Claudine Haroche esteve na Unicamp para apresentar seu último livro, que em francês é intitulado L’avenir du sensible: les sens et les sentiments en question (O futuro do sensível: os sentidos e os sentimentos em questão), em concorrida palestra no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), no dia 10 de abril. A obra reúne ensaios que resultam de mais de 20 anos de pesquisas e reflexões sobre sensibilidade e formação da cultura. A edição em português, com lançamento previsto para fins de maio, terá o título ligeiramente modificado para A condição do sensível: os sentidos e os sentimentos em questão.
A pesquisadora explica que os ensaios trazem uma abordagem antropológica e sociológica, ou seja, transdisciplinar, e que escritos de autores como Marcel Mauss e Norbert Elias muito a inspiraram na elaboração dos textos. “Gostaria de precisar, entretanto, que nunca quis me encerrar dentro do pensamento de nenhum autor, mesmo quando se trata de Hannah Arendt, na qual me reconheço completamente. Parece-me necessário construir problemáticas, objetos suscetíveis de iluminar o mundo contemporâneo”.
Claudine Haroche concentrou-se principalmente na questão das formas e das maneiras, objeto de dois artigos de Marcel Mauss que considera como fundadores: As técnicas do corpo e Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a noção do eu. “Na primeira parte do livro, abordo os séculos 16 e 17, período em que foram publicados tratados de civilidade, educação e formação das maneiras, como as de dirigir-se ao príncipe”.
Segundo a socióloga, esses tratados ofereciam a aprendizagem da moderação e a educação da postura, gestos e atitudes. “A moderação supõe uma representação distinta do corpo, uma relação com o limite. É esta relação que instala o sujeito no seu lugar e permite a sua existência. A moderação se traduz em gestos e teve o seu papel na construção da identidade social”.
Assim, na sociedade de corte, enquanto a cadência e a lentidão dos passos davam majestade ao rei, o indivíduo tinha sua posição hierárquica definida pela distância ou proximidade com sua majestade. “Este lugar indicava uma repartição específica dos indivíduos no espaço e as posturas e atitudes contribuíam para exprimir deferência, consideração, respeito e dignidade em função do valor social que se reconhecia no outro”.
Depois do exame da sociedade de corte como sociedade regulada por formas e ritos, Claudine Haroche, na segunda parte do livro, chega ao século 20. “Num contexto radicalmente diferente, surgem reivindicações insistentes em torno de direitos políticos, sociais e também morais, bem como à consideração, reconhecimento e respeito”.
De acordo com a autora, traçam-se fronteiras sociais, mentais e psíquicas entre indivíduos, regulando distâncias e proximidades entre grupos, no intuito de impedir o corpo-a-corpo que poderia levar à violência. “Há um capítulo em que examino o crescimento do informal nas sociedades contemporâneas, que são individualistas e narcisistas”.
A partir do evento dos movimentos de juventude na Alemanha de 1918 a 1933, a pesquisadora registra o desenvolvimento do espírito corporativo. “Ele se desenvolve da forma mais avassaladora: é o espírito de grupo, de clã, que Freud tanto temia. Reflete a fusão dos corpos e dos espíritos, em que os indivíduos se agregam em comunidades de emoções, manifestando agressividade e violência, violência intensa e sem limites”.
Lembra também que Norbert Elias, em seus estudos sobre os alemães, já havia discernido a dimensão ameaçadora do crescimento do informal contemporâneo, com processos de desinstitucionalização, desrritualização e desrritmização. “Minha intenção foi mostrar que, no presente, as sociedades atravessam uma fase de fluidificação e de transtornos sociais, políticos e tecnológicos semelhantes aos de um século atrás”.
Ser e sentir Claudine Haroche dedica a terceira parte do livro à Exteriorização da interioridade, abordando as maneiras de ser e de sentir do indivíduo contemporâneo. “Antes, a estabilidade, a continuidade e o engajamento constituíam valores e maneiras de ser que eram encorajados na vida profissional e entre amigos. Hoje, o deslocamento, a evitação, o desengajamento é que estão definindo e valorizando os comportamentos”.
