Historiadora identifica e expõe em livro
as caras que Humberto Mauro tentou dar ao país
Os Brasis do mais
brasileiro dos cineastas
LUIZ SUGIMOTO
A história do cinema brasileiro começou a ser escrita somente na virada dos anos 1950 para os 60, por críticos como Paulo Emílio Salles Gomes, Alex Viany e Glauber Rocha, que saudaram Humberto Mauro como o mais brasileiro dos cineastas e o elegeram pai do Cinema Novo. Antes de Nelson Pereira dos Santos, porém, Mauro tinha sido o único a trabalhar com cinema por 50 anos, ininterruptamente, numa trajetória que começa no cinema mudo, em 1925, e vai até 1974, quando dirigiu seu último filme (Carro de Bois). Salles Gomes, principal historiador do nosso cinema, estudou as obras do cineasta apenas até os anos 1930.
Este preâmbulo serve para justificar o caráter inédito do livro Humberto Mauro e as Imagens do Brasil, da historiadora Sheila Schvarzman, que será lançado pela Editora da Unesp no próximo dia 11 de agosto. A obra é fruto de tese de doutorado orientada pelo professor Edgar Salvadori de Decca, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. No livro, a autora faz o que nunca fora feito, analisando toda a obra do cineasta, dividindo-a nas três fases em que através do cinema se construíram três diferentes utopias nacionais.
“Como historiadora, faço o embricamento entre história e cinema, mostrando como os filmes de Humberto Mauro tentam dar uma cara para o país ao longo desses 50 anos. É também uma crítica às visões instituídas sobre o cineasta, tido como o mais brasileiro dos nossos autores. Procuro analisar o que se identificou como brasileiro para que ele recebesse essa qualificação”, explica Sheila Schvarzman. Formada pela USP, a pesquisadora estudou com Marc Ferro na França e fez mestrado também sob orientação do professor De Decca, com uma dissertação Como o cinema escreve a história: América e Elia Kazan. “Até junho, fui professora visitante no Instituto de Artes da Unicamp, quando os alunos me instigaram a amadurecer algumas questões que estão formatadas no livro”, recorda.
Humberto Mauro estreou com Valadião, o Cratera (1925), lançou a primeira musa das nossas telas, Eva Nil, em Na primavera da vida (1926), e apontou Thesouro perdido (....) como uma das realizações preferidas. Os mais conhecidos são Braza Dormida (1927), Ganga Bruta (1933), Favella dos meus amores (1935), seu maior sucesso de público - que se perdeu num incêndio juntamente com Cidade mulher (1936) e O Descobrimento do Brasil, curiosamente a única reconstituição cinematográfica da chegada de Cabral a Porto Seguro. Ganha o merecido destaque no livro a extensa produção do cineasta pelo Instituto Nacional do Cinema Educativo (Ince), com 357 documentários, inclusive aqueles que seriam os primeiros filmes científicos nacionais.
Primeira utopia Mauro fez seus primeiros filmes durante o chamado ciclo regional, assim denominado porque o cinema brasileiro não nasceu em grandes centros, mas em regiões dispersas e economicamente ricas por causa do café e do leite, como Campinas, Botucatu e a cidade natal do cineasta, Cataguases, na Zona da Mata de Minas Gerais. “O que se fazia então eram documentários ou filmes de propaganda sobre a história da família de um fazendeiro ou de uma empresa em troca de pagamento. Eram chamados pelos detratores de vações’”, conta Sheila Schvarzman.
A pesquisadora recorda que o cinema brasileiro, naquele final dos anos 20, encontrava espaço para se expandir diante de certa desorganização da indústria americana, por conta do lançamento dos filmes sonoros. O Brasil recebia fitas em inglês que, na inexistência de legendas, o público ficava sem entender. “É quando Mauro vai para o Rio de Janeiro e se une a Adhemar Gonzaga, um cineasta e crítico importantíssimo que está justamente pensando um novo cinema para o Brasil. Gonzaga cria o estúdio Cinédia e a revista Cinearte, visando utilizar os ingredientes do cinema americano para mostrar um país moderno, jovem e saudável sem negros ou pobres. Digamos que este é o primeiro grande projeto do cinema brasileiro, que em meu trabalho chamo de ‘primeira utopia’. E Mauro será um dos artífices desse movimento”, afirma.
