Jornal da Unicamp 184 - 5 a 11 de agosto de 2002
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Glaci Therezinha Zancan: "Não há porque a SBPC ser principalmente um fórum de discussão políticaCiência pela Ciência

Presidente da SBPC diz que instituição
deve colocar C&T em primeiro plano

CLAYTON LEVY

Com 41 trabalhos científicos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros, dois livros didáticos e 45 comunicações a congressos científicos, a gaúcha Glaci Theresinha Zancan conhece como ninguém a importância da produção científica para o desenvolvimento de um país. Talvez por isso, desde 1999, quando assumiu a presidência da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), tem se esforçado em resgatar o debate sobre ciência e tecnologia, que nos últimos anos havia sido atropelado por questões políticas. Com seu discurso firme, porém ponderado, ela surpreendeu muita gente na última Reunião Anual da SBPC, realizada de 7 a 12 de julho, em Goiânia, ao defender uma correção de rota para a entidade. Não que considere o debate político menos importante. É que, segundo ela, a SBPC não deve ser confundida com um partido. Doutora em química biológica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e desde 1995 chefe do departamento de bioquímica da Universidade Federal do Paraná (UFPR), ela demonstra extremo cuidado ao misturar ciência e política. “Principalmente se for política partidária”. Em entrevista ao Jornal da Unicamp, a professora Glaci falou sobre esse e outros temas que envolvem a comunidade acadêmica e científica.

Jornal da Unicamp - Durante a 54a. Reunião Anual da SBPC, em Goiânia, a senhora defendeu uma nova postura para a entidade, afirmando que a ênfase no viés político deveria ser abandonada a fim de se resgatar o perfil mais acadêmico. Em sua opinião, o que é necessário fazer para corrigir a rota e recolocar a SBPC no centro do debate científico?

Glaci Zancan - Na realidade, o que eu desejei salientar é que a SBPC é uma entidade voltada para o avanço da ciência. Logo, o debate acadêmico foi e sempre será sua principal preocupação. No passado, quando a liberdade de pesquisa e de expressão esteve ameaçada, a SBPC lutou por ela. Com isso ela se tornou um foco de resistência ao regime militar, tendo, portanto, um papel político relevante na defesa das liberdades civis. Hoje a imprensa é livre, o sindicalismo é plural, o Congresso é atuante, os partidos congregam as várias tendências políticas. Logo não há por que a SBPC ser principalmente um fórum de discussão de política, menos ainda de política partidária.

P – Que papel as universidades poderiam exercer nesse processo?

R – Cabe aos acadêmicos a reflexão crítica da realidade nacional. Aí estão os cientistas políticos, os sociólogos, os economistas e tantos outros para analisar as políticas públicas vigentes e propor correções de rumos. A universidade deve ser o centro catalisador dos debates dos problemas nacionais. Não se pode imaginar que estando nas universidades a elite intelectual do país, elas não se preocupem com a realidade que as cerca, na busca permanente de soluções para eliminar os imensos problemas da desigualdade social que caracterizam a nossa sociedade .

P – Nos últimos anos, a SBPC deixou de ter um papel tão marcante quanto no passado. Em sua opinião, por que isso aconteceu?

R – A SBPC em nenhum momento deixou de exercer seu papel na defesa de políticas públicas que permitam o avanço do conhecimento, seja nas universidades públicas, seja nos institutos de pesquisa mantidos pelo Estado. Basta ler os 485 fascículos do Jornal da Ciência, para ver que não houve nenhuma alteração no papel da entidade na discussão das políticas para as áreas de Educação e C&T. Aparentemente, o que houve foi uma confusão de pensar que uma organização da sociedade civil seria um partido político visando o poder. O Estatuto da SBPC veda a ligação da instituição com qualquer facção político-partidária.

P – O plano da SBPC para voltar a ser uma caixa de ressonância do meio científico e acadêmico inclui, por exemplo, a presença mais constante da entidade nos campi das universidades, com eventos e programas voltados para docentes e estudantes?

