Erundina
ainda se emociona O depoimento de uma figura central para o
resgate de parte obscura da história do Brasil
igura
central dos processos de localização e identificação
das ossadas de Perus, a deputada federal Luiza Erundina (PSB) é apontada
pelas partes envolvidas no episódio como uma das grandes responsáveis
pelo resgate de uma parte obscura da histórica recente do país.
Graças ao empenho pessoal da parlamentar, que na época respondia
pela Prefeitura de São Paulo, é que os restos mortais foram retirados
da vala comum, guardados em segurança e posteriormente transferidos para
a Unicamp. Passados mais de dez anos, Luiza Erundina ainda se emociona ao lembrar
dos apelos feitos pelos familiares dos desaparecidos políticos, que queriam
saber o que teria acontecido com seus filhos, maridos e irmãos. Neste depoimento
a Manuel Alves Filho, do Jornal da Unicamp, concedido numa manhã fria,
em uma sala simples do seu escritório político em São Paulo,
ela fala sobre a sua luta em defesa dos direitos humanos, da dor dos parentes
das vítimas da ditadura e do trabalho executado pela Unicamp. E adverte:
continua alerta e vigilante em relação às ações
dos inimigos da democracia.
Num
primeiro momento, houve a descoberta da vala clandestina e a preservação
das ossadas que foram encontradas lá. Houve, inclusive, ameaças
de pessoas interessadas em ocultar a verdade e levar as ossadas para algum lugar
que não fosse um local em que se tivesse o controle sobre elas. Aí
houve uma interferência pessoal minha, na época em que estava na
Prefeitura. Eu coordenei o processo de transferência das ossadas para a
Unicamp. Conseguimos que a Universidade assumisse a responsabilidade pelas investigações
e pesquisas, para tentar identificar as possíveis vítimas da ditadura
militar. Na época da repressão, eles [os militares] matavam os militantes
envolvidos na luta de resistência à ditadura e simplesmente colocavam
esses corpos numa vala.
Esses
fatos foram revelados na época, inclusive por um funcionário do
Cemitério de Perus, que pôde ver alguns casos de corpos sendo levados
para a vala. Sabe-se que o cemitério foi construído, na gestão
Paulo Maluf, exatamente naquela região muito distante, na época
mais deserta ainda, com a finalidade de ocultar os cadáveres gerados pela
repressão política. Eu assumi a responsabilidade, acompanhei o fechamento
dos sacos plásticos que continham as ossadas, estive presente quando da
lacração da sala onde as ossadas foram colocadas e determinei, à
época, que a Guarda Metropolitana ficasse vigilante 24 horas. Havia
a ameaça de algum tipo de atentado para dar fim a essas ossadas, pois não
interessava que chegássemos à verdade. No dia seguinte, o fato teve
muita repercussão. Eu fui pessoalmente à Unicamp e entreguei o acervo,
com a ajuda da Polícia, que garantiu a segurança. A Universidade,
a meu ver, realizou um trabalho extraordinário. Foi graças à
competência técnica dos peritos - e também ao interesse que
a instituição demonstrou na prática - que foram realizadas
as primeiras investigações que levaram à identificação
de algumas ossadas. A
partir daí, o fato teve desdobramentos no país inteiro. A abertura
dos arquivos dos antigos Dops começou exatamente nesse momento. São
Paulo desencadeou o processo, inclusive com a participação de familiares
dos desaparecidos políticos, que integraram uma comissão constituída
por pessoas contratadas pela Prefeitura. Essa comissão teve um papel determinante
naquela ocasião. Graças ao trabalho, empenho e determinação
dessas pessoas é que se começaram a descobrir novos fatos envolvendo
desaparecidos políticos. Foi um momento importante de reparação
daquilo que se fez contra cidadãos brasileiros, verdadeiros heróis
que deram suas vidas pelas liberdades democráticas. Muitos,
inclusive, estão desaparecidos até hoje e ainda não se sabe
