Jornal da Unicamp 184 - 5 a 11 de agosto de 2002
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Gil e Andréa Guerra, do Giedds: num único livro, as experiências do grupo com ambiguidade sexual e as informações que antes precisavam ser buscadas na literatura de diferentes áreas da medicinaEntre o azul
e o cor-de-rosa

Especialistas da Unicamp
lançam livro único no País sobre ambigüidade sexual

LUIZ SUGIMOTO

É uma situação esdrúxula, mas factível e nem tão rara: na maternidade, os médicos olham para o recém-nascido sem conseguir identificar se é um menino ou uma menina; os funcionários do berçário, tampouco; então o bebê recebe uma fitinha azul no pulso esquerdo e outra cor-de-rosa no pulso direito. E os pais, com a criança nos braços, voltam para casa sem saber a resposta para aquela primeira pergunta, óbvia, que parentes e amigos sempre fazem...

Menino ou menina? – Os distúrbios da diferenciação do sexo é um livro inédito no Brasil, organizado pelos professores Andréa Trevas Maciel-Guerra e Gil Guerra Júnior, onde se relata a experiência e embasamento teórico dos profissionais do Grupo Interdisciplinar de Estudos da Determinação e Diferenciação do Sexo (Giedds) da Unicamp. É uma obra impar porque reúne, num único volume, informações que antes precisavam ser buscadas na literatura de diversas áreas – embriologia, cirurgia pediátrica, endocrinologia, genética, anatomia patológica, psicologia e medicina legal, entre outras. O livro será lançado durante o I Simpósio de Endocrinologia Pediátrica da Unicamp, que se realiza nos dias 9 e 10 de agosto próximo (veja matéria na página 5).

Em 12 anos de trabalho, o Giedds atendeu a 800 pacientes da região. Ultimamente, a média subiu para 100 casos ao ano, embora nem todos de sexo indefinido. “É importante esclarecer que o livro, assim como nosso Grupo, trata de crianças com alteração na genitália, tanto na parte externa quanto interna, ou de problemas que levem a isso. E não de quem tenha distúrbio do sexo psicológico na vida adulta”, ressalta Gil Guerra, chefe do Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas.

Andréa Maciel-Guerra, chefe do Departamento de Genética Médica da FCM, explica que o sistema reprodutor pode ser dividido em três setores. Primeiramente temos as gônadas, que produzem os gametas – o ovário na mulher, o testículo no homem. Depois vêm os genitais internos: útero e trompa na mulher e, no homem, um conjunto de canais que levam o espermatozóide do testículo até ser ejaculado. E os genitais externos, utilizados no ato sexual para promover o encontro de gametas. “O objetivo do sistema, em qualquer ser vivo, é fazer com que aconteçam esse encontro e a reprodução da espécie”, resume a médica.

No entanto, o belo sistema reprodutor é sujeito a anomalias, que podem se apresentar nos genitais externos ou internos, ou em ambos, ou nos ovários e testículos. São distúrbios que muitas vezes impedem a própria definição do sexo. “Quando o bebê nasce, a primeira coisa que se faz é olhar para a genitália. Ou é um órgão feminino ou masculino. Mas existem situações em que a ambigüidade genital não permite sequer um palpite”, afirma Andréa.

Gil Guerra cita, como exemplo extremo de ambigüidade, a criança que nasce com um pênis mas sem os testículos na bolsa escrotal. “Na maioria são meninos cujos testículos demoram a descer e que precisam de ajuda para isso. Em outros os testículos não desceram simplesmente porque não existem, pois são dois ovários – parece um menino, quando na verdade é uma menina virilizada, com excesso de hormônios masculinos”.

Os grupos – São quatro grandes grupos. O primeiro, da diferenciação gonadal, em que os problemas começam já na formação das gônadas – ovários ou testículos anormais ou mesmo uma mistura de ovário e testículo (o hermafrodita, abordado mais a seguir). Tais problemas geralmente se prolongam para os genitais internos e externos. O segundo grupo, do pseudo-hermafroditismo feminino, onde a criança é de sexo genético feminino, tem ovários, útero e trompa e sofre uma virilização externa, com aumento do falo – que deixa de ter a aparência de um clitóris e assume a de um pênis – e sem a presença de orifícios uretral e vaginal distintos. No terceiro grupo estão os pseudo-hermafroditas masculinos, que são de sexo genético masculino, mas deixam de virilizar. E, por último, outros casos que não cabem nas classificações anteriores.

