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A Comuna dos Trabalhadores
A primeira experiência de um governo operário, uma ‘revolução-aurora’

ARMANDO BOITO JR.

Comuna de Paris de 1871 foi o poder revolucionário que governou aquela cidade durante o curto período de 18 de março a 28 de maio. Apesar de ter durado apenas 72 dias, a Comuna é um episódio muito importante e discutido.

No simpósio que o Cemarx (Centro de Estudos Marxistas do IFCH), e a CDC (Coordenadoria de Desenvolvimento Cultural) realizaram em maio, em comemoração aos 130 anos da Comuna, diversos aspectos relativos ao episódio e às suas conseqüências foram discutidos. Um tema, contudo, interessou sobremaneira os participantes. Refiro-me à discussão mais geral sobre a natureza da Comuna, discussão que é, ao mesmo tempo, teórica, historiográfica e política.

Eco do século 18 ou prenúncio do século 20?

A tradição socialista apresentou a Comuna de Paris como o primeiro governo operário da História. Essa caracterização fora feita pelo próprio Karl Marx no calor dos acontecimentos, em textos reunidos posteriormente num livro que se tornou célebre, intitulado A Guerra Civil na França, Marx era teórico e dirigente da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), cuja seção francesa teve papel destacado na revolução e no governo da Comuna. Não se pode ignorar o fato de que a caracterização da Comuna como um governo operário tem conseqüências políticas. Nas ciências humanas, é possível ser objetivo, mas não é possível ser neutro. As conseqüências da tese de Marx são claras. Se a Comuna foi o primeiro governo operário, isso pode significar que, no final do século 19, a classe operária seria uma “classe social ascendente”, teria demonstrado ter condições de elaborar um programa político próprio, organizar-se em torno dele, e assumir o governo da “capital do mundo”. É compreensível que essa análise viesse a receber boa acolhida no movimento socialista.

Deixando de lado a literatura panfletária, podemos dizer que só um século depois, na década de 1960, começou a se desenvolver uma outra caracterização da Comuna. O historiador francês Jacques Roguerie, pesquisando os processos movidos pelas forças vitoriosas contra os communards sobreviventes, passou a sustentar a tese de que a revolução e o governo da Comuna teriam sido o último capítulo das revoluções burguesas dos séculos 18 e 19, e não o primeiro capítulo de um processo emergente de revolução operária. Essa tese empolgou o meio acadêmico; ela indicava o caminho para “desconstruir” o “mito socialista” da Comuna. Surgiu o debate: “Comuna-crepúsculo” ou “Comuna-aurora”? Negar a natureza operária da Comuna de Paris também tem conseqüências políticas, embora distintas, é claro, das conseqüências políticas da tese anterior. Essa negação significa diminuir, e muito, a presença política da classe operária na Europa do século 19 e lançar dúvidas sobre a capacidade política do operariado. Não há nada de estranho, portanto, no fato de a tese da “revolução-crepúsculo” ter sido muito bem aceita entre os liberais.

Estamos sugerindo que cada qual deve escolher, de acordo com suas preferências políticas, a tese que mais lhe convém? Seguramente esse não seria um bom procedimento para os historiadores e cientistas sociais. É necessário ter consciência das conseqüências políticas de cada tese em presença, dentre outras razões, para poder controlar os efeitos de nossas preferências políticas na discussão de um tema que é historiográfico. Pois bem, nós entendemos que a Comuna de Paris foi sim a primeira experiência de um governo operário e, como tal, uma “revolução-aurora”, anunciadora do movimento operário e das revoluções que iriam mudar a história dos século 20. Por que pensamos assim? Por que consideramos que a análise de Marx resistiu à pesquisa historiográfica contemporânea?

Insurreição e governo operário

Os homens e mulheres que fizeram a Comuna de Paris eram de extração social operária e vinham se organizando em torno de idéias que tendiam ao socialismo.
Os trabalhadores de Paris da década de 1870 não podem ser assimilados aos artesãos, lojistas e companheiros que compunham o movimento sans-culottes da grande Revolução Francesa de 1789. Dois terços da população economicamente ativa da cidade eram compostos de assalariados e mais da metade dessa mesma população trabalhava na indústria. Grande parte desses assalariados trabalhava em pequenas empresas, mas um contingente significativo já era o típico trabalhador assalariado moderno produzido pela revolução industrial – a construção civil e a metalurgia cresceram muito sob o 2º Império e funcionavam em padrões capitalistas modernos para a época.

