Jornal da Unicamp 187 - 26 de agosto a 1 de setembro de 2002
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O engenheiro Rogério Stacciarini: fortalecimento do poder local como componente na obtenção do desenvolvimento sustentávelTecnologia tira
recursos hídricos
da bacia das almas

Estudo sobre o uso de ferramentas tecnológicas no campo
da gestão municipal das bacias hidrográficas e outras três teses abordam a questão ambiental nas políticas públicas

JOSÉ PEDRO MARTINS

Uma proposta de gestão municipal para garantir a qualidade dos recursos hídricos, por meio da utilização de ferramentas teóricas e tecnológicas de última geração. Este é em síntese o conteúdo da tese de doutorado defendida no início de julho na Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri) da Unicamp por Rogério Stacciarini, com o título “Simulação de uma proposta de gestão para a qualidade de recursos hídricos junto ao Município de Paulínia/SP”.

O trabalho é uma das quatro teses (veja matérias na página 7) que acabam de ser apresentadas na Universidade, reforçando a necessidade de incorporação das preocupações ambientais nas políticas públicas como ingrediente essencial na conquista do desenvolvimento sustentável, na linha do que será discutido na Conferência Rio+10, que acontece entre 26 de agosto e 4 de setembro na África do Sul.

“O Brasil tem 13% da água doce do planeta, precisa estar cada vez mais atento para a situação dos seus recursos hídricos”, diz Stacciarini, formado em Engenharia Civil na Universidade de Uberaba, sobre seu interesse em estudar esse campo intrincado e estratégico.

Ele lembra que a legislação brasileira, a partir das leis estaduais e finalmente da lei nacional 9433/1997, consagrou a bacia hidrográfica como o espaço adequado de gestão. Inspirada sobretudo no modelo francês de gestão, a legislação brasileira prevê, entre outros mecanismos, a criação de Comitês de Bacias como as instâncias de articulação, discussão e deliberação das políticas de recuperação e proteção dos recursos hídricos no País.

Stacciarini considera, porém, que é fundamental a instrumentalização dos próprios municípios para lidar com a proteção dos recursos hídricos em escala local, como forma de dar suporte aos órgãos regionais de gestão e, portanto, de garantir a própria viabilidade das políticas regionais. “As decisões sobre a ocupação do território, com base nos respectivos Planos Diretores e outros instrumentos, são tomadas no âmbito do município”, nota o engenheiro, lembrando ainda que a Agenda 21, cuja aplicação estará em debate na Rio+10, aponta para a importância de fortalecimento do poder local como componente estratégico na obtenção do desenvolvimento sustentável.

Rio Atibaia, que teve amostras de água coletadas na pesquisa, corta a zona rural de Paulínia: divórcio entre desenvolvimento e respeito aos recursos naturaisUm desafio chamado Paulínia

O município escolhido por Rogério Stacciarini para ser o objeto de sua proposta de uma gestão local de recursos hídricos foi Paulínia, localizado na região de Campinas. Paulínia é um dos 58 municípios na área de abrangência do Comitê das Bacias Hidrográficas dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí.

Paulínia foi escolhida, segundo o pesquisador, justamente por ser uma cidade com características ambientais muito complexas e desafiadoras, em função da presença do pólo petroquímico alicerçado na órbita da Refinaria da Petrobrás, inaugurada no início da década de 1970.

A metodologia desenvolvida pelo então doutorando, para subsidiar a sua proposta de um modelo de gestão municipal da qualidade dos recursos hídricos, mesclou várias ferramentas. Uma delas foi a utilização de imagens de satélite como meio de confecção de cartas geográficas, em formato digital, sobre como tem sido o processo de ocupação das terras em Paulínia. “A forma de ocupação do território ajuda a explicar aspectos relacionados à qualidade da água”, diz Stacciarini.

As imagens do satélite Landsat TM-5 foram obtidas junto ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). As cartas digitais foram elaboradas ainda a partir de informações colhidas em visitas de campo, referenciadas por um equipamento de GPS e que ajudaram na identificação de pontos de descargas industriais em rios e córregos.

Outra ferramenta aplicada foi a coleta de amostras de água em 22 pontos escolhidos criteriosamente. Um bloco incluiu os pontos de amostragem em águas superficiais, como os rios Atibaia e Jaguari e ribeirão Anhumas, e outro, o elenco de pontos situados em nascentes e locais de captação para irrigação.

Coletou-se quatro amostras em cada ponto, duas em período de estiagem e outra em período de chuvas. Foram analisados 16 parâmetros, como presença de coliformes fecais e totais e taxa de oxigênio dissolvido. O arsenal de ferramentas teóricas e tecnológicas usadas na montagem da metodologia foi completado com instrumentos bioestatísticos.