Bem mais preocupantes que os distúrbios visíveis são aqueles discretos, diagnosticáveis somente por meio de exames sofisticados. Isso justifica a concentração do atendimento no HC da Unicamp. “É uma investigação complexa e cara. Dificilmente um único profissional terá condições de detectar a doença em seu consultório ou clínica. Ele pode até solicitar todos os exames, mas será incapaz de interpretá-los. Por isso criamos um grupo interdisciplinar”, afirma Guerra. Um diagnóstico pode demorar cerca de 30 dias para o pseudo-hermafroditismo feminino e até seis meses para o masculino.

A definição – Na opinião do professor, a principal abordagem no livro se refere à definição do sexo de criação. “Colocamos a importância de o médico ou pediatra verificar a alteração genital precocemente, antes do registro civil da criança. Conhecida a doença, pode-se definir o sexo mais adequado, o que não inclui apenas o aspecto genético: importa mais a vida sexual que a pessoa possa ter”, ressalta.

O ideal é que o diagnóstico seja feito até o segundo ano de vida, quando o sexo psicológico ainda não está cristalizado. “É quase impossível receber um menino de oito anos de idade e dizer que ele vai virar uma menina”, observa Guerra. O Giedds guarda exemplos de pessoas que não deixavam dúvidas sobre sua genitália feminina, mas que eram de sexo genético masculino, ou exatamente o contrário. “A manifestação vai se dar mais tarde, em geral a partir da adolescência, quando o indivíduo deixa de desenvolver características puberais adequadas para aquele sexo”, esclarece Andréa.

A família e o tratamento

A definição do sexo nos casos de ambigüidade é um processo difícil. Não havendo a certeza pelo simples exame da genitália externa, o Giedds orienta médicos, pediatras e alunos a deixarem claro para os pais que não sabem o sexo do bebê e que exames precisam ser feitos. “Às vezes, acho que o pai prefere anunciar aos parentes que o filho tem um problema cardíaco grave, ao invés de confessar que não sabe se é um menino ou menina. Mas a família acaba percebendo que seria mais constrangedor dizer a todos, dois meses depois, tratar-se de uma filha e não de um filho”, pondera Andréa Guerra.

O contato entre profissionais e pais é intenso, pois a definição do sexo se dá em conjunto, pesando-se vantagens e desvantagens. “Numa genitália completamente ambígua, a cirurgia feminilizante é mais simples, com uma única etapa e menos risco de insucessos. Extrair um órgão é muito mais fácil do que construí-lo do nada. E para a criança será bem menos traumatizante, já que a alta é dada em dois ou três dias”, explica Andréa.

Por outro lado, construir um genital masculino implica pelo menos quatro cirurgias, com intervalo mínimo de um ano e meio entre elas, e com risco de infecções e de se refazer uma delas. “A criança passará um bom tempo da vida com hospitalizações e o resultado estético e funcional, no final, pode não ser tão bom”, diz a médica. “O pênis deve ter tamanho adequado e estar funcionando bem, não há porque masculinizá-lo se o menino não for beneficiado com a atividade sexual”, acrescenta Gil Guerra.

De acordo com Andréa, a vida reprodutiva é normal em quase todos os casos de pseudo-hermafroditismo feminino, mas isso é menos provável no masculino. Em hermafroditas criados no sexo feminino também há possibilidade de fertilidade.

A fantasia sobre o hermafrodita e outros preconceitos

Há muita fantasia em torno do hermafroditismo. Andréa Guerra ressalta que hermafrodita é um termo técnico da medicina, nada pejorativo, designando a pessoa que possui dois sexos. “A imprensa leiga taxa de hermafrodita todo aquele que possui algum problema sexual, às vezes nem físico, apenas psicológico. Para definir um hermafrodita é preciso lâmina e microscópio, provando que ele carrega tecido ovariano e tecido testicular”, ensina. O hermafroditismo insere-se nos casos de ambigüidade genital, mas é um dos mais raros: entre 400 registros pelo Giedds, apenas 10 ou 12 são de hermafroditas.

“Ainda quanto à fantasia que cerca pessoas com ambigüidade genital, os profissionais também precisam aprender a lidar com os pais dessas crianças quando pequenas. Automaticamente os pais pensam que, porque o filho tem um problema genital, no futuro vai apresentar um desvio psicológico, para o homossexualismo, por exemplo. Por isso nosso grupo sempre teve um psicólogo para eliminar esta noção”, finaliza Andréa.

Serviço
Menino ou Menina? – Os distúrbios da diferenciação sexual
Andréa Trevas Maciel-Guerra e Gil Guerra Júnior (Orgs.)
gileandrea@uol.com.br
352 páginas
Editora Manole
(11) 4196-6000