R – A SBPC é uma instituição civil, sem fins lucrativos e que conta com o trabalho voluntário de todos os seus membros. É uma ONG de 54 anos.

A presença mais constante nos campi das universidades depende basicamente do engajamento de docentes e alunos em suas atividades. Infelizmente a disponibilidade da comunidade paulista tem sido muito baixa. É preciso aumentar. Fica aqui o apelo para que mais voluntários juntem-se a nós na promoção da ciência em todos os campi.

P – Durante o ciclo de debates “Brasil em Questão – A Universidade e as Eleições Presidenciais”, realizado em 17 de julho na Universidade de Brasília, o reitor da UnB, Lauro Morhy, afirmou que é preciso “romper com o modelo público viciado e partir para um modelo gerencial mais pragmático”. A senhora concorda?

R – Não há dúvida de que o sistema de gestão das universidades federais é extremamente burocrático e está prejudicando a eficiência das instituições. Vai ser preciso mudar o sistema gerencial público com uma legislação mais adequada aos tempos atuais. Para isso a legislação precisa ser alterada.

P – A lista de propostas que a SBPC apresentou aos candidatos à Presidência da República, para a formulação de uma política de educação, ciência e tecnologia, cita a necessidade “imperiosa” de expansão do ensino superior, critica o crescimento “desordenado” do ensino privado, e defende uma “inadiável” reforma da universidade. Em sua opinião, por onde essa reforma deveria começar?

R – Os nossos índices educacionais são de chorar. Logo, é necessário expandir, com qualidade, todos os níveis, não só o terceiro grau. Como fazer, quando os recursos são finitos e insuficientes, é o desafio. Será interessante ver as propostas apresentadas pelas equipes assessoras dos candidatos aos diferentes cargos públicos para solucionar o problema.Não há dúvida de que é preciso pôr um limite ao surgimento de novos cursos sem o padrão mínimo de qualidade. Assim como a avaliação do parque instalado é fundamental para garantir a melhoria da qualidade dos egressos. Como se pode ver, trabalho é o que não falta. Mesmo o sistema universitário público é muito heterogêneo. Logo, a reforma não poderá ser feita por decreto.

P – Nesse caso, qual a proposta da SBPC?

R – Em fevereiro de 2000, mandamos ao MEC uma proposta de autonomia das universidades federais. Até hoje estamos esperando que ela seja discutida. No entanto, cada universidade tem autonomia para fazer reformas acadêmicas. Basta que os Conselhos Superiores as queiram. Na realidade, há uma grande desmotivação dos docentes em participar dessas mudanças e mesmo a reforma possível vai sendo protelada. Quando organizamos os diferentes Simpósios do Ciclo Temático sobre Universidade da reunião de Goiânia, desejávamos mostrar que estão ocorrendo, em diferentes universidades, experiências na busca de alternativas de formação dos jovens fora do atual ensino formalista que domina todo o sistema. Infelizmente, a imprensa não chegou a perceber o que estava sendo exposto e deu pouca cobertura a esse Ciclo. Consideramos que o engajamento de todos é fundamental para que a reforma não venha de cima para baixo, com receitas prontas nem sempre adaptáveis a situação concreta de cada instituição. Cabe aos governos orientar e estimular as mudanças dando os instrumentos legais para que as mudanças possam ocorrer.

P – O documento também diz que o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) “precisa assumir de fato a coordenação e o planejamento dos programas”. Quais, em sua opinião, os sinais mais claros da ausência de coordenação?

R – É difícil, numa estrutura vertical de Ministérios, que um deles venha a ser horizontal. Daí não ser fácil a coordenação. O exercício da construção dos Fundos Setoriais foi nessa direção, mas ainda assim há um longo caminho a percorrer. A ciência e a tecnologia permeiam todas atividades humanas e os exemplos de multiplicidade de ação são vários, basta olhar as diferentes atividades no orçamento da união. Um exemplo é o caso da biodiversidade: vários ministérios dela se ocupam e, como são ações isoladas, há desperdício de esforços e recursos.

