Tese sustenta que Sivam garante soberania
e favorece o desenvolvimento de políticas públicas
MANUEL ALVES FILHO
O Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), que acaba de completar um ano de operação, representa um novo paradigma de segurança e defesa para o Brasil. A conclusão é do professor Humberto José Lourenção, autor da dissertação de mestrado "A Defesa Nacional e a Amazônia: O Sistema de Vigilância da Amazônia", defendida em julho junto ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. De acordo com o estudo, o projeto foi concebido para assegurar a soberania brasileira na Amazônia não apenas por meio de ações estratégicas e militares, como se fazia convencionalmente até então, mas também pela implantação de um sistema capaz de gerar informações que favoreçam a formulação de políticas públicas voltadas ao crescimento econômico, desenvolvimento social e preservação ambiental.
Para Lourenção, o Sivam é conseqüência de um novo enfoque acerca da salvaguarda da soberania nacional, que veio substituir a doutrina de segurança nacional dos anos de 1960 e 1970. O projeto, afirma o pesquisador, parece ser fruto de uma percepção governamental bastante clara dos problemas amazônicos, tendo por base as experiências anteriores que não obtiveram sucesso. “O que se viu, no passado, foi uma desarticulação muito grande entre os organismos que atuavam na região, o que se refletiu diretamente nos programas levados a cabo. Foram desperdiçados muito tempo, energia e recursos”, analisa.
A proposta do Sivam, explica o autor da dissertação, é construir instrumentos que forneçam informações detalhadas e integradas sobre os vários aspectos da realidade amazônica, para que esses dados subsidiem ações de defesa, de combate a atos ilícitos e de políticas públicas mais eficazes. Na opinião de Lourenção, o sistema contempla, ainda, direta ou indiretamente, as demandas de ordem ecológica, econômica, política, antropológica e social, surgidas no contexto internacional no período posterior à guerra fria. Segundo ele, mesmo antes do advento do projeto, já havia o entendimento por parte das Forças Armadas de que a defesa da Amazônia precisava ir além da simples presença militar na região.
Era necessário que o Brasil demonstrasse, de forma inequívoca, competência e responsabilidade para com o desenvolvimento amazônico. De acordo com essa visão, por intermédio de uma ocupação ética e racional, o País estaria respondendo às críticas externas, sem se render ao preservacionismo absoluto. Ou seja, a integração da região, por meio de ações planejadas, constituiria a melhor estratégia de defesa. “A proposta do Sivam vem ao encontro dessa nova mentalidade. É, de fato, um novo paradigma no que diz respeito à segurança e defesa da Amazônia”, sustenta Lourenção.
Estrutura O Sivam custará ao Brasil, até o final da sua implantação, em 2004, US$ 1,395 bilhão. Deste total, US$ 1,285 bilhão destina-se a equipamentos e serviços e US$ 110 milhões a obras civis. A maior parte desses recursos foi financiada pelo Eximbank, banco de fomento dos Estados Unidos. O empréstimo será pago num prazo de 10 anos, com juros de 8,5% ao ano. Segundo Lourenção, compõem o sistema diversos equipamentos de vigilância, como radares primários e secundários. Eles promovem o controle do tráfego aéreo na região, identificando, respectivamente, os aviões que querem e os que não querem ser localizados. São aparelhos fixos, transportáveis e aerotransportáveis.
Conta, ainda, com sensores de vigilância ambiental, capazes de analisar a qualidade da água e do ar, bem como com três aviões de sensoriamento remoto. Por meio da refração da luz, essas aeronaves têm a capacidade de identificar, a uma distância de até 300 quilômetros e com o tempo nublado, se uma determinada área está sendo usada para o cultivo de maconha ou de qualquer outra cultura. Os aparelhos também ajudam a descobrir, por exemplo, a ação de madeireiras clandestinas. “Esses dados, somados a outros que o Sivam já está gerando e ainda vai gerar, permitirão que o governo brasileiro trace o zoneamento econômico da região”, afirma o autor da dissertação.
Um esquadrão formado por 99 aviões ALX, que ainda estão em fase de aquisição, também faz parte do Sivam. Armados com canhões e metralhadoras, eles farão o patrulhamento da Amazônia. Uma medida adicional em favor da defesa da região é a chamada Lei do Abate, que está em tramitação no Congresso. Ela estabelecerá um conjunto de critérios que permita a derrubada de uma eventual aeronave inimiga ou a serviço do narcotráfico. Atualmente, o máximo que a Força Aérea pode fazer é abordar o aparelho e pedir para que o piloto pouse. Se ele não atende à solicitação e deixa o espaço aéreo brasileiro, o avião não tem como ser interceptado.
