da atuação dos profissionais, pelo julgamento de possíveis desvios de conduta, e se necessário pela aplicação das punições cabíveis eventualmente suspendendo ou até mesmo impedindo para sempre o exercício da atividade por maus profissionais. Mas a impressão que se tem é que algumas categorias profissionais imaginam que a regulamentação da profissão, ao invés de proteger a sociedade, deveria ser utilizada para proteger os interesses dos próprios profissionais, ajudando a resolver todos os problemas que a categoria enfrenta e que seriam melhor resolvidos com a existência de associações de classe e sindicatos fortes e atuantes.
Nos dias de hoje, a multidisciplinaridade é um dos principais fatores no desenvolvimento de inovação e na melhoria de desempenho de pessoas, sistemas e processos. E a área de informática é um dos mais importantes pontos de confluência entre diversas disciplinas, gerando novas competências e modificando antigas profissões. Em muitas das novas competências é essencial ter conhecimento em mais de uma área, como biologia e informática (bioinformática), robótica e computação (mecatrônica), e outras. A regulamentação da profissão na área de informática em moldes antigos, como uma profissão estanque, dificultaria muito a saudável interação existente com outras áreas.
A restrição do exercício da profissão na área de informática a detentores de diplomas de alguns cursos não condiz com a realidade, nem no Brasil nem no exterior. Em nenhum país com economia avançada essa restrição existe: Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha, Japão, Itália, Canadá, por exemplo, não restringem a atuação de profissionais da área. Nossos concorrentes diretos na busca por atração de oportunidades na área de computação e informática, em especial Índia, China, Irlanda e Rússia, também não colocam qualquer restrição à atuação na área. Se a profissão fosse regulamentada na Suíça, Tim Berners-Lee não teria inventado e implementado a primeira versão da World Wide Web, já que ele tem um diploma de Física. Raymond Samuel Tomlinson, com diploma de engenharia elétrica, fosse a profissão regulamentada nos EUA, não teria construído o primeiro sistema de correio eletrônico. Bill Gates, primeiro programador e fundador da Microsoft, não terminou seu curso de graduação em Harvard e não poderia ter trabalhado na área e iniciado a maior empresa de software do mundo. Da mesma maneira, Steve Jobs, contemporâneo de Gates, não teria respaldo legal para projetar e desenvolver os primeiros microcomputadores e fundar a Apple, companhia responsável pela popularização dos computadores pessoais e que é responsável por introduzir inúmeras inovações na indústria de computadores pessoais, como o uso de janelas e mouse, e pela criação do iPod e iPhone.
Soluções avançadas E como fica o movimento de software livre? O desenvolvimento de software de forma cooperativa e distribuída é um dos exemplos mais interessantes e bem-sucedidos do uso da tecnologia da Internet para o bem da sociedade. Pessoas com interesses comuns e conhecimento de programação têm desenvolvido soluções avançadas de software, de alta qualidade, que são utilizadas gratuitamente, tanto por empresas, governos ou indivíduos. Através de mecanismos às vezes complexos de revisão para garantia de qualidade, a comunidade de software livre consegue permitir que qualquer pessoa contribua no desenvolvimento dos aplicativos. As contribuições são aceitas considerando-se exclusivamente a qualidade do código produzido, não importando a nacionalidade, a formação escolar ou a profissão do contribuinte. Muitos médicos, engenheiros, músicos, físicos, biólogos, dentistas, matemáticos e outros profissionais participam ativamente do desenvolvimento de software livre, com o conhecimento em programação adquirido de forma autodidata. Com a aprovação de uma regulamentação da profissão baseada em diploma, como preconiza o PL607/2007, essas pessoas estariam agindo ilegalmente ao contribuir com a comunidade de software livre.
Há ainda vários outros argumentos contra a regulamentação rígida, baseada no diploma. A regulamentação não se aplicaria a profissionais trabalhando em outros países, de forma que as empresas poderiam contratar profissionais fora do país para desenvolver produtos que seriam vendidos no país, criando uma reserva de mercado ao contrário, para estrangeiros. O Brasil já tem atualmente um grande déficit de profissionais na área de informática, e esse déficit tende a crescer, considerando que o mercado de software e serviços de TI no país deve crescer 15% ao ano, saltando de R$ 10,46 bilhões em 2007 para R$ 15,91 bilhões em 2010 (previsão 3B/IDC).
Restringir a atuação de profissionais autodidatas competentes, além de coibir a multidisciplinaridade, certamente não vai contribuir para reduzir o déficit projetado. Dificilmente um profissional da área de informática é diretamente contratado por ou presta serviços para um indivíduo; os profissionais são contratados por empresas, e as empresas já possuem meios legais suficientes, na legislação existente, para resolver pendências e proteger-se de maus profissionais.
No caso específico do PL 607/07, há ainda outras sérias objeções a fazer. O nome sugerido para a profissão, analista de sistemas, soa algo antiquado e não é capaz de captar a enorme gama de atuação dos profissionais de informática. O texto menciona que, para atuar na área, será necessário diploma em um dos cursos entre análise de sistemas, ciência da computação e processamento de dados. No entanto, pelo dinamismo da área, atualmente essas três denominações representam menos de 25% dos cursos de graduação presenciais existentes, sendo que análise de sistemas e processamento de dados representam, juntos, menos de 8% dos 1.622 cursos existentes, segundo o Censo da Educação Superior/INEP (dados relativos a junho de 2006).
Diferentes denominações existem, e novas surgem a cada ano, acompanhando a expansão da área. No entanto, essa não é a questão principal, já que o texto poderia ser facilmente modificado de forma a incluir mais cursos, mas o modelo de regulamentação proposto, obsoleto e retrógrado, que faria o país recuar a passos largos em termos tecnológicos e econômicos.
A Sociedade Brasileira de Computação (SBC) é uma das maiores e mais ativas sociedades científicas do Brasil. Sem fins lucrativos, a SBC reúne pesquisadores, estudantes e profissionais que atuam em pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico nas áreas de computação e informática. Não obstante sua natureza científica, a SBC, desde sua fundação, em 1979, tem se debruçado sobre o tema da regulamentação da profissão na área de Informática. A SBC considera que, no interesse da sociedade brasileira, o exercício de atividades econômicas, ofícios ou profissões relacionadas com a área de informática deva ser livre em todo o território nacional, independentemente de diploma de curso superior, comprovação de educação formal ou registro em conselhos de profissão. A SBC apóia um modelo de regulamentação da profissão em moldes mais condizentes com a sociedade moderna e com as especificidades da área, que garanta o real livre exercício das profissões de informática, e impeça que outros conselhos de profissões existentes tomem para si algumas dessas atribuições, como vem sendo tentado, em grande prejuízo para a sociedade. A SBC propõe ainda a criação de um Conselho de Profissão, de filiação não obrigatória, que seria responsável pela criação, manutenção e aplicação de um código de ética para a área.
Ricardo Anido é professor do Instituto de Computação (IC) da Unicamp