Sem
medo da verdade Translado das ossadas de Perus para São
Paulo encerra o trabalho de sete anos na Unicamp MANUEL
ALVES FILHO epois
de sete anos de intensos trabalhos, que culminaram com a identificação
de sete desaparecidos políticos, e de três anos de exaustivas negociações
para dar uma destinação adequada ao acervo, as ossadas encontradas
no Cemitério Dom Bosco, em Perus, foram transferidas da Unicamp para o
Cemitério do Araçá, em São Paulo, onde estão
sob os cuidados da Prefeitura da Capital. O translado encerrou a participação
da Universidade em um dos mais importantes e controvertidos episódios da
história recente do país, deixando um saldo positivo, na opinião
do filósofo Roberto Romano, que preside a Comissão de Perícias
da Unicamp. Para mim, como professor de ética, foi uma experiência
ímpar. A despeito dos problemas ocorridos ao longo do processo, a Universidade
cumpriu o seu papel no campo científico e tecnológico e se manteve
sempre aberta ao diálogo com a sociedade, avalia. A
transferência das ossadas foi realizada em duas etapas. Em 31 de maio foram
os primeiros 50 restos mortais, acondicionados individualmente em caixas plásticas.
Na ocasião, a Unicamp convidou autoridades, familiares dos desaparecidos
políticos e organizações dedicadas à luta em favor
dos direitos humanos para participar de um ato público realizado diante
do columbário (edifício que abriga urnas funerárias) do Cemitério
do Araçá. O reitor da Universidade, Hermano Tavares, reafirmou na
oportunidade o compromisso da instituição com as principais causas
sociais do país e assegurou que a Unicamp não tem medo da
verdade, numa referência às críticas sobre as eventuais
falhas cometidas ao longo do trabalho de identificação. Uma semana
depois, as 994 ossadas restantes foram levadas ao Araçá, sob a coordenação
do legista José Eduardo Bueno Zappa, contratado como consultor técnico
da Comissão de Perícias. Questão
ética Para o filósofo Roberto Romano, o Projeto Perus,
como foi denominado pela Unicamp, permitiu que ele tomasse um caso complexo e
o acompanhasse não como observador, mas como personagem. Isso me
deu condições de pensar a questão universitária, a
questão da ciência, a questão da ética e a questão
do relacionamento da Universidade com o Estado e com a sociedade em geral,
afirma. Tratava-se, segundo o intelectual, de um dos casos mais doloridos da consciência
nacional. Primeiro, porque tínhamos um trabalho de verificação
da identidade de restos mortais de pessoas que lutaram contra a ditadura militar.
Mas esse fato se somava a outro tão grave quanto, que é a questão
de também serem ossadas de brasileiros enterrados anonimamente, sem nenhum
rito religioso ou civil. Isso
mostra que, em termos de vida social, nós beiramos o limite da barbárie,
avalia. Toda
essa situação dolorosa, conforme o presidente da Comissão
de Perícia, envolveu os mais variados interesses políticos, ideo-lógicos,
morais, religiosos, científicos e técnicos. Cada um desses elementos,
destaca o professor, tinha razões ponderáveis para defender sua
causa e atacar a causa alheia. Os cientistas e técnicos da Unicamp tiveram,
principalmente na primeira parte do trabalho, uma ação bastante
eficaz no que se refere à identificação das ossadas. Mas
a partir de certo ponto, por razões de ordem pessoal e institucional, eles
entraram em processo de luta interna. Com isso, o trabalho de identificação
foi prejudicado e a Universidade não pôde apresentar resultados tão
eficientes quanto na fase inicial, afirma Roberto Romano. Embate
interno A disputa a que se refere o filósofo ocorreu dentro
do Departamento de Medicina Legal, que mais tarde foi extinto pelo Conselho Universitário
(Consu). O embate trouxe uma segunda conseqüência, definida por Romano
como um atentado às normas científicas e éticas.
Um exemplo desse procedimento, segundo ele, foi o estado de abandono a que as
ossadas foram submetidas durante um período. Do ponto de vista institucional,
salienta, houve uma cobrança de parte considerável da comunidade
acadêmica na direção de que a Unicamp, após encerrar
os trabalhos de identificação, desse um destino adequado às
ossadas. Entre
as pessoas que exigiam um desfecho positivo para o caso estavam docentes que foram
posteriormente conduzidos à Administração da Unicamp. Segundo
Romano, isso demonstra que não é correto identificar a Universidade
com os problemas havidos no âmbito do DML. É correto, sim,
dizer que as administrações não puderam ou não souberam
levar a bom termo esse trabalho, sobretudo exigindo disciplina de quem de direito.
Mas adverte: Não é certo atribuir erro de um a outro. Em
relação à participação do Estado no episódio,
o presidente da Comissão de Perícias lembra que os trabalhos de
identificação tiveram origem num convênio firmado com a Secretaria
de Segurança Pública. Entretanto, a Pasta dedicou ao caso uma espécie
de atenção intermitente, nas palavras de Roberto Romano.
A Secretaria mostrava-se interessada em resolver o problema, mas nada vinha
em termos concretos, acrescenta. Essa postura, observa o filósofo,
colocou a Unicamp numa situação delicada. A partir do momento em
que foi feito o relatório final dizendo que a Universidade não tinha
mais condições técnicas de prosseguir com o trabalho, a instituição
ficou de posse de um material que não lhe pertencia. Impulso
final A Secretaria de Segurança só começou a se
mover, sustenta o professor, depois que a Reitoria constituiu a Comissão
de Perícias. Uma reunião realizada entre as partes logo em seguida
deu início ao trabalho que culminaria com a transferência das ossadas
para São Paulo. O impulso final só veio quando a Comissão
de Perícias, em conjunto com a Reitoria, convocou uma reunião pública
com os familiares dos desaparecidos políticos, autoridades, organizações
não-governamentais e imprensa. Nessa ocasião, a Secretaria de Segurança
Pública não enviou representante, o que foi denunciado pelo próprio
Romano. No
dia seguinte, o secretário-adjunto de Segurança, Mário Papaterra,
me ligou e se disse aberto ao diálogo. Daí em diante, a Secretaria
demonstrou o claro desejo de resolver o problema, afirma. No último
ano, de acordo com ele, o órgão cumpriu rigorosamente todos os compromissos
assumidos com a Unicamp e os familiares dos desaparecidos políticos. No
que se refere aos parentes das vítimas da ditadura, o presidente da Comissão
afirma reconhecer o direito deles se indignarem com o fato de o trabalho encomendado
à Universidade ter sido feito apenas em parte. Além disso, prossegue
Romano, também é preciso admitir que os familiares dos desaparecidos
fizeram tudo o que estava ao alcance deles para ajudar no esclarecimento da análise
das ossadas. A luta que eles travam para cobrar do Estado brasileiro a responsabilidade
pela morte dos militantes políticos é legítima. A despeito
disso, o professor revela que ficou muito preocupado ao longo das sucessivas reuniões
que manteve com a comissão dos familiares. Continua
...
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