Riscos A adoção por parte do governo brasileiro de um sistema de defesa da Amazônia, nos moldes ou não do Sivam, era de fato necessário, na avaliação de Lourenção. Ele destaca que, embora não haja qualquer indicativo de que a região corra o efetivo risco de uma invasão por forças estrangeiras, a medida tem um indiscutível poder dissuasório. O pesquisador esclarece que, no contexto amazônico, um controle do território teria que se dar pelo domínio dos núcleos populacionais e de suas vias de acesso, uma vez que a mobilização e articulação das forças só seria viável através dos rios ou pelo ar, fator que restringe a logística de grandes unidades.
“Levando em consideração as características inóspitas do terreno, de dimensões continentais, e as condições climáticas e sanitárias desfavoráveis, a Amazônia seria um típico cenário de guerra prolongada, demandando recursos de tal magnitude que mesmo uma grande potência não teria certeza de alcançar resultados compensadores”, diz o autor da dissertação. Em outras palavras, atualmente apenas uma nação teria condições de patrocinar uma intervenção unilateral dessa natureza na Amazônia: os Estados Unidos. Ainda assim, essa ação só teria sentido se algum interesse vital norte-americano fosse violado, o que asseguraria o indispensável apoio da opinião pública local e internacional. “Depois da experiência negativa da Guerra do Vietnã, qualquer envolvimento militar norte-americano numa guerra prolongada só se viabilizaria nessas condições. Numa ótica realista, não há qualquer indício de que isso possa ocorrer”, acrescenta.
Polêmicas cercaram implantação do projeto
As discussões em torno da implantação do Sivam remontam ao início da década de 1990, ainda por ocasião do governo Fernando Collor de Mello. O presidente deu, então, o aval para que um grupo de pesquisa da Aeronáutica iniciasse os estudos para a concepção de um sistema de vigilância e defesa da Amazônia. Dois anos depois, o projeto foi anunciado oficialmente durante a Eco-92, realizado no Rio de Janeiro. Em 1994, o processo de licitação já estava aberto.
O governo brasileiro encaminhou cópias do edital a 16 embaixadas no País, para verificar quem estava interessado em fornecer o aparato tecnológico. Na prática, conforme Humberto José Lourenção, foi um projeto concebido em gabinete pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE-PR). Não contou para a sua formulação, portanto, com contribuições vindas da sociedade civil, dos meios políticos e da comunidade científica. “Isso, todavia, não o tornou menos legítimo em relação aos seus objetivos”, avalia o pesquisador. À época, porém, o Sivam gerou intensa polêmica. Durante a sua votação no Congresso, parlamentares levantaram suspeitas sobre a ocorrência de corrupção durante o processo de escolha do fornecedor dos equipamentos. O Sivam também foi revestido de conflito político e de significativa polêmica com o Legislativo por ter sido tratado administrativamente como “projeto estratégico”, com dispensa de licitação amparada na legislação que regulamenta os programas sigilosos.
As críticas mais ácidas partiram da comunidade científica e acadêmica brasileira, formuladas principalmente pelo físico e professor emérito da Unicamp, Rogério César Cerqueira Leite. O especialista apontou para o risco de vulnerabilidade do sistema. De acordo com ele, informações sigilosas e estratégicas poderiam vazar, dado que o governo brasileiro decidira comprar uma tecnologia estrangeira, da qual não teria pleno domínio. Cerqueira Leite também não poupou as autoridades por terem desconsiderado a opinião dos cientistas brasileiros.
Ao final do processo de licitação, o vencedor foi o grupo Raytheon, dos Estados Unidos. Em 25 de julho de 1997, o contrato do Sivam entrou efetivamente em vigor. Exatamente cinco anos depois, em 25 de julho de 2002, o projeto iniciou a operação. Segundo Lourenção, embora a sociedade e a comunidade científica não tenham tido a oportunidade de contribuir para a concepção do sistema, essa participação pode se dar a partir de agora. A maioria dos dados gerados pelo Sivam, afirma, será colocada à disposição de entidades e pesquisadores, a partir do devido cadastro. Uma vez implantado, ressalta o pesquisador, o Sivam admite e requer ampla e intensa participação da ciência brasileira, o que se daria por meio do desenvolvimento de seu órgão gestor, o Sistema de Proteção da Amazônia (Sipam).
A dissertação de Lourenção, que é professor de Ciências Sociais da Academia da Força Aérea em Pirassununga, foi orientada pelo professor Eliézer Rizzo de Oliveira.