Assim como o curso, que se mostrava inovador para os padrões da época, Cyro Pereira também demonstrava arrojo como professor, como lembra Hermilson. Utilizava como ferramentas pedagógicas materiais produzidos por ele, como gravações e partituras. “Aquilo despertava muito interesse nos alunos porque era representativo do trabalho que ele havia feito ao longo da carreira, sobretudo no rádio e na TV”, conta o autor da tese. Uma das experiências que Cyro Pereira trazia para a academia era a participação, como maestro e arranjador, nos festivais de música popular promovidos pela TV Record na década de 60. “O trabalho dele nesse e em outros segmentos certamente contribuiu para consolidar a MPB moderna”, analisa o pesquisador. A atuação mais destacada do maestro, no entender de Hermilson, deu-se na Orquestra Jazz Sinfônica, criada em abril de 1990 pelos músicos Arrigo Barnabé, que atualmente desenvolve atividades como artista-residente da Unicamp, e Eduardo Gudin.
À frente da orquestra, Cyro Pereira cumpriu como ninguém a tarefa de conferir um tratamento sinfônico à música popular brasileira, principal proposta da Jazz Sinfônica. “Penso que é com esse trabalho que ele assumiu definitivamente a condição de artista diferenciado. Foi com a Jazz Sinfônica que ele conseguiu desenvolver uma linguagem original dentro da música instrumental nacional. Ao mesmo tempo em que tinha uma escrita que se aproximava dos moldes da música de concerto, ele também trabalhava com muita propriedade elementos da cultura popular”, analisa o autor da tese. Conforme Hermilson, até então era raro uma orquestra do porte da Jazz Sinfônica dedicar-se a tal missão.
As primeiras incursões de Cyro Pereira, destaca o pesquisador, foram por meio de “suítes” que traziam temas de um determinado compositor ou clássicos de um dado gênero musical. “Ao fazer um novo arranjo para essas obras, ele conseguia transformá-las, conferindo-lhes nova dimensão. A noção de autoria, nesse caso, perdia um pouco do sentido formal, pois essa ‘nova roupagem’ também assumia a condição de composição”, afirma Hermilson. Tais peças, prossegue o pesquisador, eram relativamente longas, algumas com mais de oito minutos de duração. “Nelas, vários temas eram alinhavados ou até mesmo superpostos, o que gerava outra canção. É diferente do que as pessoas conhecem por pot-pourri, no qual as partes articuladas aparecem claramente. As soluções apresentadas por Cyro são bem mais sofisticadas. Há momentos de polifonia, em que três peças soam ao mesmo tempo. Nesse sentido, embora o Brasil tenha produzido grandes arranjadores, como Luiz Eça e Wagner Tiso, para ficar em dois exemplos, não há paralelo para o trabalho realizado por ele”.
No entender de Hermilson, que foi orientado pelo professor Rafael dos Santos, a obra de Cyro Pereira é “um prato cheio” para identificar conflitos presentes no pensamento musical brasileiro ao longo dos últimos 50 anos. “O trabalho dele revela uma série de tensões, inclusive as relativas à identidade nacional, ao sentimento de brasilidade. Cyro legitima referências de seus mestres, como Villa-Lobos e Radamés Gnattali, mas também trabalha com elementos do jazz, do samba, do clássico e até da música de cinema, ou seja, recursos até então impensáveis dentro da típica música popular”, explica. O legado deixado por Cyro Pereira, que felizmente ainda está vivo, embora com a saúde um tanto debilitada, influenciou outros músicos, como destaca o autor da tese de doutorado. “Apesar de a tendência atual privilegiar arranjos mais curtos, alguns arranjadores ainda navegam nessa corrente”. Sobre o trabalho que tem realizado à frente da Jazz Sinfônica, o maestro deu certa vez a seguinte declaração: “O segredo da orquestra é pegar música popular e dar um tratamento sinfônico caprichado, todo cheio de paetês. Uma moça muito bonita mas mal trajada, ninguém olha para ela. Mas se você der um banho de loja nela, todo mundo vai olhar”.
Perfil Cyro Pereira nasceu em 1929 em Rio Grande, no Rio Grande do Sul. Seu primeiro arranjo orquestral data de 1947. Chegou a São Paulo em 1950, onde não demorou a ser reconhecido como compositor e arranjador. Trabalhou no rádio e, já na década de 60, na TV. Destacou-se como diretor de orquestra durante os festivais da canção promovidos pela TV Record. Na mesma emissora participou de programas musicais de destacada importância, como o “Fino da Bossa”, comandado por Elis Regina e Jair Rodrigues. Recebeu diversos prêmios como compositor e arranjador, entre eles o Troféu Roquete Pinto. A obra de Cyro Pereira obteve alcance internacional, inclusive por meio das composições em jequibau, ritmo criado por ele em parceria com o também músico Mário Albanese.
Em razão da sua extensa experiência, foi convidado para integrar o corpo docente do primeiro curso de graduação em Música Popular do país, oferecido pela Unicamp. Permaneceu na academia de 1989 a 1999. Em 1990, assumiu a função de compositor residente da recém-criada Orquestra Jazz Sinfônica, com a qual conseguiu realizar a desafiadora tarefa de dar um tratamento sinfônico à música popular. Esse trabalho foi coroado com o lançamento, em 1997, do CD “Cyro Pereira 50 anos de música”, que reunia seis composições do homenageado e um arranjo considerado magistral de Carinhoso, obra composta por Pixinguinha e João de Barro. Em 2005, teve a biografia publicada. O livro, intitulado “Cyro Pereira, Maestro”, foi escrito pelo jornalista Irineu Franco Perpetuo.
A orquestra A Orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo é ligada ao Centro de Estudos Musicais Tom Jobim, da Secretaria de Estado da Cultura. Foi criada em abril de 1990 por iniciativa dos músicos Arrigo Barnabé e Eduardo Gudin. No concerto de estréia, ocorrido em Campos do Jordão, município paulista, teve como convidado Tom Jobim. A orquestra já nasceu com a proposta de reduzir as distâncias entre as músicas erudita e popular, ao se impor o desafio de conferir um tratamento sinfônico a esta última. A Jazz Sinfônica reúne numa só formação, por assim dizer, a orquestra tradicional e a big-band. Além de Cyro Pereira, seu compositor residente, a Jazz Sinfônica tem como diretor artístico João Maurício Galindo. O regente assistente é Fábio Prado.