As informações coletadas foram comparadas com a legislação de enquadramento dos rios, com o Plano Diretor de Paulínia e com outros documentos legais. Foi ainda utilizada, como instrumento de apoio, a aplicação de questionários apresentados aos diferentes segmentos de usuários de água no município, como consumidores urbanos, indústria, comércio e agricultura. Toda essa engenharia de coleta, processamento e interpretação de informações se estendeu por quatro anos, em um projeto financiado pela Fapesp e apoiado pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Meio Ambiente de Paulínia.

A vida comprometida

O cruzamento de todos os dados coletados por Rogério Stacciarini confirmou um triste diagnóstico. Cidade com uma das mais altas rendas per capita do Brasil, Paulínia tem sofrido com o divórcio entre desenvolvimento e respeito aos recursos naturais.

A análise das amostras de água indicou, por exemplo, a presença média em alguns pontos de uma miligrama por litro (mg/l) de oxigênio dissolvido, bem abaixo do padrão considerado ideal para águas superficiais, entre 2 e 5 mg/l. Foi igualmente detectada a presença de coliformes fecais e totais em todos os pontos de amostragem. Em dois pontos na zona rural foi identificada uma taxa média de 30 mg/l de nitrato (NO3), quando o índice considerado ideal é de 10 mg/l no manancial.

Do ponto de vista sanitário os resultados encontrados são, portanto, muito preocupantes. A baixa qualidade da água se deve, entre outros fatores, ao padrão inadequado de ocupação do território. Stacciarini cita o caso do aterro sanitário, instalado a poucos metros do córrego São Bento, que havia sido apontado no Plano Diretor como um dos mananciais prioritários para preservação no município.

Entre 1972 e 2000, lembra o autor, a área urbana construída – em estreita associação com a instalação de novas indústrias – aumentou entre 12 e 15 vezes em Paulínia, e as conseqüências em termos de impermeabilização, assoreamento e outros efeitos nos recursos hídricos foram inevitáveis.

O pesquisador destaca que seu estudo permite, agora, a aplicação de um modelo de gestão local dos recursos hídricos, que aponta justamente para um planejamento da ocupação espacial, ao contrário do processo desordenado ocorrido nas últimas décadas. Ele reitera que o mosaico de recursos aplicados nesse modelo de gestão local – imagens de satélite, visitas de campo, questionários com os usuários, ferramentas de bioestatística – permite a construção de um banco de dados que pode orientar o planejamento das políticas públicas associadas à gestão local.

A gestão local, reitera Stacciarini, é fundamental para dar suporte à gestão regional dos recursos hídricos. Ele lembra que em toda a região das bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí são consumidos hoje cerca de 40 metros cúbicos, ou 40 mil litros por segundo de água pelos distintos tipos de usuários. Até 2020, adverte, a demanda projetada é de 60 metros cúbicos por segundo. Sem uma gestão adequada dos recursos hídricos, que já se encontram em situação crítica, a região caminha claramente para um colapso no abastecimento. É por isso que, na conclusão de Rogério Stacciarini, é tão importante a gestão local como apoio estratégico à gestão regional.

O papel da avaliação ambiental estratégica

O processo de Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) deve ser institucionalizado no Brasil para assegurar a efetiva assimilação das preocupações ambientais nas políticas públicas e decisões em esfera governamental. A idéia é defendida por Severino Soares Agra Filho em tese de doutoramento que acaba de ser apresentada no Instituto de Economia da Unicamp, com o título “Avaliação Ambiental Estratégica – Uma alternativa para a incorporação da questão ambiental no processo de desenvolvimento”.

Na tese, Agra Filho, professor da Universidade Federal da Bahia, destaca as diferenças entre a AAE e os tradicionais Estudos e Relatórios de Impacto Ambiental (EIAs-Rimas), que são exigidos pela legislação e aplicados, como ele lembra, no caso de projetos de empreendimentos específicos, como usinas de energia, uma nova indústria, uma rodovia etc.

Já o processo de AAE refere-se à incorporação de preocupações ambientais em políticas, planos e programas de governo, como plano nacional de energia e programas regionais de saneamento. A implementação da AAE depende, portanto, de uma macroabordagem estratégica que pode resultar na própria formulação de diretrizes para os EIAs-Rimas específicos.

Para Agra Filho, a institucionalização e consolidação do processo de AAE – um instrumento em franca ascensão no cenário internacional – é um desafio para o Brasil transitar concretamente na linha do desenvolvimento sustentável preconizado na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Eco-92, e reiterada no processo da Rio+10, na África do Sul. Principal documento da Eco-92, a Agenda 21 estabelece, no capítulo 8, a necessidade de integração entre meio ambiente e desenvolvimento nas diferentes instâncias de decisão governamental.

No desenvolvimento de sua tese o pesquisador identificou e analisou, enfim, as especificidades dos principais instrumentos de planejamento ambiental praticados no Brasil, bem como as possibilidades de adoção e institucionalização da AAE. A observância aos princípios de uma AAE ainda é tímida no Brasil. O governo federal acenou com a utilização do processo da AAE no planejamento estratégico para os Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento previstos no Programa Avança Brasil, como no caso do Eixo da Amazônia.