Na opinião da autora, as relações que ligam os indivíduos uns aos outros, agora são fugazes, efêmeras, inconstantes, desengajadas. “O indivíduo é marcado pela fragmentação, a descontinuidade para consigo mesmo, sendo inapreensível pelos outros. Obviamente, estou me referindo às sociedades democráticas ocidentais, que com a globalização tornaram-se relativamente sem fronteiras”.
O processo de encolhimento da consciência é analisado na quarta parte do livro. A socióloga explica que em fins do século 19, a desrritmização foi acompanhada de uma desorganização da vida psíquica e de uma mutação qualitativa dos sentidos. “Para Walter Benjamin, a tecnologia produziu efeitos mecânicos que colocam em questão os sentidos e a própria consciência”.
A ausência de formas e de mediação, no raciocínio da pesquisadora, se traduz em um imediatismo que encoraja a superficialidade tanto nos mecanismos de entendimento como nos de percepção. “Essa superficialidade, segundo Benjamin, se deve a uma defasagem entre as maneiras de ver e a capacidade de sentir. A dificuldade e mesmo a incapacidade de representar a si mesmo, acarreta em empobrecimento interior”.
Claudine Haroche observa que o estado de fluidez que envolve a sociedade de hoje pode, com o tempo, resultar em estados de indistinção entre o real e o virtual, atingindo a vida da representação. “Neste mundo fluido, a espacialidade, a temporalidade, os ritmos, o senso que o funcionamento democrático propunha, foram em parte esvaziados de sua significação pela rapidez, instantaneidade e o caráter contínuo e ilimitado”.
Resistência A autora ressalta, entretanto, que há resistências. Por isso, embora o título do seu livro remeta a O futuro de uma ilusão e O mal-estar da civilização, de Freud, ela evitou o termo ‘mal-estar’. “Preferi ‘o futuro’ porque ele é aberto e traz sempre uma parte inédita. Creio que existem resistências, conscientes ou não, que podem desacelerar esses fluxos sensoriais e informacionais incessantes”.
Para a pesquisadora, é preciso se conscientizar de que as sociedades disciplinares foram substituídas por sociedades de controle, e que os corpos disciplinados de antigamente deram lugar a corpos fluidos. “No plano corporal, os modelos mecânicos e disciplinares foram em parte abandonados e deixados no lugar a arritmia profunda e uma sensação de fadiga permanente”.
Por isso, Claudine Haroche fala de um futuro no qual esta ritmização da corporeidade ceda lugar para uma alternância entre a parada e o movimento, protegendo o espaço interior. “O indivíduo precisa do sentimento de ser agente. Os meios de comunicação internet, e-mail, televisão nos colocam numa posição de passividade. As pessoas precisam de conversas, de relações sensíveis e intelectuais, não podem passar a vida na frente de telas”.
Percurso transdisciplinar
A professora Maria Stella Martins Bresciani informa que Claudine Haroche mantém vínculos com o Departamento de História do IFCH desde 1985, tendo participado da fundação do Núcleo de História e Linguagens Políticas. O núcleo vem realizando colóquios no Brasil e na França, dos quais resultaram livros sobre as seguintes temáticas: “Paixão e razão na política”, “Memória e (re)sentimento”, “Humilhação”, “Banalização da violência” e “Alteridade”.
O que chama a atenção é que Claudine Haroche conseguiu fazer um percurso transdisciplinar, que considero muito difícil, pois ela se obrigou a percorrer várias disciplinas ao mesmo tempo. Com formação básica no estudo da linguagem, ela enveredou pela sociologia e a antropologia política, migrando das linguagens oral e escrita para a linguagem da face e do corpo, ou seja, a linguagem gestual, analisando textos de forma competente e sensível”, afirma Stella Bresciani.