Segunda utopia Em meados da década de 1930, segundo a professora, não se consegue mais fazer ficção no país: falta filme virgem e, sobretudo, o cinema sonoro americano se acerta e domina definitivamente o mercado de exibição; são produzidos apenas seis longas-metragens em 1936. Passando por problemas financeiros, Humberto Mauro vai dirigir filmes para o Instituto Nacional do Cinema Educativo (Ince), a primeira instituição voltada para esta área criada pelo Estado, com a proposta de transformar o cinema em meio avançado de educação. Seu diretor era o antropólogo Edgard Roquette-Pinto, antropólogo e positivista identificado com o Estado Novo, preocupado, como outros intelectuais de então, em transformar o homem brasileiro através da educação.
O Ince existiu de 1936 até 1967. Boa parte dos 357 filmes ali produzidos se perdeu, mas Sheila Schvarzman conseguiu assistir a perto de 90 fitas, percebendo duas tendências marcantes. A primeira coincide com a permanência de Roquette-Pinto na direção até 1947, quando Humberto Mauro retratará vultos históricos, riquezas naturais e descobertas científicas. “É a construção do Brasil ‘extraordinário’, maravilhoso, onde os homens são vultosos e a natureza é o signo da nossa grandiosidade. O nacionalismo não é tirado da figura da baiana, mas se expressava na vitória régia, a maior planta da América Latina, e no peixe elétrico. A ciência é importantíssima porque existe para dar caução a essa natureza”, explica a pesquisadora.
Na segunda fase do Ince, sem Roquette-Pinto e sem o regime autoritário, Humberto Mauro vai caminhar por si. E começa a criar o que Sheila Schvarzman chama de o Brasil “ordinário”, feito de homens palpáveis. “Em geral, são desta fase os filmes mais admirados por críticos e cineastas do Cinema Novo”, diz a historiadora. Ao lado do cinema educativo, Mauro continuou fazendo longas-metragens e, em 1952, montou seu próprio estúdio em Volta Grande, onde filmou o último longa, Canto da Saudade. “Ele queria fugir de modelos de estúdios como a Vera Cruz, que seguia os padrões estrangeiros. Sua produção, efetivamente, tem uma ligação visceral com o Brasil, retratando o cotidiano, com temáticas ligadas à vida rural e às músicas”, diz a autora.
Terceira utopia Por causa desse estilo, Mauro será reconhecido como um cineasta “autenticamente brasileiro” pela geração dos anos 60, que começa a escrever a história do nosso cinema. Nasce daí a terceira utopia. Sheila Schvarzman escreve que, na visão dos cinemanovistas, o cinema brasileiro não podia existir porque o espaço estava ocupado física e imaginariamente pela produção estrangeira, em particular a americana. Se eles combatiam a dramaturgia “imitativa” da Vera Cruz, que projetava o país a partir de um estúdio com técnicos e diretores estrangeiros, Mauro lhes aparecia como matriz de encenação autenticamente nacional, econômica e artesanal.
“No final da carreira, ele vira um pai, uma referência, servindo como matriz para o Cinema Novo. E vai ser identificado como o mais importante cineasta daquele momento, dividindo a honraria com Mário Peixoto”, conclui a historiadora. De acordo com Sheila Schvarzman, os filmes disponíveis de Humberto Mauro estão bem preservados, mas lamenta que em Euclides da Cunha, por exemplo, tenha se perdido o som. “É lamentável, ainda, a perda de Favella dos meus amores e Cidade Mulher no incêndio da Brasil Vita Filmes. Ironicamente, pesquisadores que estudam esse autor não podem conhecer seus dois filmes mais populares”.
“Não sou literato. Sou poeta do cinema. E o cinema nada mais é do que cachoeira. Deve ter dinamismo, beleza, continuidade eterna”
Humberto Mauro, em entrevista ao Jornal do Brasil, em abril de 1973
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