Comunidade científica - A outra tese de doutorado defendida recentemente na Unicamp, no contexto das preocupações com o desenvolvimento sustentável, foi defendida no Instituto de Geociências. O estudo “Investigando o papel de cientistas em estratégias para desenvolvimento local: visões e perspectivas da comunidade científica” foi desenvolvido por Ariadne Chloe Mary Furnival, professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

O estudo foi desenvolvido a partir do pressuposto central ao discurso da Agenda 21, de que o êxito das estratégias de desenvolvimento sustentável depende, substancialmente, do envolvimento/comprometimento da comunidade científica local e da incorporação da problemática ambiental na agenda da pesquisa científica e tecnológica de forma que os conhecimentos resultantes de pesquisas científicas possam vir a ser traduzidos em ação política. O papel estratégico da comunidade cien-tífica na conquista do desenvolvimento sustentável é destacado em especial nos capítulos 31, 34 e 35 da Agenda 21.

A tese, seguindo o paradigma construtivista, foi construída por meio de entrevistas não-estruturadas com membros da comunidade científica na cidade de São Carlos, avaliando-se a percepção que essa comunidade tem do papel a ela atribuído na Agenda 21 e os aspectos motivacionais que orientam as suas ações na comunidade local. Os resultados, segundo a autora, indicam que tanto aspectos internos à dinâmica da academia e da institucionalização da ciência e tecnologia, quanto o estado das relações comunidade científica/comunidade política local, num dado momento histórico, podem vir a inibir ou a restringir a possibilidade de concretização desse papel. A tese revela, principalmente, que as prescrições para uma maior participação da comunidade cientifica, com vistas à Agenda 21, são, por si só, insuficientes para promover o almejado envolvimento de cien-tistas, em nível local, e em ações efetivas na busca do desenvolvimento sustentável.

Marcos Eduardo Gomes: recuperação, por meio da biodigestão, dos gases emitidos pelo aterroResíduos que geram energia

Três dos principais desafios ambientais das áreas metropolitanas – a destinação adequada dos resíduos urbanos, a geração de energia elétrica por meio de biomassa (fontes renováveis) e o tratamento dos esgotos domésticos – foram tratados de forma integrada em tese de mestrado defendida na Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp por Marcos Eduardo Gomes Cunha.

Em sua tese, o engenheiro desenvolveu um estudo sobre a geração de eletricidade a partir do processamento dos resíduos domésticos, especialmente os orgânicos, depositados em aterros sanitários. Como estudo de caso o autor escolheu o aterro sanitário Delta A, que recebe as cerca de 800 toneladas diárias de resíduos domésticos geradas em Campinas.

Na realidade o Delta A não é um aterro sanitário, mas um espaço controlado, conforme a classificação da Cetesb, a agência ambiental do governo de São Paulo. Atualmente, observa Marcos Cunha, os gases resultantes do processo de decomposição dos resíduos depositados no Delta A são emitidos diretamente para a atmosfera, sem nenhuma forma de aproveitamento. Pelo contrário, o lançamento do gás metano (CH4) gerado no aterro contraria o Protocolo de Kyoto, decorrente da Convenção das Mudanças Climáticas aprovada na Eco-92.

A proposta de Marcos Cunha é a recuperação, por meio da biodigestão, dos gases emitidos pelo aterro. Depois de limpos os gases são injetados em um motor estacionário de combustão, onde é gerada a energia. Esta tecnologia, nota o autor da tese, vem sendo muito utilizada na Europa e nos Estados Unidos. Apenas nos EUA cerca de 550 aterros produzem energia a partir de biodigestores.

O engenheiro acredita que a quantidade de energia que pode ser gerada pelo Delta A seria suficiente para suprir de eletricidade a Estação de Tratamento de Esgotos (ETE) do Piçarrão. O lodo dos esgotos tratados na ETE também seria aproveitado como insumo energético, por meio de co-disposição, melhorando a qualidade dos gases.

A ETE do Piçarrão integra o Plano Diretor de Esgotos de Campinas, em desenvolvimento pela Sociedade de Abastecimento de Água e Saneamento S.A (Sanasa). A intenção é tratar 70% dos esgotos da cidade, em várias ETEs, até 2004.

As estimativas são de que a ETE do Piçarrão necessitará de um consumo de 2,4 megawatts (MW) de eletricidade. Os cálculos do potencial energético do Delta A apontam para uma geração de 3 a 6 MW.

A tese de Marcos Cunha indica para essa integração entre geração de energia a partir dos resíduos domésticos e suprimento para uma ETE no âmbito de uma nova forma de gestão do saneamento ambiental em Campinas. Ele defende a idéia de que a Sanasa também cuide dos aspectos de coleta e tratamento dos resíduos, ampliando sua atuação, limitada hoje à captação, tratamento e distribuição de água, coleta e tratamento de esgotos.