P – A senhora é de opinião que os fundos setoriais, que este ano deverão receber R$ 1,1 milhão, favorecem o crescimento sustentado do sistema de C&T?

R – Os Fundos Setoriais atendem às redes de conhecimento que estão associadas às fontes dos recursos. Eles são voltados para a inovação tecnológica. Devem fazer parte do sistema de fomento e não podem ser desconsiderados quando se avalia o crescimento da ciência como um todo. É preciso que o CNPq tenha um orçamento compatível com o crescimento da massa crítica do País.

P – Outra reivindicação contida no documento da SBPC dirigido aos presidenciáveis defende a definição de um papel mais claro para o Centro de Gestão de Estudos Estratégicos (CGEE). Qual, em sua opinião, deve ser esse papel?

R – O CGEE só tem razão de ser como um núcleo de reflexão na proposição de programas estratégicos e métodos de gestão para atingir os objetivos propostos. Não cabe a ele competir com o MCT ou suas agencias na gestão de programas já definidos.

P – As agências federais de fomento à pesquisa têm reduzido substancialmente sua capacidade de financiamento nos últimos anos. Ao mesmo tempo, as agências estaduais, das quais a Fapesp tem sido o melhor modelo, têm aumentado seus investimentos. Como a senhora analisa a política de financiamento de pesquisa hoje no país?

R – Desde o final da década de 80, o fomento à pesquisa pelo sistema federal tem sido precário, particularmente se for considerada a expansão da base decorrente da implantação da pós-graduação. A criação permanente de novos programas apenas dá um alento temporário aos grupos mais competitivos. Isso precisa mudar. A política ao fomento tem ser permanente, baseada exclusivamente no mérito dos projetos, pois só assim haverá descentralização do sistema de C&T. Os programas estratégicos devem ser adicionais, o que não vem ocorrendo, pois invariavelmente o fomento do CNPq é sacrificado quando um novo programa surge. A Fapesp é uma honrosa exceção, que manteve ao longo de 40 anos a política de fomento à ciência como sua atividade maior. As demais agências estaduais têm uma atuação cíclica, e a comunidade científica nos diferentes Estados tem feito um esforço recorrente de atuação na defesa dos princípios constitucionais que não estão sendo cumpridos na maioria dos Estados. A luta deve continuar para que o sistema nacional seja mais equilibrado.

P – Como a senhora analisa a atual política de concessão de bolsas do CNPq, que nos últimos anos deslocou a prioridade para modalidades como iniciação científica e doutorado, deixando o mestrado em segundo plano?

R – No momento em que a expansão do sistema de pós-graduação é capaz de formar mais pesquisadores do que o mercado de trabalho absorve, é lógico que as agências priorizem a concessão de bolsas. O problema fundamental é a expansão do mercado de trabalho e não a concessão de bolsas.

P – Qual a sua opinião sobre o anteprojeto da “Lei de Inovação”, que o governo pretende enviar ao Congresso no início de agosto?

R – Considero que é importante estimular a inovação nas empresas, inclusive com a absorção dos egressos da pós-graduação. Às universidades cabe a formação de recursos humanos qualificados para inovar nas empresas e aí gerar demandas para a comunidade científica. O estímulo à inovação nas universidades pode ser feito com parcerias, envolvendo os alunos em formação sem que os docentes saiam da instituição. Permitir que as universidades liberem as matrizes formadoras das novas gerações, para exercer uma atividade empreendedora privada quando os salários estão baixos, pode resultar no esvaziamento da pesquisa acadêmica nas áreas aplicadas. Simultaneamente com a discussão dessa lei no Congresso, vai ser preciso que as universidades disciplinem internamente o que desejam na área de inovação para impedir que o esvaziamento ocorra.