Em 1870, a classe operária parisiense já possuía organizações de massa e idéias próprias. Estava organizada sindicalmente na Federação das Associações Operárias de Paris, que reunia, então, cerca de 40 mil membros. Essa massa realizou grandes greves nos anos de 1868, 1869 e 1870. A greve é um método de luta que, por definição, não pode ser usado pelos pequenos proprietários ou pela “plebe urbana”. Ademais, essa massa operária teve, no ocaso do 2º Império, a sua “escola de socialismo”.

Os historiadores Alain Dalotel, Alain Faure e Jean-Claude Freiermuth, no trabalho conjunto Aux origines de la Commune - le mouvement desenvolvimento réunions publiques à Paris 1868-1870, usando uma documentação inédita formada por copiosos relatórios policiais, fizeram um estudo importante e detalhado das reuniões públicas do período de crise do regime político imperial. Esse estudo mostra que a oposição operária e popular ao 2º Império já era forte antes do desastre da Guerra Franco-Prussiana de 1870. Mostra também que o conteúdo político e ideológico dessa oposição iam muito além do republicanismo democrático-burguês. A igualdade sócio-econômica, a eliminação da propriedade privada dos meios de produção, a instauração da propriedade coletiva e o uso da ação revolucionária para alcançar esses objetivos eram temas dominantes nos salões de reuniões dos bairros populares de Paris. Vê-se que se trata de um programa coletivista, que deixou para trás o igualitarismo de pequeno proprietário (= dividir a propriedade privada) típico dos sans-culottes do século 18. Esses salões de reuniões públicas iriam, logo após a queda do 2º Império, em setembro de 1870, dar origem aos clubes operários e populares, que formariam uma rede de organizações de massa dos trabalhadores de Paris. Foi essa massa operária que fez a revolução de 1871.

O perfil sócio-econômico dos dirigentes de organismos de base da Comuna, dos militantes e dos combatentes prova a afirmação acima. A presença do trabalhador manual é amplamente majoritária, sendo que os novos setores tipicamente operários (construção civil, metalurgia, diaristas sem especialização) têm uma presença bem superior ao seu peso na população ativa de Paris. Foram presos pelas tropas de Versalhes mais de 35 mil parisienses que participaram da Comuna. Dentre esses, mais de 5 mil eram operários da construção civil, mais de 4 mil diaristas sem especialização, outros 4 mil operários metalúrgicos e milhares de outros eram operários de diferentes setores econômicos. Ao todo, cerca de 90% dos prisioneiros eram de origem operária e popular. Chama atenção a participação dos trabalhadores que compunham o moderno operariado de então. Os operários da construção civil, metalúrgicos e diaristas sem especialização representam 39% dos prisioneiros e 45% do contingente de condenados à deportação. Esse levantamento foi feito pelo próprio Rougerie, o historiador que iniciara a “desconstrução” do “mito socialista” da Comuna, quinze anos após ter lançado seu primeiro livro sobre o tema. Após essa nova pesquisa, ele reviu, sem o dizer, sua análise anterior da Comuna. Afirmou, após o exame dos dados, que a Comuna foi a “revolução da Paris do trabalho” (La Comunne de 1871, Paris, PUF, 1997, pág.102).

Além da predominância nas organizações de massa e nos combates da Comuna, os operários parisienses tiveram um papel de destaque na insurreição e no governo de Paris.

O órgão que comandou a insurreição de 18 de março de 1871, dando origem à Comuna, foi o Comitê Central da Guarda Nacional. Era composto por 38 delegados eleitos nos bairros de Paris, sendo 21 operários; cerca de 20 deles filiados à seção francesa da AIT e às Câmaras Sindicais de Paris. O órgão político maior da Comuna, o Conselho da Comuna, eleito em 26 de março, oito dias após a insurreição, também era composto por uma maioria de operários e de filiados à AIT e às Câmaras Sindicais. Esse Conselho contava, nominalmente, com 79 membros, dos quais apenas cerca de 50 compareciam às sessões. Nada menos que 33 dos conselheiros eleitos eram operários; o restante eram intelectuais, pequenos proprietários e profissionais liberais. Roguerie, na obra citada mais acima, calcula que a maioria do Conselho – cerca de 40 dos membros – pertencia à AIT e às Câmaras Sindicais. Era um conselho de trabalhadores. Ao lado dele, a assembléia eleita pelos habitantes de Paris operava o “braço executivo” da revolução, as “comissões ministeriais”. Nesse organismo, a componente proletária, se não domina como nos demais, pelo menos é marcante. Logo abaixo das “comissões ministeriais”, estão os grandes serviços públicos e de infraestrutura, onde os operários de Paris também tiveram atuação destacada.

Veja o artigo

>> Um governo socialista?

 

 

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