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Novos indicadores da
economia: crescimento
ou "bolha" de consumo?
CLAYTON LEVY
A onda de otimismo gerada pelos indicadores mais recentes da economia brasileira fez com que muitos analistas, tanto no meio acadêmico como empresarial, apostassem todas as suas fichas no discurso do governo, que garante sustentar as taxas de crescimento anual em torno de 4% pelos próximos anos, mesmo depois de amargar uma retração de 0,2% no PIB em 2003.
De fato, os números são animadores: a produção industrial fechou o primeiro semestre com alta de 7,7% em relação ao mesmo período do ano passado e o mercado de trabalho apresenta ligeira recuperação do emprego formal, embora com redução da massa salarial.
Até que ponto, porém, estes indicadores revelam uma recuperação do crescimento em bases sustentáveis? Esta pergunta, que vem ocupando boa parte do noticiário econômico, remete a outra não menos perturbadora: o quadro atual reúne elementos capazes de inspirar ao mercado a confiança necessária, ou não passaria de uma “bolha” de crescimento provocada por um surto de consumo e, por essa razão, uma aposta arriscada?
Para pesquisadores do Instituto de Economia, quadro ainda não indica retomada
Para responder a estas e a outras perguntas, o Jornal da Unicamp ouviu três respeitados professores do Instituto de Economia (IE). Com atuação destacada no Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica, Daniela Prates, Edgard Antonio Pereira e Francisco Lopreato analisam o cenário atual, concluindo que os indicadores, embora gerem entusiasmo, ainda não são suficientemente sólidos para caracterizar um quadro de retomada sustentável a longo prazo.
Edgard Pereira observa, por exemplo, em recente artigo publicado no boletim “Política Econômica em Foco”, que a instabilidade foi a marca da evolução do PIB brasileiro desde os primeiros anos da década passada (veja gráfico 1). “Nenhuma das retomadas do crescimento, iniciadas em 1992, 1998 e 2001, conseguiu se sustentar. Em seis dos treze anos do período, a renda per capita caiu, sendo a maior queda, -1,5%, em 2003. Esse comportamento se verificou tanto sob o regime de câmbio fixo (até 1998) quanto sob câmbio flutuante com meta de inflação (1999 em diante)”.
Outro componente importante na composição do PIB, o consumo das famílias (veja gráfico 2), igualmente apresentou forte tendência de queda entre 1997 (quando atingiu o pico de 62,7% do PIB) e 2003 (56,9%). “Essa queda, além de evidenciar as conseqüências perversas do padrão de política econômica que vem sendo levado a cabo, coloca limites importantes a uma retomada sustentada do crescimento”, destaca a pesquisadora Adriana Nunes Ferreira em outro artigo veiculado no mesmo boletim do IE. O consumo das famílias, na economia brasileira, representa nada menos que cerca de 60% do PIB.
Os indicadores de recuperação da renda e do emprego e o prognóstico de melhoria do cenário da atividade industrial brasileira são suficientes para convencer o mercado de que o crescimento do Brasil é sustentável? Por quê?
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Daniela Prates Realmente, a economia está em recuperação. Contudo, as expectativas do mercado quanto à sustentabilidade desse crescimento parecem ter sido abaladas pela Ata do Copom de julho, que reafirmou a determinação do Banco Central de manter a taxa de juros básica, ou mesmo elevá-la, devido à alta recente da inflação, associada às pressões de custo e à maior margem de manobra da indústria de repassá-las aos preços num contexto de demanda interna mais aquecida. As projeções do mercado para essa taxa nos próximos meses passaram a se elevar após a divulgação daquela Ata no final de julho, e um aumento da taxa básica certamente abalará a retomada em curso.
Edgard Pereira Não. O crescimento econômico sustentado depende da retomada efetiva dos investimentos. A análise do comportamento da economia brasileira na última década mostra que se alternaram períodos de retração e recuperação da atividade econômica sem que se conseguisse estabelecer uma trajetória sustentada de crescimento. Por se tratar de decisão que envolve altos riscos e elevada mobilização de capital, os investimentos privados apenas são efetivados em um cenário de forte confiança no crescimento da economia ao longo de vários períodos futuros. A atual situação de deoendência do fluxo internacional de capitais e a avaliação da trajetória da economia brasileira nos últimos anos são fatores geradores de incerteza com relação ao comportamento futuro da economia.
Francisco Lopreato Após o difícil ano de 2003, quando a variação do PIB foi negativa, o Brasil vive um momento favorável. Os indicadores de renda, emprego e produção industrial são positivos e apontam para um crescimento superior ao que foi alcançado em cada um dos últimos cinco anos. Entretanto, ainda é cedo para falar em crescimento sustentado. A economia brasileira tem se caracterizado por períodos muito curtos de recuperação, sucedidos por anos de baixo crescimento. Não há até o momento evidências concretas que apontem, desta vez, um comportamento diferente, mesmo considerando a melhoria do quadro macroeconômico.
