Não era um teórico mas um homem de ação. Não um ideólogo, mas um construtor de escolas. Fazia, nesse aspecto, um interessante contraste com dois de seus contemporâneos mais notáveis: Fernando Azevedo e Anísio Teixeira. No entanto, Zeferino Vaz foi um dos maiores educadores de seu tempo. Não compilou suas idéias, não as reuniu em livro, mas era indubitável que as tinha e em abundância. O talento explosivo, oratório, era seguramente maior que o apetite para escrever. Quando se retirou da reitoria, em 1978, declarou à imprensa “Quero escrever um pouco da nossa história, sinto que devo fazê-lo”. Referia-se a sua longa experiência universitária, até que foi surpreendido pela morte em fevereiro de 1981. Para resgatar suas as idéias o Jornal da Unicamp voltou no tempo e simulou uma entrevista com o fundador da Universidade. Para isso, recorreu a tópicos selecionados de duas fontes: da coletiva de imprensa que concedeu semanas antes de passar o cargo ao reitor Plínio Alves de Moraes, em abril de 1978, e de papéis diversos conservados pelo Arquivo Central da Unicamp. As perguntas, claro, são fictícias. Mas as respostas, autênticas, revelam o pensamento vivo de um homem que sempre esteve à frente do seu tempo, no ideal e na ação.
JU Que diretrizes nortearam seu trabalho como fundador da Unicamp?
Zeferino Vaz Quando vim para o planejamento e implantação da Universidade Estadual de Campinas, eu trazia uma experiência que me permitiu estabelecer desde o início alguns princípios básicos: o primeiro é de que a universidade deve ser um organismo e não uma colônia do organismo. Não um conglomerado. Que ela atue como atua uma grande orquestra para obter uma sinfonia. Se os músicos tocarem cada um isoladamente, jamais se obtém o efeito de uma sinfonia. O segundo princípio básico foi quanto à meta a ser estabelecida. O que busca uma universidade? Qual o objeto final da universidade? Ficou bem estabelecido que seria a promoção do bem-estar físico, social e espiritual do homem.
JU Em sua opinião, quais são os elementos necessários para que a universidade possa alcançar seu objetivo final?
Zeferino Repito pela milésima segunda vez: primeiro homens, segundo homens, terceiro homens, depois bibliotecas, depois equipamentos e por fim edifícios. Portanto, o ponto chave e que explica tudo foi a seleção de homens. Homens capazes, intelectualmente e animicamente, homens com consciência e com ética e com ímpeto, com impulso de transmitir conhecimento.
JU Dentro desses critérios, que perfil o senhor buscou ao convidar os cérebros que viriam compor a massa crítica da universidade e até que ponto as ideologias defendidas por eles influenciaram na sua escolha?
Zeferino Passei primeiro a convidar grandes cientistas brasileiros que estavam nos Estados Unidos e na Europa, consegui trazer mais de cem; e trouxe 230 professores estrangeiros, fui procurar professores pelo país, onde eles estivessem, sem qualquer discriminação. Não importa sua origem, não importa sua raça, não importa sua ideologia política. Ele tenha a ideologia que queira, que a sua consciência determina, eu não vou entrar na consciência de cada um. Mas, eu repito o que tenho dito: não admito que nenhum professor utilize a sua cátedra para pregar ideologia extremista, porque isto é covardia. É covardia o indivíduo que tem superioridade mental, superioridade cultural, superioridade hierárquica, induzir jovens adolescentes ou pouco mais que adolescentes, que estão à busca de um caminho, induzi-los a seguir o caminho da preferência deste. Isto considero crime de prevaricação; covardia e crime de prevaricação.
JU Foi fácil atrair os grandes cientistas nacionais e estrangeiros?