a verdade sobre eles. Eu considero que a Unicamp teve um papel fundamental naquele
primeiro momento e estimulou todo um processo de busca da verdade sobre esses
fatos, no país inteiro. Depois que saímos da Prefeitura, arrefeceram-se
os ânimos porque o governo do Estado não era mais pressionado pela
Prefeitura e pelos familiares dos desaparecidos políticos. Pelo menos no
início, essa pressão propiciou alguns meios sem os quais a Unicamp
não teria condições de realizar o trabalho. Com
a minha saída da Prefeitura, o governo do Estado não se sentiu mais
pressionado o suficiente para manter aquele apoio mínimo que dava como
condição de trabalho à Unicamp. A Universidade, por sua vez,
também arrefeceu a sua vontade e decisão de ir em frente, alegando
que faltavam recursos, meios e pessoal. Aí houve certa paralisação
dos esforços e até um descuido com o local onde estavam depositadas
as ossadas. Os familiares alegam que isso pode ter comprometido a condição
de uma investigação, de descobrir novas identidades entre o acervo. Conforme
os familiares, as ossadas teriam ficando num local úmido, desprotegido
e com goteiras, o que poderia ter comprometido a preservação das
ossadas no nível necessário para as investigações
e pesquisas, não só da Unicamp, mas de outras instituições
que vierem a dar continuidade a esse trabalho. O fato de o acervo ter saído
da Unicamp e voltado para a responsabilidade da Prefeitura, com um governo que
tem os mesmos compromissos de descobrir a verdade sobre esses fatos, criará
melhores condições do que havia até há pouco tempo. A
retomada desse trabalho é fundamental, sem nenhuma preocupação
de revanche, mas como medida de justiça aos familiares. Pior do que ter
parentes mortos pela ditadura, é a angústia e a aflição
de não saber onde estão seus filhos e esposos. Eu tenho um empenho
pessoal nisso, pois conheço familiares que ainda moram na mesma casa e
cada vez que o telefone toca, eles têm um susto e ao mesmo tempo uma esperança
de que seja alguém trazendo notícias sobre seus parentes desaparecidos.
Tenho a esperança de que essas pessoas saibam, num dado momento, a verdade
sobre esses fatos. E que se devolva a esses familiares, pelo menos, os restos
mortais dos desaparecidos políticos. Do
ponto de vista da democracia, do ponto de vista da realidade histórica,
é absolutamente indispensável o esclarecimento do que aconteceu
no período ditatorial, até para prevenir que no futuro esses fatos
possam vir a se repetir. E também para formar as novas gerações.
Elas não conhecem os fatos. Se conhecem, é através da história
oficial, que nem sempre relata com toda a verdade esses acontecimentos. Em geral,
os países que viveram períodos de exceção não
se interessam pela transparência absoluta desses fatos. Sem
dúvida nenhuma, é com a pressão da sociedade, dos familiares
e de instituições que disponibilizam seu conhecimento científico
que poderemos enfrentar essa luta. Trata-se de uma luta sem fim. Enquanto houver
o último desaparecido político, seja em que país for, sobretudo
na América do Sul, onde as ditaduras foram muito cruentas, de total desrespeito
aos direitos humanos, temos o dever cívico, o dever ético de promover
essas investigações e exigir do Poder Público toda a verdade
sobre esses fatos. Ainda existe muita coisa oculta. Quero
reiterar meu compromisso de apoiar essa busca. Os inimigos da democracia dizem
que isso é revanchismo e que já faz muito tempo. Mas é exatamente
para evitar que esses fatos algum dia possam ocorrer novamente, que precisamos
que a verdade inteira venha à luz. Isso é justiça com aqueles
que foram vítimas, que perderam a vida e a liberdade. E em respeito à
própria sociedade como um todo, que não teve uma participação
maior porque a censura era muito pesada e não havia liberdade de imprensa.
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