O nível de investimentos privados registrados no primeiro semestre é suficiente para garantir a sustentabilidade do crescimento econômico?
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Daniela Prates O crescimento da produção industrial em maio e junho foi expressivo, e respondeu à recuperação da demanda. De acordo com indicadores da CNI referentes a julho, divulgados 4 de agosto, as vendas reais da indústria cresceram 16,79% no primeiro semestre de 2004 em relação a igual período do ano anterior, o que resultou em queda dos estoques e, assim, aumento da produção. Os índices da CNI também mostram os altos níveis de utilização da capacidade instalada na indústria, indicando que os investimentos ainda não responderam na intensidade necessária ao aumento da demanda corrente. E a recuperação dos investimentos é pré-condição para o crescimento sustentável. Em relação aos investimentos, a questão fundamental são as expectativas dos empresários. Se estes interpretaram a Ata do Copom de forma semelhante ao mercado, e vislumbrarem uma alta da taxa de juros básica após as eleições municipais, é muito provável que não realizem investimentos em novas plantas.
Edgard Pereira Não. A recuperação industrial vem se dando primordialmente por intermédio da utilização da capacidade ociosa da economia, decorrente do baixo nível de atividade do ano passado. Os investimentos como proporção do Produto Interno Bruto encontram-se em patamares muito baixos, comparativamente a períodos de expansão sustentada da economia.
Francisco Lopreato É importante lembrar que a base do crescimento sustentado é a recuperação do investimento. O maior volume de investimentos é, por excelência, o fator responsável por alavancar a demanda agregada e dar fôlego ao crescimento. As decisões de investir, no entanto, dependem da avaliação dos agentes sobre o comportamento futuro da economia. As condições de incerteza do quadro internacional, as elevadas taxas de juros reais praticadas na economia brasileira e o baixo nível de gasto do setor público são fatores que inibem a configuração de um estado de confiança capaz de levar à retomada significativa dos investimentos. Enquanto não se criar condições favoráveis de investimento de longo prazo, a tendência é de que os agentes atuem de forma defensiva, com níveis de gastos abaixo do necessário para garantir o crescimento sustentado.
O produto interno bruto 1991-2003
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Os indicadores atuais caracterizam um quadro suficientemente forte para resistir a possíveis turbulências do cenário econômico, como a alta da cotação do petróleo no mercado internacional, oscilações do dólar e aumento na taxa de juros?
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Daniela Prates Como já ressaltado, os indicadores mostram recuperação da demanda e da produção correntes, enquanto a performance do investimento ainda deixa muito a desejar. Somente em alguns setores exportadores, que têm demanda e financiamento externo garantidos, a ampliação da capacidade produtiva já foi deslanchada. Nesse contexto, uma elevação da taxa de juros, em resposta às pressões inflacionárias interna e/ou a turbulências externas associados à evolução do preço do petróleo (já que inexistem outros focos de tensão no cenário internacional atual de crescimento econômico sincronizado nos países centrais e perspectiva de altas comedidas da taxa de juros básica nos Estados Unidos nos próximos meses) certamente prostraria ou mesmo abortaria a recuperação da atividade econômica e do emprego.
Edgard Pereira No curto prazo, sim. O desempenho da balança comercial em 2004 tem sido melhor do que o projetado, permitindo melhores condições de enfrentamento a turbulências moderadas no cenário internacional. As indicações de que o nível de atividade econômica americana não é tão intenso quanto se estimava, permitindo conseqüentemente uma política de elevação da taxa de juro americana menos agressiva, é um fator de distensão do quadro internacional. Os maiores riscos no momento para a manutenção do processo de retomada da economia brasileira estão associados à elevação da inflação interna, o que pode levar o Banco Central do Brasil a aumentar a taxa de juro doméstica.
"Países emergentes estão sujeitos a turbulências de toda ordem"
Francisco Lopreato A maior integração do mercado internacional e a hierarquia entre as moedas no cenário mundial deixam os países emergentes sujeitos a turbulências de toda ordem. Mudanças bruscas em variáveis fundamentais como preço do petróleo, dólar e taxa de juros levam os investidores a reavaliarem as decisões de gastos e a direcionarem as aplicações para moedas de primeira linha. Apesar das condições atuais do balanço de pagamentos serem muito mais favoráveis do que há de poucos anos atrás, o Brasil não está imune a esses movimentos. A menor fragilidade externa e o saldo do balanço comercial reduzem a dependência de recursos externos e ampliam o raio de manobra da política econômica. Mas, alterações no cenário externo podem impactar os preços internos e a dívida pública provocando o aumento da taxa de juros interna e do superávit primário das contas públicas, com reflexos negativos sobre o quadro de recuperação econômica.
Quais as probabilidades, em sua opinião, de o quadro atual não passar de uma “bolha” de crescimento provocada por um surto de consumo?