Zeferino Quando, tendo trazido para cá um grupo sério de cientistas de física do estado sólido, começaram a surgir os primeiros resultados da política de atração de grandes cientistas nacionais e estrangeiros, começou também a campanha contra a Unicamp. Vocês são testemunhas de como essa campanha perdurou durante muito tempo e eu busquei ignorá-la. E busquei, naquela ocasião, cada vez que se fazia uma verificação nova, um trabalho novo interessante, escondê-los para evitar o acréscimo de agressividade, enquanto a Universidade não tivesse uma estrutura sólida capaz de resistir a esses impactos. Vocês sabem que todo mundo acreditava que eu não continuaria na reitoria da Universidade, porque levantavam problemas de legalidade disso, daquilo. Mas, enfim, passou a tempestade e eu a ignorei sempre, só respondi quando fui alcançado na minha dignidade pessoal, aí dei uma resposta longa por escrito e acabou passando a tempestade, e agora tudo está aparentemente mais ou menos serenado.
JU Em sua opinião, qual foi o fator fundamental do sucesso da Unicamp como universidade pública?
Zeferino A resposta é simples, clara e incisiva: foi a seleção cuidadosa de cérebros entre homens de alta dignidade científica e moral. É a única contribuição que reivindico para mim. Nisto empenhei todo o cuidado, pois bem sabia que, sem homens capacitados, de nada adiantariam plano, estruturas e regulamentos, por melhores que fossem. É que eu conhecia bem, por longa observação, a patologia de nossas instituições científicas. Assisti ao esplendor, à estagnação e a decadência de várias delas e sabia do grave perigo que se corre quando se transige com a mediocridade. A causa fundamental da decadência foi sempre a mesma: afrouxamento dos critérios de seleção de valores, a conseqüente administração de medíocres nos quadros técnicos e o sentimentalismo fácil e piegas que impede a eliminação dos capazes. É fácil e cômodo ostentar falsa bondade à custa do dinheiro público e do futuro da ciência.
JU O senhor é conhecido, sobretudo, como um homem de ação. Que personagens influenciaram a sua formação?
Zeferino Antes de mais nada, deixe-me citar Émile Zola, que amava as dificuldades e acreditava que a produção, seja qual for, é sempre preferível ao repouso. Pois a ação é um estado de alma, um impulso interior incoercível que, para felicidade minha, foi sublimado e portanto orientado para ação pura, por influência de homens de ciência empolgados por um ideal social. Quer os nomes? Lauro Travassos, André Dreyffuss, Rodolpho von Lhering, Arthur Neiva e Rocha Lima. Foram estes os grandes homens que me plasmaram a mente e a alma, ensinando-me, ainda adolescente, a metodologia, a técnica e o rigor da investigação científica e também a reconhecer e a distinguir o cientista puro, objetivo e incapaz de atitudes mesquinhas e egoístas. Quem eram estes homens? Veja o que diz deles o meu grande amigo José Reis: “Eram cientistas e pensadores habituados a raciocinar em termos universais, interessados na troca de idéias, convictos de não existirem barreiras entre os campos de conhecimento”. Sim, eram bem isso. O que neles me prendia não era só a novidade das idéias, mas a forma em que expunham um forma soberba de vivacidade e clacreza, uma agilidade mental e um entusiasmo que desconhecíamos.
JU Em sua opinião, qual o perfil ideal para um reitor?
Zeferino Realmente eu acho que a primeira condição é que seja um indivíduo que tenha vivência e experiência da vida universitária. Que saiba o que é uma universidade e que localize e considere a universidade não como uma entidade isolada, mas como uma entidade que participa de um contexto de educação, de um sistema de educação, de um sistema que abrange desde o pré-primário, o primário, o secundário até o superior universitário. Que tenha uma visão do processo educacional não limitado a uma visão estritamente universitária. A segunda qualidade, que eu considero essencial, é o equilíbrio emocional; e equilíbrio que lhe permita ter uma visão angular, 360 graus, em que nenhuma esfera tenha predominância ou ênfase, porque universidade é um conjunto ciências, de artes e de humanidades, abrangendo aí todos os ramos da humanidades, e que tenha consciência de que ciências e artes não têm um fim em si mesmas. Mas que objetivem, nas suas atividades, sempre a promoção do bem-estar da comunidade, do homem comum, do “Homo Qualunque”, do bem-estar físico, social e espiritual. Essas qualidades que se exigem de um administrador universitário.
JU Qual é o seu conceito de educação?
Zeferino Educar é desenvolver no aluno a capacidade de pensar. O cérebro de um estudante não é um cofre que se deve encher, mas sim um tocha que é preciso acender.