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Daniela Prates Em primeiro lugar, vale destacar que o quadro atual não se restringe a uma “bolha de consumo” pois uma parte da recuperação da atividade econômica decorre da expansão das exportações, cujas taxas elevadas de crescimento estão associadas ao crescimento econômico mundial e a alta dos preços das commodities. Mesmo que a participação desse componente da demanda agregada no PIB brasileiro ainda seja pequena, ele tem contribuído para a retomada em curso. Em relação à demanda interna, o consumo, principalmente de bens duráveis (o consumo de bens não-duráveis começou a dar sinais de recuperação somente em maio) tem sido realmente o “motor” do crescimento. Se o aumento da produção e das vendas não for acompanhado pela expansão dos investimentos, a recuperação revelar-se-á insustentável. E esta expansão depende, como já ressaltado, da política monetária efetiva e, principalmente, das expectativas dos empresários em relação a essa política nos próximos meses (além da disponibilidade de fontes de financiamento doméstica, aliás outra fragilidade da economia brasileira). Como a única meta da política monetária no Brasil é manter a inflação baixa, o risco de que a retomada seja abortada por uma alta dos juros está sempre presente. Ademais, se a meta da nossa política monetária fosse semelhante à vigente nos Estados Unidos inflação baixa e crescimento econômico certamente as expectativas dos empresários seriam diferentes!
Edgard Pereira É alta a probabilidade de que a atual retomada seja mais uma fase na trajetória “stop and go” vivida na última década pela economia brasileira. Até o momento, os motores da recuperação têm sido as exportações e os setores produtores de bens de consumo duráveis. Ambos têm limitações estruturais que impedem que os seus atuais níveis de expansão mantenham-se indefinidamente. A recuperação efetiva dos investimentos, públicos e privados, está limitada, para os primeiros, pela manutenção de elevados superávits primários do governo, e para os segundos,pela incerteza com relação à sustentação a longo prazo da atual recuperação da economia.
Francisco Lopreato A retomada do crescimento em bases sustentáveis ainda não está caracterizada. O alto índice da taxa de juros reais, os elevados superávits primários dos últimos anos, os problemas de infra-estrutura, a definição da política tecnológica, além do quadro internacional, são alguns dos fatores que turvam o horizonte de longo prazo e colocam obstáculos ao crescimento. Essas questões, de alguma forma, precisam ser equacionadas para que se possa afastar o risco, latente, de que não ocorra a retomada dos investimentos e que o crescimento atual seja apenas a repetição do comportamento característico da economia brasileira ao longo das últimas duas décadas. Isto é importante, principalmente quando se sabe que vários setores já apresentam elevados índices de ocupação da capacidade instalada.
"Não há crescimento que se sustente sem que a renda aumente"
A participação do consumo das famílias no PIB favorece uma retomada sustentada do crescimento econômico?
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Daniela Prates No Brasil, assim como em vários países de dimensão continental, a participação do consumo das famílias no PIB é bastante elevada, cerca de 60%. Assim, uma retomada sustentada do crescimento econômico também depende, além do aumento dos investimentos, do crescimento do consumo. Contudo, este componente da demanda agregada perdeu dinamismo nos últimos anos, devido ao encolhimento da massa de rendimento real. Ou seja, o mercado interno encolheu e sua recuperação depende do aumento do emprego e da renda real da população, o qual somente ocorrerá num cenário de crescimento econômico sustentado, que depende da recuperação dos investimentos. Ou seja, se essa recuperação não se efetivar seja devido às expectativas dos empresários, seja à inexistência de fontes de financiamento internas adequadas a economia brasileira pode entrar num ciclo vicioso.
Edgard Pereira O consumo das famílias é o principal componente do Produto Interno Bruto, sob a ótica da demanda. Não há crescimento que se sustente sem que a renda cresça simultaneamente. Esse crescimento da renda depende do nível das remunerações e do volume de emprego. A geração de emprego, por seu turno, decorre do ritmo de crescimento da economia que, em última instância, depende do nível de investimento agregado.
Francisco Lopreato O consumo das famílias é um elemento relevante da demanda agregada e detém participação significativa no PIB (cerca de 50%) da economia brasileira. Por esta razão, a dinâmica da economia reflete o comportamento do consumo familiar. Nos anos recentes, a participação desse item no PIB apresentou uma tendência de queda, em decorrência da deterioração do mercado de trabalho. A redução da renda real média do trabalhador e da massa salarial teve efeito negativo sobre a expectativa do setor empresarial e contribuiu para inibir os investimentos. A recuperação atual verifica-se fundamentalmente no setor de bens de consumo durável. O desdobramento desses efeitos dinâmicos aos outros setores - sujeito às condições de evolução do crédito e da recuperação do emprego e da renda - poderá contribuir bastante com a retomada do crescimento, mas os indícios de que esse processo está em curso ainda são tênues.
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